(Imagem: Laje dos Carvalhos, Campo Lameiro. Wikipedia) Na segunda metade do século XIX, o naturalista ferrolao López Seoane registava que na Galiza ficavam poucos cervos, repartidos nas áreas mais boscosas do nosso território. Em Viaje por los montes y chimeneas de Galicia, escrito nos anos 50 da passada centúria, Álvaro Cunqueiro e José María Castroviejo afirmavam “semelha que o cervo na gastronomia galega for memória do passado”. Com efeito, a finais do 1800 caía abatido o último exemplar no concelho de Cervantes. Acabavam assim, no mínimo, 4000 anos de relaçom entre a espécie humana e o “Cervus elaphus”. As repovoaçons acometidas nos últimos tempos pretendem, com sucesso desigual, volver a recuperá-las, mas fam-no num mundo de fauna ameaçada e desprezo geral à natureza.

O cervo comum pertence à família dos Cervidae, que inclui cervos e veados. Tem parentes cercanos mais grandes, como o alce, mas poucos mais esbeltos. O cervo, de peçunhos partidos e longo pescoço, como o resto dos Cervidae, apresenta umha testa fina, patas muito longas e umha grande altura. Os machos podem chegar a superar os dous metros. É um animal próprio do Hemisfério Norte que atinge do Magreb à área mais septentrional da Europa, repartido em 27 subespécies.

Exemplar norteamericano. Imagem: prweb.com

Se na semana passada nos recriávamos com um animal imponhente, a águia real, hoje incidimos no resgate de aquela fauna que impactou fundamente os nossos antepassados. A cornamenta enorme e ramificada fai-no inconfundivel. Apesar da sua grande agilidade (dá grandes choutos e sabe nadar), é um animal pesado: supera com folgura os 150 kilos, e tam só as suas hastas podem alcançar os 15. Nos meses de verao exibe umha cor rúbia inconfundível, quase vermelha, que no outono muda para gris. O ventre e os glúteos som esbrancujados; no traseiro loze o chamado “espéculo”, um círculo amarelo. Os estudiosos descobrírom que esta mancha rechamante serve para o líder orientar a manda em situaçons de perigo.

É das espécies com maior dimorfismo sexual e distinçom de atitudes e tarefas. Os machos vam desenvolvendo desde os dous anos umha cornamenta complexa, formada primeiro por pedúnculos (salientes craneais), logo por varetos, horquilhons, loitadeiras, e finalmente contraloitadeiras. As hastas estám formadas de osso morto, que se cobre como umha espécie de veludo. Esfregando-o contra as árvores, a hasta fica descoberta e pode-se empregar para as luitas em época de zelo. Em setembro, a berrea convoca à peleja, e os machos convocam-se para o enfrentamento. Ainda que se trata, apriori, de brigas nom cruentas, sem sangue, esta exibiçom de força causa uns resultados dramáticos nos machos, especialmente nos mais novos: como dedicam toda a temporada de zelo ao enfrentamento e à cópula, muitos morrem de fome, se é que nom acumulárom reservas abondo no verao. O cervo pode chegar aos vinte anos de vida, sem embargo esta média reduze-se, segundo os investigadores, aos 5-7 no sexo masculino.

As fémias adoitam viver em comunidades amplas, que conseguem alimento para o grupo e para os cervinhos: fundamentalmente erva, vegetaçom lenhosa e fruitos; daí que o seu hábitat preferido seja o bosque. As crias correm o perigo, nom muito provável, de ser depredados por águias, raposos ou linces. O cervo adulto é presa do lobo, mas este grande caçador prefire ao cabo animais de menor tamanho e menos capacidade defensiva, como o corço.

O cervo na Galiza

Na Galiza, parte da filologia associou os topónimos de “Cervo” ou “Cervantes” com o nosso animal (ao igual que “Cervera” ou mesmo “Sérvia”). Outros etimologistas, caso de Moralejo, dim que a palavra remonta mais bem ao protocéltico “kerbo”, afiado, e que esta raiz alude a terrenos accidentados e duros; seriam estes os que nomeam o animal, e nom ao revês. Seja como for, durante mais dum século, estes dous topónimos fórom a única pervivência, real ou figurada, do nosso animal na nossa terra.

A década de 70 veu marcada por umha sensibilidade conservacionista crescente, e é nessa época quando as autoridades espanholas iniciam a repovoaçom do cervo, também na Galiza. No Atlas de vertebrados de Galicia. 1985-1990 diz-se que várias parelhas povoavam já o Courel, a Serra da Capelada ou Viveiro, e também o Invernadoiro. Os registos oficiais, em 1999, registavam 270 exemplares na serra ourensana. Bem que nom podemos dar dados certos sobre a sua situaçom actual, naturalistas avistam-no ainda hoje com relativa frequência em Chandreja de Queixa, Montederramo, Jares ou Casaio.

Podemos vê-lo durante todo o ano, especialmente se gostamos de caminhar polo monte ao amanhecer, que é quando o nosso animal está mais activo. Nalgumhas zonas espanholas, como Castela a Mancha, existe umha pequena actividade turística organizada por volta da “berrea”, a finais do verao, que é quando os cervos macho se convocam à luita.

Veneraçom incontestável

Num artigo recente, a paleoantropóloga Bárbara Ehrenreich perguntava-se por que o realismo minucioso da representaçom animal na arte das covas contrastava tanto com o esquematismo da representaçom humana. Ao seu ver, era o reconhecimento artístico e ritual da insignificáncia da pessoa frente a independência do mundo. Entre os muitos animais representados, quase há 200000 anos, em pleno Paleolítico, já apareciam os antecessores do nosso cervo comum.

Se viajamos à arte rupestre galega (iniciada 4000 anos antes da nossa era, e possivelmente continuada até a Idade do Ferro), a sensaçom é a mesma: nos petróglifos, frente guerreiros sintetizados em quatro traços, animais (num 95% cervos) representados com profusom de detalhes e irradiaçom dum enorme poderio. Para os estudiosos, na veneraçom do cervo nom existia apenas a sua utilidade imediata (em forma de peles, carne e possivelmente hastas), senom um conteúdo simbólico mais profundo, quiçá relacionado com ritos iniciáticos de caça.

Caldeiro de Gundestrup, possível representaçom de Cernunnos
(Imagem: wikipedia)

O cervo foi representado nas raízes de culturas tam arredadas como a indoamericana e a japonesa, passando pola Índia. Sem nenhuma dúvida, está também nas raiceiras da Europa: o deus cornudo, possivelmente Cernunnos, aparece como figura central do Caldeiro de Gundestrup, topado na actual Dinamarca. E Cernunnos foi umha das principais divindades do panteom céltico da Gália. A sua representaçom apareceu nas excavaçons do século XVIII em plena catedral de Notre Dame, no chamado “Pillier des Nautes”. A peça arqueológica pom ao mesmo nível divindades romanas e célticas. Com efeito, ambas as culturas partilhavam o culto ao cervo. Na mitologia grega, a deusa caçadora Artemisa rodea-se de cervos, e nas velhas lendas irlandesas e escocesas aparece Flidais, a gadeira do sobrenatural, que dirige um rabanho de cervos. Qual é o seu significado? Realmente, nom o sabemos. Alguns pesquisadores relacionam o cervo com a viagem, outros com a bidireccionalidade (em alusom à cornamenta). Os mais, pola sua apariçom com fauna variada, querem vê-lo como um senhor dos animais e símbolo da fertilidade.