O tópico associa a Galiza com a paralisia ou os movimentos lentos, com a falta de pulo e a introversom. Muitos amantes do país vírom-no deste modo: “um passo adiante e outro atrás, Galiza, e a tea dos teus sonhos nom se move”, escreveu Díaz Castro no famoso poema. Os espanhóis, aos que por regra geral lhes custa muito entender-nos, detectárom sem embargo umha tendência semelhante: “país de almas rendidas”, dixo Ortega y Gasset, que se confessou assustado polo nosso “niilismo.”

O galego que leve umhas décadas de militáncia e aproveite um relanço do caminho para botar a vista atrás pode estar tentado por essa ideia: a direita caciquil, galego-espanhola, conformada há mais de um século com os refugalhos da fidalguia e os mandos ocupantes, mantém todos os resortes; o nacionalismo, em termos sociais, representa arredor dumha quinta parte da populaçom, umha percentagem possivelmente semelhante à que arrastava o galeguismo de pre-guerra; o arredismo, como nos tempos da Fouce, persiste como movimento tenaz, pequeno, entregado e inestável politicamente, com o facho aceso na rua e na prisom. Os mais dos galegos talentosos liscam do rural, ou da própria terra, e se som conscientes do valor do próprio, consagram as suas energias às letras e à criaçom, com pouco sentido prático e mais gosto pola disquisiçom que polas realizaçons executivas. Como gosta de dizer Xurxo Souto, “somos um povo de artistas”; esta sentença laudatória resultaria espantosa a olhos dos nossos devanceiros: oitenta anos depois, e contra os desejos dum Pepe Velo, ou dum Fuco Gómez, os livros seguem a substituir a luita, mais que a acendê-la.

Claro que nada há de especialmente mau na lentitude. O vagar, além do atolondramento político, explica o vigor da nossa identidade, e a pervivência entre nós de formas de ser, património e expressons culturais que parece um milagro ver vivas, em plena Europa occidental de 2020. O que acontece é que esta parsimónia, que é também umha certa preguiça, vai começar a ser sobressaltada por novos ritmos, e tendências virulentas, em que o mundo nos vai envolver. Se compararmos o tom nas conversas, nos centros de trabalho ou nas tertúlias políticas, com aquele que dominava na década de 90, aginha detectaremos umha enorme diferença.

A poucos anos da queda do Muro de Berlim a sensaçom comumente partilhada era a da estabilidade total do capitalismo e as democracias liberais. Na esquerda, a palavra social-democrata, que tivera a acepçom pejorativa de tímido ou pacato, começou a ganhar o prestígio de certa coerência mantida na pior das condiçons. A ideia do fim da emancipaçom fora elaborada por intelectuais da academia norteamericana e resultava assumida, numha linguagem mais elemental, polo sentido comum daqueles tempos. Nem os muitos problemas sociais nem os escándalos morais faziam abanar as instituiçons. Extendiam-se os curtes de direitos sociais e cívicos, a casta política iniciava um distanciamento rápido dos interesses populares sem que os governos perdessem grande legitimidade; começava a existir consciência dumha crise ambiental de grande magnitude, sem que em nenumha cabeça houvesse desvelos: nem o clima nem a poluiçom, pensava-se, vam alterar a nossa forma de viver. As elites do nacionalismo ouvírom aquele clamor da sociedade que se sentia e aspirava a classe média, e interpretárom-no ao seu modo; acelerárom a transiçom cara o autonomismo: as palavras fam-se ambíguas, o tom abranda-se, e as burocracias vam substituindo o voluntariado popular. O galeguismo escuitava assim umha sociedade compracente e satisfeita, e pensava que a satisfaçom vinhera para ficar.

Hoje, bolo da riqueza semelha sempre insuficiente ao capital, e os que mandam estám dispostos a apropriá-lo quase todo, deixando nas beiras mais e mais populaçom excedente. Na Galiza, a terra que nos sustém foi baleirada e agora pretende ser comprada por poucas maos; a ruptura dos equilíbrios ambientais no mundo é de tal alcanço que nom sabemos exactamente como poderám sobreviver as sociedades, como se reorganizarám, de que tempo dispomos. Ventam-se no ar incerteza e violência.

Se há algumha cousa que partilhe hoje esta sociedade fragmentada, é a ideia de as cousas mudam a pior. Da extrema direita à extrema esquerda, passando polos credos religiosos, a espiritualidade alternativa, as paranoias conspiracionistas, ou todas as modalidades de individualismo e ignoráncia deliberada da política. Sobre isto mesmo abundam as brincadeiras de mal gosto. Num mundo que perdeu a distinçom entre o solemne e o banal, nas redes sociais proliferam imagens humorísticas sobre o fim da civilizaçom; como se fosse algumha cousa que jamais puidesse alcançar-nos, ou como se se tratasse de algo que, ao cabo, nom tem muita importáncia. Com humor ou cepticismo, com depressom ou fúria, esta nova sensaçom vai penetrando nas profundidades da consciência.

A sabedoria popular sintetizou-no mui bem: “quando nom há farinha, todo é rinha”. A carência volve-nos irritáveis, envisos, ruins, e prontos para os acessos irracionais. A tirania da escasseza tem deteriorado famílias, vizinhanças, amizades, opçons políticas…ao cabo, sociedades inteiras. No comum das pessoas, tem trazido à tona o pior de nós. O cóctel entre escasseza e medo produziu os capítulos mais escuros da nossa espécie. Sempre desenhados e dirigidos por elites avarentas de poder, e quase sempre executados por massas populares histéricas, levadas à barbárie polo seu desejo de manterem o seu espaço blindado a todo custo.

A incomodidade e a privaçom fam-nos frequentemente miseráveis. O grave deste momento de incerteza e carência é que nom parece passageiro; semelha que tenhem roto de vez equilíbrios ambientais, consensos políticos (os da própria democracia liberal) e até pautas de comportamento que em épocas mais calmas permitiam as pessoas sentirem-se abertas e compassivas ante a desgraça extrema. Mas, como nos demonstrárom algumhas notícias actuais, a anormalidade virou norma: em Espanha, massas de polícias e guarda civis já praticam a algueirada de rua e desprezam a sua própria lei; e nom longe de aqui, na Grécia, ou na Turquia, o que consideramos cidadaos de a pé, pessoas como nós, aplaudem que lanchas carregadas de refugiados se fundam no mar. Na Galiza, as petiçons de prisom já chegárom contra o independentismo social e político.

Primo Levi escrevera “Se isto é um homem” para ilustrar como o ser humano reage em situaçons de barbárie, e para advertir contra a sua repetiçom. Cumpre esculcar as situaçons mais duras e selvagens, pois só assim podemos evitá-las, ou sobreviver a elas. No campo de concentraçom, observara como as pessoas se dividiam arredor de duas condiçons primárias, essenciais: os fundidos e os salvados. Os primeiros, privados de energia física, recursos organizativos, relaçons sociais, esvaravam por umha pendente de degradaçom, apatia, inconsciência, e finalmente acabavam num estado vegetativo e insensível que preludiava a morte; os segundos desdobravam toda umha colecçom de estratégias de camuflagem, negociaçom, pacto e traiçom, para sairem-se com a sua e ganhar pequenos privilégios. Sem alcançarmos tais níveis de degradaçom, alguns oligarcas de hoje já manifestam que preparam espaços blindados, tecnologias ponta e umha rede de apoio servil para sobreviverem num mundo cada vez mais asselvajado; e a moral dominante dos nossos dias, fabricada para a classe média ideológica, diz-nos aos trabalhadores que nom deixemos de preparar-nos para sermos superiores ao do lado, que sigamos reciclando-nos, que compitamos sem trégua, que nos re-inventemos, que consumamos enquanto pudermos, o mundo já estoupará. A pobreza persegue-te, nom olhes atrás, e se algum do lado cai, um rival menos na corrida. A filosofia do pícaro espanhol, como afirmou Guillermo Rendueles, é a moral do capitalismo em decadência. Salva-te ou funde-te.

Por sorte, nas tendências há sempre contra-tendências; nos exemplos, contra-exemplos, e na pior desolaçom, esperança. Nas sociedades de escasseza nascêrom os progroms, as adesons irracionais ao poder, a desconfiança como norma, as fugas e a evasom da própria responsabilidade; também a ajuda mútua, a auto-defesa contra os abusos, e a militáncia política. A conviçom de que nom existe na realidade salvaçom individual e si, em troca, saídas colectivas. No futuro que aí vem, a militáncia pode virar um recurso primeiro para dar-nos vida digna, possibilidade de cooperaçom e noçom de sentido. Esta realidade dura é tam volátil está tam aberta, que as mudanças radicais já nom resultam especulaçons, nem propostas utópicas. Se concordamos em que o horizonte está aberto, se temos assumido, portanto, que as nossas propostas nom som só proclamas morais, senom ideias realizáveis, já temos bastante avançado. O sentido de urgência traz sempre seriedade no trabalho, e a esperança, por incerta que for, alimenta toda luita.