No começo desta crise, um comentarista de esquerdas apontava nas suas redes sociais que o confinamento que vivemos nom merecer ser exagerado. Com luz eléctrica e alimentos na neveira, com televisom e, em muitos casos, com conexom à rede e aquecimento, quem é o pequeno-burguês que se pode queixar de tal encerro? Por desgraça para muitos, a psique humana nom funciona nestas chaves, e por isso imagem da gaiola de ouro nom resulta tam sedutora.

A percepçom da adversidade depende, em primeiro termo, de se a dureza é previsível, se forma parte dum horizonte de possibilidades que as pessoas considerávamos antes de ver-nos em determinada privaçom; da existência ou nom de experiências comparáveis, de certas aprendizagens de sofrimento que podemos resgatar para melhor sobrelevar o que se nos vem enriba; e finalmente, de termos ou nom termos um sentido: se a firmeza na miséria alimenta esperanças futuras, fornece liçons ou melhora a vida de outros. Penso que numha sociedade occidental opulenta como a nossa é doado comprovar como, grosso modo, nom se dam tais condiçons, e isso explica o abrupto do processo mental que tantos atravessam. Agás os galegos e galegas que estám na sua senectude, e que recordam as penúrias da guerra e da miséria posterior, ou parte dos novos galegos, imigrantes, que procedem de situaçons mui duras, o endurecimento e a sabedoria deste tipo de adversidade fórom-se perdendo no comum da gente.

A propaganda comercial e a propaganda política, muitas vezes indistinguíveis, levam décadas a promocionar umha felicidade vazia, facilona, a baixo custo; e encarregárom-se de adoutrinar-nos para o convencimento de habitarmos umha fortaleza invulnerável: a salvo de guerras, a salvo de vírus, a salvo de grandes colapsos económicos, e, ainda só teoricamente, a salvo da morte, cuja mençom tem algo de mau gosto. Se existem previsons catastrofistas, pensa o cidadao médio, essas som património de pequenos grupos subversivos que nom falam das preocupaçons do nosso dia a dia; em todo caso, a minha felicidade tenho que construí-la eu e em nada importa por onde vai a sociedade; se existem espaços de excepçom, arquipélagos sem direitos, disso só devem preocupar-se imigrantes ilegais e militantes radicais, a carne de presídio. A mim nom me toca.

Todo isso era mentira. O sistema do lucro desbocado multiplica os riscos, e fai mais brandas as sociedades que terám que afrontar cenários imprevistos. Hoje, a excepçom começa a deixar de sê-lo, e a privaçom fai-se umha experiência conjunta, que a todos nos iguala. Para que umha luz alume esta sombra, e para que num panorama crítico nom rachem os vínculos essenciais, é bom reflectir sobre a dureza.

Evoluímos e sobrevivemos enfrentando-nos a forças desatadas da natureza, à violência dos nossos semelhantes, à exploraçom ou ao ostracismo, às tiranias políticas ou aos exílios. Quando a ameaça natural ou social se fijo demasiado intensa, por vezes o ser humano viu-se condenado à reclusom: a quarentenas como as destes dias, e também os calabouços primitivos, as modernas prisons industriais, ou as improvisadas tobeiras em que alguns dos nossos antecessores se refugiárom trás 1936 para sobreviver à fúria dos perseguidores. Em todos esses casos, a humanidade partia dum depósito de experiências que faziam da penúria algo familiar, e portanto que faziam menos traumática a sua pegada. Quando a essa familiaridade se somavam firmes conviçons ideológicas, como no caso da prisom política onte e hoje, a fortaleza humana multiplica-se e dá exemplos admiráveis. Há presas isoladas que a falta de livretas escrevêrom poemas em rolos de papel higiénico; outras que se fixérom políglotas, outros que corrêrom maratons em pátios minúsculos, e ainda outros, como Gramsci, que elaborárom autências joias do pensamento humano nas condiçons mais severas. Se há um “por que”, diz a sentença filosófica, sempre se encontra um “como”.

O grande depósito de energia que a sociedade explora nestes dias é um certo sentido colectivo: cuido-me do perigo, e ao mesmo tempo protejo os meus seres queridos, protegendo-os a eles protejo os profissionais da sanidade, e ao cabo contribuo para a protecçom da sociedade inteira. Pola vez primeira desde que temos memória, o bem estar pensa-se em chave dum grande “nós”. Existe o temor fundado de que nesse “nós” se pretendam infiltrar de maneira ilegítima as elites, as forças repressivas desejosas de instalar umha ditadura permanente, os grandes grupos económicos que ponhem a produçom por diante da saúde…e o perigo, claro, existe. A classe obreira condenada a continuar na produçom baixo as exigências do lucro está a denunciar esta confusom interesseira entre carne de canhom e dirigentes bem acobilhados. E quando os enormes custos deste parom inaudito comecem a carregar-se sobre os ombreiros das classes populares, os movimentos devessem deixar muito clara a distinçom entre o “nós” solidário e o “eles” cobiçoso e oportunista.

A consciência colectiva seria um grande “por que”. Qual, entom, o nosso “como”? Quiçá nom haja nenhum espaço como o encerro, nem que for um encerro mol como o presente, que demonstre com mais clareza que, apesar das mudanças históricas, as pessoas temos que voltar sempre às receitas e as respostas essenciais. As condenadas à soidade terám que enfrentar-se a longas horas de silêncio; quando um está só, nom há televisom nem internet que o poida apagar; e o silêncio coloca sempre as grandes questons de cada vida, às que só um pode responder com toda seriedade; o confinamento em família vai pôr de relevo a dificuldade do convívio e do entendimento, outra habilidade que o individualismo e as relaçons virtuais debilitárom gravemente; e ainda, quem se topar na tesitura (no positivo ou no dramático) de estar temporalmente fora do trabalho assalariado, terá que recorrer às regras de ouro de todo prisioneiro: rotina e método, reflexom focada no presente, combate aos pensamentos obsessivos, lei dos pequenos logros, conversom dum pequeno espaço num grande mundo cheio de interesse.

Nas cozinhas ou nos salons dos pisos da cidade, lê-se e escuita-se provavelmente mais que nunca, e debate-se e discute-se com umha fondura inédita; nas leiras do rural, trabalha-se como se trabalhou sempre, mas com umha consciência mais forte e orgulhosa do que vale esse trabalho, e da importáncia dumha forma de vida que tanto escarnecêmos. Todo o mundo sofre e teme o futuro; e a um tempo todo o mundo intui que este confinamento pode ser mais fértil que o ritmo vertiginoso e cego da vida de onte mesmo.