Este artigo pretende pôr em discussão a ideia de que, compreendido como fase – como a fase superior do capitalismo, tal como proposto por Lenin –, o imperialismo comporta dentro de si diferentes fases, sustentando, entretanto, aqueles traços essenciais que o definem como a etapa mais recente no desenvolvimento do capitalismo. Mais do que isso, a proposta é a de debater o injustificado silêncio a respeito do tema registrado no período pós Segunda Guerra Mundial e demonstrar que o seu vigor no pós-1970 levanta uma série de discussões que buscam apreender suas determinações mais recentes, configuradas a partir de transformações substanciais ocorridas no próprio bojo do capitalismo, naquilo que fica conhecido como processo de financeirização da economia. Argumentamos, neste sentido, que as interpretações contemporâneas mais reforçam do que negam a apreensão de Lenin, apesar de, por vezes, assumirem como premissa a própria invalidação da tese leniniana.

Para tanto, trazemos na primeira seção interpretações que visam soterrar o debate sobre o imperialismo, baseadas que estão na percepção de que, na fase contemporânea de desenvolvimento do sistema capitalista, o imperialismo gerou o seu contrário a partir das ditas benesses supostamente trazidas pelo chamado processo de globalização, que levaria a uma etapa de estreita cooperação intercapitalista e, portanto, ao fim das rivalidades e disputas interimperiais.

Na segunda seção, tratamos de rebater esta construção com importantes interpretações marxistas acerca dos elementos constitutivos da nova fase do imperialismo, cada uma a seu modo demonstrando a intensificação, aprofundamento e complexificação das relações imperialistas e não o seu fim.

Concluímos com visões que tentam colocar em xeque a interpretação de Lenin em torno do imperialismo como fase do capitalismo, seja porque entendem o imperialismo em termos muito diversos aos de Lenin, seja porque enxergam características novas na forma de funcionamento do sistema que invalidam alguns dos cinco traços essenciais do imperialismo apontados pelo revolucionário russo. Nossa tentativa é, então, a de demonstrar que, ainda que determinados elementos possam se esgotar como determinantes do imperialismo contemporâneo, o núcleo essencial da construção de Lenin permanece válido como antes, e hoje com muito mais vigor e complexidade. Deste modo, fazemos um esforço de situar as interpretações contemporâneas sobre o imperialismo como concernentes com a noção leniniana do imperialismo enquanto fase do capitalismo, a despeito das próprias discordâncias que vão se gerando em torno desta questão no seio do debate.

1. A “morte” do imperialismo pelas mãos de Hardt e Negri

Depois de constar entre os temas de discussão mais proeminentes dentro do marxismo – sob o impacto causado pelas obras de Hilferding (1910/1985), Lenin (1917/2009), Bukharin (1917/1985) e Luxemburgo (1912/1985) –, o tema do imperialismo simplesmente desaparece de cena a partir de meados da década de 1970, exatamente (e ironicamente) num contexto de crescente dependência externa e perda da soberania nacional vivida pelas principais economias periféricas do globo. Esta constatação acerca da desaparição das discussões sobre o imperialismo foi feita já na década de 1990 por Prabhat Patnaik, que afirma que,

Curiosamente, isto não se dá porque alguém tenha teorizado contra o conceito. O silêncio sobre o imperialismo não é o resultado de um debate intenso a partir do qual a balança tenha se inclinado decisivamente em favor de um lado; não é um silêncio teoricamente auto-consciente. Também não se pode considerar que o mundo mudou tanto na última década e meia que falar de imperialismo tenha se tornado um óbvio anacronismo. (PATNAIK, 1990, p. 73, tradução própria).

O ponto é o paradoxo de que, enquanto o sistema de relações coberto sob a rubrica do imperialismo não mudou nem um pouco na última década e meia, questões fundamentais são hoje discutidas, ao contrário de antes, mesmo entre os marxistas, sem qualquer referência ao termo. (Idem, ibidem, p. 75, tradução própria).

O que justifica tal silêncio (inclusive!) no discurso marxista do período, de acordo com o argumento de Patnaik, não é o fim do imperialismo ou sua perda de importância, mas, contrariamente, a extraordinária força e vigor que este conjunto de relações econômicas características do mundo contemporâneo adquire naquele momento, reforçando sua “capilaridade” e sua capacidade de fazer frente a qualquer tipo de ameaça à sua hegemonia. É quase como se a evidência de sua existência e a certeza de sua sobrevivência fizessem de qualquer menção ao termo uma mera tautologia; como se reafirmar insistentemente que a fase do capitalismo prevalecente naquele momento era a sua fase imperialista fosse o mesmo que dizer obviedades em relação às quais não há nenhuma objeção; como se colocar em discussão as raízes, estrutura, lógica de funcionamento, contradições, impactos e tendências do imperialismo não fosse mais do que uma grandessíssima perda de tempo; como se, finalmente, a teoria do imperialismo não tivesse mais nada a dizer.

O fenômeno que parece ocorrer, entretanto, nos parece um pouco mais amplo do que sugere Patnaik. Trata-se, sem dúvida, de um revigoramento do imperialismo, bem como de sua capacidade de afirmar sua hegemonia. No entanto, ocorre que esse fato mais geral vem encoberto pelo discurso da globalização, algo que anuvia e mascara sua verdadeira natureza. O que se propala é a falsa ideia de que todas as nações são interdependentes e de que, por isso, a vinculação de todas elas à lógica global de acumulação seria benéfica a todas, tanto do ponto de vista econômico, quanto do ponto de vista social. Resgata-se com força o conhecido argumento das vantagens comparativas, travestido agora de uma roupagem moderna por meio do modelo Heckscher-Ohlin-Samuelson (bem como das novas teorias do comércio internacional), segundo o qual o padrão do comércio internacional é determinado pela diferença na disponibilidade dos fatores,1 levando a um aumento nos índices de produtividade, de competitividade, de rendimento e, portanto, a uma ampliação do bem-estar coletivo das massas, que se daria principalmente por meio do acesso ao mercado internacional. Enfim, tudo se passa como se o imperialismo tivesse se convertido no seu contrário.

É justamente nessa armadilha que, propositadamente ou não, caem Michael Hardt e Antonio Negri, que, com seu “Império”, publicado originalmente nos Estados Unidos em 2000, trazem de volta à baila o debate em torno do tema. Trata-se de uma espécie de retorno pós-moderno das discussões sobre o imperialismo, com um argumento que, a bem da verdade, faz desaparecer o próprio significado histórico do termo, que, de algo negativo e de natureza intrinsecamente exploradora, passa a algo bem visto e até mesmo necessário sob o prisma dos bons costumes, da democracia e da liberdade burguesas. Não à toa a obra foi tão celebrada no próprio coração do imperialismo mundial, já que “a proposta de Hardt e Negri é completamente inofensiva e em nada lesa os interesses do bloco imperial dominante”, sendo, mais do que isso, “perfeitamente funcional a seus planos de controle e dominação mundial”, como, com razão, afirma Borón (2006, p. 470).

Hardt e Negri (2002) partem da tese de que o imperialismo teria terminado e um império teria emergido, definindo o Império como “a substância política que, de fato, regula [as] permutas globais, o poder supremo que governa o mundo” (HARDT e NEGRI, 2002, p. 11). A noção que dá forma a este argumento é a de que a globalização é um processo que “libera” as relações econômicas de qualquer tipo de controle político, de modo que a soberania política dos Estados-nação apresenta-se em declínio, uma vez que estas estruturas de Estado perdem gradativamente o poder de regular e direcionar a circulação cada vez mais livre de dinheiro, pessoas, mercadorias e tecnologia. Nessas circunstâncias, seriam organismos nacionais e supranacionais, conduzidos por uma regra uniforme de interferência na lógica global, os novos detentores da soberania. Trata-se de uma espécie de aparelho de governo descentralizado, desterritorializado e, por isso, impessoal, que incorpora progressivamente toda a esfera global, expandindo poderes e eliminando as rivalidades entre diferentes potências. Em outras palavras, teríamos uma rede de poder única e abstrata que envolve todas as demais e as conduz de acordo com uma noção jurídica geral, de modo que os governos nacionais tornam-se submersos em processos multilaterais de governança global. O Império teria sobrestado todo e qualquer antagonismo nacional e transcendido as rivalidades interimperialistas. Nas palavras dos próprios autores,

[e]m contraste com o imperialismo, o Império não estabelece um centro territorial de poder, nem se baseia em fronteiras ou barreiras fixas. É um aparelho de descentralização e desterritorialização do geral que incorpora gradualmente o mundo inteiro dentro de suas fronteiras abertas e em expansão. O Império administra entidades híbridas, hierarquias flexíveis e permutas plurais por meio de estruturas de comando reguladoras. As distintas cores nacionais do mapa imperialista do mundo se uniram e mesclaram, num arco-íris imperial global. (HARDT e NEGRI, 2002, p. 12, o itálico é original)

Embora reconheçam o peso dos Estados Unidos na lógica do Império, entendem que nem o Estado norte-americano nem qualquer outro poderia se posicionar enquanto autoridade regente do processo de globalização e mantenedora da nova ordem mundial, uma vez que este posto já não existe mais, já teria sido extirpado pelo processo de globalização e pela queda dos muros dos Estados-nação que ela traria consigo.

Para além das vozes destoantes isoladas, ecoando a partir de alguns cantos da periferia do globo antes mesmo que as ideias de Hardt e Negri fossem postas em cena, a abordagem destes autores pode ser facilmente refutada pelos eventos que culminaram com os ataques de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, a partir dos quais a administração de George W. Bush expõe com a maior clareza possível seus propósitos de utilização massiva de seu conhecido poder militar para levar a dominação norte-americana global às suas últimas consequências. Acreditamos que as contribuições a serem expostas na sequência oferecem excelentes contrapontos que reforçam o que os fatos, por si sós, já elucidam bem.

2. As contribuições marxistas anti-Império

Uma influente análise acerca das feições contemporâneas do imperialismo é conduzida por Panitch e Gindin (2006), que objetivam demonstrar a não validade das teses clássicas do imperialismo para explicar o período recente, em especial no que toca às suas conclusões acerca de uma rivalidade interimperialista fundada na separação econômica do capitalismo em diferentes etapas. Para tanto, os autores argumentam em favor da constituição de um império informal norte-americano que adquiriu imensa capacidade de incorporar eventuais rivais e conduzir com mãos de ferro “a difusão das relações sociais capitalistas a todos os recantos do mundo” (PANITCH e GINDIN, 2006, p. 22).

Panitch e Gindin (2006) identificam nas crises estruturais do capitalismo os definidores das relações que vão se estabelecendo entre os diferentes Estados-nação e os contornos que vão se desenhando a partir daí em termos de soberania e concorrência entre grandes potências. Deste modo, a primeira grande crise estrutural do capitalismo ocorrida no pós-1870 teria acelerado a rivalidade interimperialista que deu substrato à Primeira Guerra Mundial e à revolução comunista. A Grande Depressão de 1929 (ou a segunda crise estrutural) teria revertido as tendências internacionalistas do capitalismo e provocado um arrefecimento dos conflitos entre as grandes potências, cenário que, embora tenha sido interrompido durante a Segunda Guerra Mundial, se estendeu posteriormente até o fim dos “anos dourados” do capitalismo. A globalização capitalista que se seguiu à terceira grande crise capitalista ocorrida na década de 1970, embora retomasse algum nível de competição, especialmente econômica, entre regiões, provoca um novo e mais profundo impulso, guiado especialmente pela intensificação das relações comerciais entre nações, pela aceleração dos investimentos diretos estrangeiros (IDE’s) e pela crescente internacionalização financeira, produzindo algo bastante distinto das antigas rivalidades interimperiais.

Na visão dos autores, logo ao final da Segunda Guerra Mundial, em função da recuperação da economia norte-americana durante o conflito e, mais especialmente, da necessidade de profunda reconstrução pós-guerra dos Estados arrolados no núcleo da rivalidade interimperialista (particularmente Europa e Japão), os Estados Unidos assumem o posto de império informal capaz de “integrar todas as outras potências capitalistas dentro de um sistema efetivo de coordenação sob sua égide” (PANITCH e GINDIN, 2006, p. 34).

O fato de ser informal, portanto, está vinculado à ideia de que esta modalidade de imperialismo se baseia não na diluição das fronteiras nacionais (como propunham Hardt e Negri) ou em sua transposição, mas na penetração destas fronteiras, na integração dos diferentes Estados como elementos componentes do império informal estadunidense e, mais do que isso, como instrumentos através dos quais os Estados Unidos põem em prática e fortalecem a globalização dos mercados e da lógica capitalista de acumulação, assumindo, para tanto, o controle sobre as regras que regem todo este processo. Desta forma, o que ocorre é que o império informal domina através de outros Estados, coordena todas as outras potências capitalistas, exercendo seu domínio através de outros Estados, se utiliza dos Estados estruturados sob a sua tutela no sentido de que estes atuem como responsáveis por “criar as condições internas necessárias para sustentar a acumulação internacional, como a estabilidade dos preços, as limitações à militância operária, o tratamento nacional aos investimentos estrangeiros e a saída irrestrita de capitais” (PANITCH e GINDIN, 2006, p. 43, o itálico é original), algo absolutamente funcional ao império informal norte-americano, cuja ascensão se deu justamente baseada nos princípios da exportação de capitais e da consequente integração internacional. “Portanto, os estados-nação não estavam desaparecendo, mas somando responsabilidades” (Idem, ibidem, p. 43).

E o interessante é que a expansão desse império informal “não foi tanto uma imposição unilateral (ou meramente coercitiva), mas majoritariamente um ‘imperialismo por convite’” (PANITCH e GINDIN, 2006, p. 34). E nada foi tão emblemático dessa situação do que os desdobramentos da conferência de Bretton Woods, em 1944, com a constituição de instituições como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial que permaneceram, desde o princípio, sob clara coordenação norte-americana.

Um aspecto importante presente em Panicth e Gindin que pode, inclusive, ser utilizado para refutar a perspectiva de Hardt e Negri – bem como para nos ajudar a repensar a questão da dependência no período atual – é a ideia segundo a qual o fato de

que o império norte-americano tenha se reconstituído de maneira tão bem-sucedida através das últimas décadas do século XX não significa que o capitalismo global tenha alcançado um novo plano de estabilidade. Na verdade, é possível afirmar que as dinâmicas de instabilidade e contingência são sistematicamente incorporadas à forma reconstituída do império. Em boa medida, porque a competição intensificada própria ao neoliberalismo e a hipermobilidade da liberalização financeira agravem o desenvolvimento desigual e a extrema volatilidade inerente à ordem global. E mais, esta instabilidade se vê dramaticamente amplificada pelo fato de que o estado norte-americano somente pode dominar este sistema através de outros estados, e converter todos em estados “efetivos” para o capitalismo global não é um assunto simples. (2006, p. 46-47)

Numa crítica a esta perspectiva, Callinicos (2005) parece forçar um pouco a mão ao tentar enquadrar Panitch e Gindin na mesma perspectiva de Hardt e Negri, apegando-se às conclusões convergentes a que chegam ambas as duplas de autores. Parece haver aqui uma certa injustiça, uma vez que as vias que levam a tais conclusões são claramente opostas. Ao contrário de Hardt e Negri, Panitch e Gindin defendem a inexistência contemporânea de uma rivalidade interimperialista, não por falta de imperialismo e excesso de “irmandade” entre nações, senão pelo extraordinário ganho de posição dos Estados Unidos a partir de meados do século XX e pelo fortalecimento sem precedentes de seu poder geopolítico nos últimos trinta anos, pelo menos.

Para compreender o que caracteriza o período imperialista atual, Callinicos (1994) parte da definição de três fases principais na história do imperialismo, a saber: i) imperialismo clássico (1875-1945), com a constituição de um mundo política e economicamente multipolar e no qual a competição entre capitais e a expansão territorial pela via colonialista estavam estreitamente conectados com a irrupção de conflitos militares entre os Estados, o que teria levado à partilha desigual do mundo entre as principais potências imperialistas; ii) imperialismo de superpotências (1945-1990), com a constituição de um mundo politicamente bipolar, mas economicamente multipolar, de tal forma que a distribuição do poder político-militar perde sua correspondência com o poder econômico como era característico da etapa anterior; e iii) imperialismo depois da Guerra Fria, com o retorno a um mundo política e economicamente multipolar, de modo que as teorias clássicas do imperialismo recuperam sua capacidade de explicar o capitalismo e o imperialismo atuais, embora a competição interimperialista corrente seja muito mais feroz e mais instável do que foi no passado.

Contrariando a percepção de Panitch e Gindin (2006), Callinicos (1994) entende que, nesta última fase do imperialismo, rompe-se com a tendência à constituição de uma única superpotência mundial. Neste sentido, ele percebe que o colapso do stalinismo figura como o evento histórico de maior importância, justamente porque suspende uma rígida divisão bipolar do mundo e deixa claros os contornos de uma nova fase de competição interimperialista. E o ponto principal de revigoramento desta tendência seria a emergência de novos centros de acumulação de capital fora do núcleo imperialista, formados especialmente pela industrialização parcial verificada nessas estruturas econômicas, dando origem aos subimperialismos do Terceiro Mundo. Estes últimos só avançaram graças ao suporte das superpotências, uma vez que os arranjos que permitiram aos subimperialismos assumir um importante papel regional do ponto de vista da dominação política e militar envolviam uma convergência de interesses entre as classes dominantes imperialistas e subimperialistas. Tal jogo de interesses e a consequente emergência de potências regionais no Terceiro Mundo, no entanto, não promoveu uma abolição da hierarquia mundial já estabelecida, mas apenas sua alteração já que, na visão do autor, foram exatamente as políticas das grandes potências mundiais que permitiram o ganho de espaço alcançado pelas nações subimperialistas e não o seu virtuoso nível de desenvolvimento capitalista.

A visão de Callinicos nos parece um tanto problemática. Atribuir um peso tão grande à participação de potências medianas no jogo imperialista mundial faz parecer que tais países subimperialistas contam com alta margem de intervenção e alto poder no sentido de rivalizar com a(s) potência(s) hegemônica(s), algo que se refuta pela simples percepção do que se passa nas cúpulas de grandes órgãos multilaterais como a ONU e o FMI. Reside aqui um outro ponto de discordância relevante: o próprio Callinicos reconhece que os arranjos que levaram à constituição desses centros de poder regional demonstram uma intrínseca conexão entre estes e as superpotências. Sendo assim, sequer há uma clara rivalidade entre imperialistas e subimperialistas que justifique a visão de que estes últimos representam aqueles aptos a fazer frente a um superpoder mundial. Neste sentido, nos parecem muito mais próximas da realidade as percepções levantadas por Panitch e Gindin (2006).

No entanto, para não sermos injustos com Callinicos, é necessário reconhecer que, em seus trabalhos posteriores2 – particularmente baseado na Guerra do Iraque, iniciada retoricamente como reação aos eventos ligados ao 11 de setembro norte-americano, politicamente como forma de os Estados Unidos reforçarem sua hegemonia e economicamente como um importante caminho para algum tipo de controle norte-americano sobre a produção petrolífera da região3 –, o autor se aproxima da percepção da constituição de uma potência imperialista única, o que apenas robustece os indiscutíveis argumentos nessa direção. Foi interessante mencionar a divergência com base no seu trabalho de 1994 apenas para enfatizar a rapidez com que as tendências foram sendo solapadas. Não fica claro apenas se Callinicos entende que esses novos desenvolvimentos representariam uma quarta fase na história do imperialismo ou se se trata de uma revisão das características da terceira fase.

Fica claro, entretanto, que, apesar desta revisão de posição, Callinicos (2005) ainda mantém um importante questionamento às teses de Panitch e Gindin (2006): a hegemonia norte-americana pode ser válida do ponto de vista político e militar, mas em absoluto o é do ponto de vista econômico. Assim sendo, não deve ser subestimado o potencial desestabilizador das rivalidades econômicas entre grandes corporações transnacionais, cujos investimentos e mercados são concentrados em um dos três pontos da tríade América do Norte, Europa Ocidental e Japão, além da China, e cujo suporte estatal às suas lutas competitivas permanecem como uma característica estrutural da economia política global contemporânea, de tal sorte que os conflitos que daí podem derivar estão sempre em germinação.

Em consonância com a interpretação de Panitch e Gindin (2006) acerca da constituição de uma única superpotência imperial e da extinção das rivalidades entre várias potências imperialistas típica do período condizente com a análise clássica, Borón (2006, p. 461) ressalta que os Estados Unidos apresentam-se como “um tipo de império benévolo que nem oprime nem explora, mas sim corta os setes mares para libertar os povos das correntes do atraso e da opressão e para semear o livre comércio e a democracia”.

Reconhecendo a figura central assumida pelos Estados Unidos, tanto do ponto de vista de seu poderio militar, quanto do ponto de vista de sua capacidade de articular os diversos estados centrais, fazendo deles fortes aliados (além de beneficiários) das suas intenções cada vez mais explícitas de controlar tudo aquilo que se passa na superfície do globo, Borón (2006) introduz a ideia de que as teorizações clássicas sobre o imperialismo teriam se tornado obsoletas por três razões: i) a expansão imperialista se dá não somente na crise como sugerem os clássicos, mas também nos períodos de prosperidade; ii) a concorrência econômica não se traduz mais necessariamente em conflitos armados; e iii) a acumulação capitalista se mundializa, expandindo-se para os mais distantes rincões do planeta.

Neste sentido, Borón (2006) sugere que os elementos fundamentais para a caracterização do imperialismo contemporâneo passam pelo reconhecimento da ocorrência de um acelerado processo de financeirização da economia mundial e pela percepção de que são introduzidos novos instrumentos de dominação tais como o FMI, o Banco Mundial, o BID, a OMC, bem como aspectos constitutivos de um tipo de imperialismo cultural.

Do ponto de vista da periodização dos eventos históricos, a interpretação de Borón parece estar em linha com a oferecida por Sotelo Valencia (2007), autor segundo o qual aquela que corresponde à definição clássica do imperialismo teve sua vigência do início do século XX até a queda da URSS em 1989-91, constituindo-se a partir daí uma nova fase do imperialismo que se estende até o presente. Entretanto, Valencia diverge de Borón no sentido de compreender que o imperialismo contemporâneo nada mais é do que uma versão mais complexa da noção clássica do imperialismo, uma vez que são introduzidos novos elementos à lógica capitalista (não muito diversos daqueles apontados por Borón) que levam a uma necessidade de ampliação das categorias clássicas ao invés de sua refutação para o presente. Harvey (2004) está entre os que reconhecem o impressionante ganho de hegemonia dos Estados Unidos especialmente a partir do último quartel do século XX e, nessa linha, identifica um tipo muito particular de atuação imperialista levada a cabo por esta potência através do uso de instrumentos de espoliação. A interpretação de Harvey passa pela ideia de que o capitalismo se apresenta em permanente estado de sobreacumulação, necessitando, por isso, de territórios dominados por formações pré-capitalistas em direção aos quais possa se expandir, convertendo-os em capitalistas de fato.4 Nesse mote, o autor traz à tona a ideia de acumulação primitiva (proposta por Marx) como uma característica permanente do capitalismo e introduz o termo “acumulação por espoliação” como o comportamento predominante no capitalismo moderno e o fio condutor do processo de globalização.

A acumulação por espoliação seria a solução para os problemas de sobreacumulação, isto é, a saída encontrada pelo capital para uso dos excedentes ociosos sem aplicação lucrativa. Nestes termos, Harvey esclarece:

[o] que a acumulação por espoliação faz é liberar um conjunto de ativos (incluindo força de trabalho) a custo muito baixo (e, em alguns casos, zero). O capital sobreacumulado pode apossar-se desses ativos e dar-lhes imediatamente um uso lucrativo. […] O colapso da União Soviética e depois a abertura da China envolveram uma imensa liberação de ativos até então não disponíveis na corrente principal da acumulação do capital. […] se o capitalismo vem passando por uma dificuldade crônica de sobreacumulação desde 1973, então o projeto neoliberal de privatização de tudo faz muito sentido como forma de resolver o problema. Outro modo seria injetar matérias-primas baratas (como o petróleo) no sistema. Os custos de insumos seriam reduzidos e os lucros, por esse meio, aumentados. (2004, p. 124)

O mesmo objetivo pode, no entanto, ser alcançado pela desvalorização dos ativos de capital e da força de trabalho existentes. Esses ativos desvalorizados podem ser vendidos a preço de banana e reciclados com lucro no circuito de circulação do capital pelo capital sobreacumulado. (2004, p. 124)

Sinteticamente, é possível então dizer que, para Harvey, todo o problema está relacionado à desvalorização de ativos de modo que estes possam ser reutilizados de maneira lucrativa pelo capital sobreacumulado. Como bem percebe Stathakis (2008, p. 116-117, tradução própria), “[…] parece um capitalismo de roubo, ao invés de um capitalismo de reprodução ampliada, investimento, aumento da produtividade do trabalho e tudo o mais”.

O ponto chave no argumento de Harvey é que este processo de acumulação por espoliação se dá sob a chancela do Estado, o que conduz à ideia de que o imperialismo contemporâneo é caracterizado justamente pelo ganho de importância da acumulação por espoliação frente ao clássico processo de reprodução expandida. Nas palavras do próprio Harvey,

[…] as intervenções militares são a ponta do iceberg imperialista. O poder hegemônico do Estado costuma ser empregado para garantir e promover arranjos institucionais internacionais e externos por meio dos quais as assimetrias das relações de troca possam funcionar em favor do poder hegemônico. É por meio desses recursos que, na prática, se extrai um tributo do resto do mundo. O livre mercado e os mercados de capital abertos tornaram-se o meio primário de criar vantagem para os poderes monopolistas com sede nos países capitalistas avançados que já dominam o comércio, a produção, os serviços e as finanças no mundo capitalista. O veículo primário da acumulação por espoliação tem sido por conseguinte a abertura forçada de mercados em todo o mundo mediante pressões institucionais exercidas por meio do FMI e da OMC, apoiados pelo poder dos Estados Unidos […] de negar acesso ao seu próprio mercado interno aos países que se recusam a desmantelar suas proteções. (2004, p. 147, o itálico é original)

Portanto, a espoliação se torna a forma elementar de acumulação e seria este o cerne da prática do “novo imperialismo”, que não é nada mais do que uma revisitação do “velho imperialismo”, daquilo que a Grã-Bretanha já havia posto em prática no passado (o roubo que tornou possível a acumulação de capital originária) e que agora é conduzido pelos Estados Unidos, ainda que num momento histórico bastante diverso.

Outro argumento que vai na mesma direção do de Harvey quanto à afirmação do poderio imperial americano nas últimas décadas é construído por Gowan (2003). Seu ponto de vista quanto à inequívoca centralidade que hoje têm os interesses e a atuação americanos fica visível já no título da obra: A Roleta Global: uma aposta faustiana de Washington para a dominação do mundo. O ponto principal de Gowan é que tanto a globalização quanto a financeirização foram e estão sendo levadas a cabo pelas poderosas mãos do Estado americano, sendo seus principais instrumentos a particular configuração que assumiu o sistema monetário internacional desde o fim de Bretton Woods, com a constituição daquilo que ele chama de “regime de dólar Wall Street”, e o intenso processo de abertura e liberalização das finanças, que se fortalece a partir dos anos 1980 e ganha ainda mais força política nos anos 1990. Em outras palavras, para ele, a financeirização do processo de acumulação, para além de sua lógica stricto sensu econômica, atende fundamentalmente aos interesses do Estado americano e do grande capital produtivo-financeiro americano, ao qual vêm se associar, após um início incômodo, os principais interesses da Europa Ocidental, cujos países teriam se tornado sócios interessados no sucesso desse projeto.

Nesse sentido, para o autor, a globalização não seria nada mais do que a transformação do ambiente externo aos países induzida pelos Estados Unidos por meio da abertura das economias domésticas à entrada de produtos, empresas, fluxos e operadores financeiros dos países centrais, tornando-as cada vez mais dependentes de decisões e acontecimentos que se passam nos centros do sistema, em particular Washington e Nova York. De outro lado, o neoliberalismo seria o nome dado às transformações impulsionadas pelas mesmas mãos no ambiente interno de cada economia nacional, no sentido de alterar relações sociais e instituições em benefício de credores e investidores, de subordinar os setores produtivos aos setores financeiros e de alijar a maior parte da população trabalhadora da riqueza, do poder e da segurança. Nas palavras do autor:

[i]magina-se muitas vezes que os processos comumente associados à globalização sejam mais impulsionados por forças tecnológicas e/ou econômicas do que pelas capacidades políticas e interesses capitalistas da nação americana e das elites empresariais. Mas, na primeira parte deste livro eu mostro que o processo de globalização tem sido impulsionado de modo crucial pelo enorme poder político colocado nas mãos da nação americana e do empresariado dos Estados Unidos por meio do tipo particular de sistema monetário internacional e do regime financeiro internacional associado que foi construído – em grande parte pelo governo dos Estados Unidos – sobre a ruína do sistema de Bretton Woods. Uma vez que compreendamos a natureza do atual regime monetário e financeiro,5 poderemos compreender como ele pôde ser utilizado como um formidável instrumento de política econômica nas mãos de sucessivas administrações americanas. (GOWAN, 2003, p. 11).

Seguindo uma linha de análise completamente diferente das abordagens anteriores, Wallerstein (2003) parte da compreensão de que o desenvolvimento do capitalismo tem estreita relação com uma dinâmica histórica dividida por grandes flutuações, tal como apreendido pela teoria dos ciclos de Kondratiev. Neste sentido, embora ele reconheça que estamos claramente vivendo um período de transformação, não se trata do ingresso num mundo já há muito globalizado, mas, na realidade, a entrada numa fase de transição e de metamorfose daquilo que ele chama de sistema-mundo. Quanto a isto, Wallerstein esclarece:

[o] que se entende por uma economia-mundo é uma grande zona geográfica dentro da qual há uma divisão do trabalho e, portanto, significativa troca interna de bens básicos ou essenciais, bem como fluxos de capital e trabalho. A característica definidora de uma economia-mundo é que não é delimitada por uma estrutura política unitária. Pelo contrário, há muitas unidades políticas dentro da economia-mundo, frouxamente amarradas em nosso moderno sistema-mundo em um sistema interestatal. E uma economia-mundo contém muitas culturas e grupos. Isso não significa que eles não envolvem alguns padrões culturais comuns […]. Isso significa que nem a política nem a homogeneidade cultural deve ser esperadas ou encontradas em uma economia-mundo. O que unifica a estrutura é a divisão do trabalho que é constituída em seu interior. (2004, p. 23, tradução própria, itálicos do autor).

Neste sentido, considerando que o sistema capitalista deve ser entendido como um sistema no qual é dada prioridade à interminável acumulação de capital – e não meramente como uma organização social na qual pessoas e firmas produzem para obter salário e lucro –, Wallerstein (2004, p. 24) conclui que apenas o moderno sistema-mundo tem sido uma economia capitalista e que a economia-mundo e o sistema capitalista andam juntos. O propósito da acumulação de capital é mais acumulação de capital, num processo contínuo e sem fim.

Nesses termos, a década de 1960 teria assistido à saturação do mercado mundial e à consequente diminuição da rentabilidade de grandes setores industriais dada pelo “crescimento da produção mundial decorrente da retomada e da expansão da produção da Europa Ocidental e do Japão” (Wallerstein, 2003, p. 76), algo que teria provocado uma mudança na destinação principal dada aos recursos capitalistas, que teriam passado da esfera produtiva para a financeira,6 assim como provoca um deslocamento da produção dos grandes centros capitalistas para regiões em processo de industrialização e desenvolvimento.

Configura-se, assim, um período de recessão a partir da década de 1970, indicando a saída de uma fase A do ciclo de Kondratiev (representada pelos 30 anos gloriosos) e a concomitante entrada numa fase B, cujo aprofundamento e perturbações põem em discussão a existência de mecanismos estabilizadores que conduziriam ao restabelecimento do equilíbrio e à posterior entrada numa nova fase A. A resposta de Wallerstein é a de que isso sem dúvida se configuraria. “Entretanto, o equilíbrio nunca é restaurado imediatamente, mas somente após um desvio suficiente frente à norma. Além disso, a correção, evidentemente, jamais é perfeita” (2003, p. 84-85), de modo que o equilíbrio jamais se restabelece num mesmo nível, considerando as mudanças sistêmicas provocadas pelos mecanismos corretores das perturbações.

Nestas circunstâncias, isto é, nessa busca incessante pelo restabelecimento do equilíbrio, teriam se manifestado três grandes tendências seculares que entram em confronto com a lógica capitalista de interminável acumulação (posto que já estariam em processo há 400 ou 500 anos, de acordo com Wallerstein): i) o processo de desruralização ou urbanização; ii) o esgotamento ecológico; e iii) a democratização. Esse triplo processo se choca com a tendência mais geral do sistema, produzindo uma pressão poderosa sobre os níveis de lucro, seja por aumento dos custos do trabalho, seja por aumento dos custos dos fatores de produção, seja, finalmente, por aumento dos impostos para manutenção de um estado de bem-estar social. O desencadeamento de tais tendências estaria impedindo que os ciclos caminhassem no sentido de um retorno ao equilíbrio e o sistema estaria se vendo diante de sua crise final, a partir da qual uma nova estrutura com novos ciclos, tendências e equilíbrios se faria possível. Para Wallerstein, seria este o momento atual vivenciado pelo sistema capitalista mundial: uma nova fase do capitalismo que, longe de representar uma fase imperialista diz muito mais respeito a uma fase de transição a algo novo, desconhecido e indefinível.

3. Uma nova fase do imperialismo?

Todas as contribuições antes levantadas colocam em jogo a discussão a respeito de se os novos elementos que passam a compor o funcionamento do sistema capitalista são suficientes no sentido de indicar que adentramos numa nova fase do imperialismo. A pergunta com a qual iniciamos estas considerações finais é, portanto: ainda podemos falar de imperialismo no mesmo sentido de antes, isto é, no mesmo sentido discutido pelos teóricos clássicos? A partir das interpretações antes apresentadas – as mais influentes dentro do campo marxista acerca de como se constitui o imperialismo contemporâneo –, há indícios de que já não estamos mais lidando com um tipo de imperialismo desenhado naqueles moldes ou baseado na estrutura proposta por Lenin, Hilferding e Bukharin.

Na tentativa de confirmar esta conclusão, sugerimos uma outra questão: ainda há imperialismo? Antes de discuti-la é necessário notar que, segundo Corrêa (2011), o contorno que se desenha para as teses clássicas do imperialismo é o de que as abordagens de Hilferding e Bukharin se aproximam de uma interpretação do imperialismo como a conformação política necessária para lidar com a era do capital financeiro, enquanto a interpretação de Lenin reconhece no imperialismo algo além de um mero arranjo político, entendendo este processo como uma fase particular do desenvolvimento capitalista, sua fase monopolista, de tal forma que sua análise leva a cabo uma proposta de periodização histórica do desenvolvimento capitalista.

Panitch e Gindin (2006, p. 25) sugerem que o erro fundamental de Lenin foi justamente o de considerar o capitalismo recortado em fases distintas. Sendo assim, o correto seria considerar o capitalismo imperialista como uma extensão da teoria capitalista do Estado em lugar de uma derivação direta da teoria dos estágios ou crises econômicas.

No mesmo sentido de uma crítica a Lenin, Powell (2011) sugere que o imperialismo não representa uma etapa do capitalismo, mas

[…] um conjunto de práticas dentro de um quadro global cujas características precisas refletem as realidades de um estágio particular do capitalismo (mercantil, competitivo, monopolista, financeiro), ou, igualmente, de formações sociais pré-capitalistas. Estas práticas envolvem o uso de meios econômicos e também militares, políticos e socioculturais para exercer poder e extrair vantagens além das fronteiras. (2011, p. 26, tradução própria)

Enquanto a concentração e a formação de monopólios, no centro e na periferia, são características do capitalismo contemporâneo, não há relação causal necessária entre essas características e o imperialismo. Da mesma forma, enquanto a sobreacumulação de capital e/ou a queda da taxa de lucro podem coincidir com um aumento do imperialismo em uma conjuntura particular, eles não são características que definem o fenômeno. Para isso, tudo que é necessário é a busca fundamental de agentes capitalistas por maiores lucros e pela expansão do processo de acumulação dentro de uma desigual hierarquia global de estados. (2011, p. 26, tradução própria)

A nosso ver, entretanto, ao chamar de imperialismo o estágio particular do capitalismo em que se consolidam os grandes monopólios, a exportação de capitais e a dominação do capital financeiro, com a consequente partilha do mundo entre os países capitalistas mais maduros, Lenin pretendia demarcar uma etapa de concentração de riqueza e de poder econômico e político absolutamente nova na história mundial. Assim sendo, parece fazer todo sentido o uso do termo imperialismo para tratar de um momento em que se fazem presentes ao extremo todas as tendências do capitalismo antes apontadas por Marx. Concordar ou não com Lenin, portanto, parece dizer mais respeito à compreensão que se tem da ideia de imperialismo – isto é, se o termo reflete uma mera política de expansão territorial e domínio político-econômico ou se, na realidade, diz respeito a uma transformação sistêmica mais ampla – do que propriamente a uma discordância em relação ao fato de que o mundo, a partir das décadas finais do século XIX, teria atravessado mudanças profundas em sua estrutura de funcionamento e organização, ingressando, seguramente, em uma nova fase de seu desenvolvimento. Quanto a isto não parece haver muitos desacordos.

Seja como for, ainda que Powell (2011) esteja certo e que os imperialismos sejam vários, não nos parece exageradamente inadequado assumir a noção leninista do termo no sentido de iluminar uma divisão clara entre os imperialismos de antes de 1880 e os de depois. Desta feita, não entendemos como uma contradição ou um equívoco considerar o imperialismo, no sentido dado por Lenin, como uma etapa do capitalismo, nem tampouco considerar que o próprio imperialismo pode, ele mesmo, comportar distintas fases. Nestes termos, não nos parece absurdo que estejamos numa nova fase do imperialismo.

O que se torna válido, entretanto, é perceber que o imperialismo atual já não é mais conduzido pelas mesmas características pontuadas por Hilferding, Lenin e Bukharin (pelo menos, não por todas elas). Alguns desses traços ainda estão presentes nesta fase atual do imperialismo, mas outros perderam importância frente às transformações ocorridas nos últimos 50 anos da história do capitalismo mundial, como é o caso da noção de capital financeiro.

Neste tocante, o que se tem é que a abordagem de Hilferding, seguida posteriormente por Lenin e Bukharin, é validada pelo predomínio das grandes corporações multinacionais na economia mundial ainda hoje, mas já não consegue explicar a habilidade que essas grandes corporações têm adquirido no sentido de financiar seus investimentos sem recorrer pesadamente à figura dos bancos, de modo que aquela noção de capital financeiro – entendido como a fusão entre o capital industrial e o capital bancário – apontada por Hilferding em seus escritos perde sentido no momento atual7 (LAPAVITSAS, 2011, p. 13).

Os mecanismos que eximem as empresas não financeiras do recurso aos bancos envolvem a retenção de seus próprios lucros e, em maior medida, o acesso aos mercados financeiros abertos, enormemente facilitado pela flexibilidade conferida às operações realizadas e pelo baixo custo das mesmas. Em função dessa situação, os “[…] capitais monopolistas se tornaram ‘financeirizados’, ou seja, eles são mais independentes em relação aos bancos e mais fortemente envolvidos em suas próprias atividades financeiras” (Ibid., p. 14).

Esse movimento força os bancos a reestruturarem suas atividades, voltando-se com maior vigor para as famílias e indivíduos – que se apresentam como importantes fontes de lucratividade, uma vez que a ampliação dos mecanismos de crédito faz com que parte significativa de suas rendas passe a ser dedicada ao pagamento de juros – e para as atividades de mediação financeira através das quais os bancos recebem taxas e comissões. O impacto dessa reestruturação é o que Lapavitsas identifica como a “financeirização dos rendimentos do trabalho” resultante do crescimento dos empréstimos tomados para o pagamento de hipotecas, gastos com educação, saúde, bens de consumo, etc., assim como com a aquisição de ativos financeiros tais como fundos de pensão, seguros, dentre outros, revelando o extenso movimento de completa mercantilização do consumo dos trabalhadores, que, além do mais, passa a contar, quase que infalivelmente, com a mediação do sistema financeiro. Deste modo, se configura a extração de lucros por parte dos bancos e demais instituições financeiras diretamente dos salários em lugar da mais valia. Esta seria a característica mais gritante e mais perniciosa do processo de financeirização que emblematiza a atual fase de desenvolvimento do sistema capitalista e que Lapavitsas (2011) define como uma transformação estrutural e sistêmica das economias capitalistas maduras, ou uma mudança da economia rumo ao setor financeiro. Mais precisamente, trata-se de uma mudança de rumo que leva a um ganho de autonomia do setor frente aos demais:

[f]inanceirização, em suma, não equivale à dominância dos bancos sobre o capital industrial e comercial. Mais do que isso, trata-se da autonomia cada vez maior do setor financeiro. O capital industrial e o capital comercial são capazes de tomar empréstimos em mercados financeiros abertos, sendo mais fortemente envolvidos em transações financeiras. Enquanto isso, as instituições financeiras têm procurado novas fontes de rentabilidade na renda pessoal e em atividades de mediação no mercado financeiro. (2008, p. 34, tradução própria)

Sendo assim, não é falacioso dizer que algo de Lenin, Hilferding e Bukharin ainda caracteriza o período atual, mas é absolutamente insuficiente fazer esta afirmação,8 particularmente se abraçamos as interpretações que percebem na financeirização o principal regente do processo de acumulação mundial no capitalismo contemporâneo, produzindo uma divisão hierárquica do mundo ainda mais concentradora e desigual, bem como uma estrutura de controle e dominação um tanto mais nebulosa, obscura e, por isso mesmo, difícil de ser diluída.

Por tudo o que foi dito até aqui, é necessário notar que o imperialismo hoje é muito mais robusto do que foi no passado, tanto do ponto de vista da prática imperialista propriamente dita, quanto do ponto de vista da incorporação ideológica por parte de tantas mentes e tantos corações.

Concluindo, a despeito de todas as controvérsias e debates em torno do tema, nos parece que alguns elementos podem ser assumidos como irrefutáveis nessa fase atual do desenvolvimento capitalista, posto que salta aos olhos sua consideração em quase todas as análises acima mencionadas: o imperialismo é hoje muito mais vigoroso do que foi no passado, em especial por apresentar-se sob a camuflagem do discurso globalizante; o imperialismo apresenta hoje traços que o distinguem do imperialismo clássico; os EUA assumem uma posição altamente favorável nesse processo e, ainda que algumas interpretações questionem a importância econômica deste país (ou defendam a perda de influência nesta esfera), a nosso ver, enquanto o dólar sustentar seu status de dinheiro mundial, a posição norte-americana, inclusive como potência economicamente hegemônica, também se sustenta; a financeirização aparece como a transformação na esfera econômica de maior proeminência no sentido de justificar as apreensões que indicam a constituição de uma nova fase do capitalismo a partir do último quarto do século passado.

Referências Bibliográficas

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[acesso em 14 mar. 2012]

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1 Cabe observar que, apesar da similaridade entre o velho argumento ricardiano das vantagens comparativas assentado na suposta “vocação natural” de cada país e o argumento “moderno”, que apela para a desigual disponibilidade de fatores, este último é ainda mais contraditório, pois “vocação natural” remete, bem ou mal, para determinações e restrições provindas da natureza, enquanto “disponibilidade de fatores” (leia-se fatores de produção) remete à questão nada natural sobre a disponibilidade de capital dentro de cada país. De qualquer forma, Heckscher e Ohlin fizeram à teoria neoclássica o grande favor de resgatar um argumento tão importante para o discurso liberal do invólucro da teoria do valor-trabalho, onde ele estava incomodamente inserido.

2 Ver a este respeito Callinicos (2003, 2005 e 2009).

3 A respeito da importância do controle sobre as reservas petrolíferas, veja-se Harvey, 2003, pp. 11-30.

4 Neste sentido, Harvey retoma as ideias de Rosa Luxemburgo a respeito da necessidade capitalista de uso de formações não-capitalistas para levar adiante sua expansão. À diferença de Harvey, entretanto, Luxemburgo (1912/1985) entende que este processo é resultado de crises de subconsumo.

5 Gowan assenta a criação do regime de dólar Wall Street em dois pilares fundamentais que teriam sido construídos com sucesso pelos governos americanos e pelos interesses capitalistas a eles associados. Em primeiro lugar era preciso desvincular o dólar do ouro e transformar o sistema monetário internacional num padrão dólar puro, mudança que tinha defensores no governo americano como Paul Volcker desde o final dos anos 1960. Em segundo lugar era preciso assegurar que as relações financeiras internacionais saíssem do controle dos Bancos Centrais e fossem cada vez mais concentradas nos operadores financeiros privados. Ambas as transformações teriam sido obtidas com enorme eficácia, com uma das medidas fortalecendo a outra. Citemos apenas os subprodutos imediatos que teve a desvinculação do dólar. Com a forte desvalorização que se seguiu ao rompimento unilateral de Bretton Woods, os preços dos principais insumos como o petróleo ficaram desalinhados em termos da moeda americana, tornando inevitável um forte ajuste. Segundo Gowan, os países árabes teriam sido mesmo incentivados pelo governo americano a implementar um forte aumento, e não só isso, teriam sido incentivados a depositar na city londrina – o espaço financeiro internacional então existente – e em bancos americanos ali operantes, os polpudos superávits que passaram a obter. A soma dos eurodólares com os petrodólares engrossou a riqueza financeira e serviu de base econômica para a grita em favor da abertura financeira do mundo, o que permitiu intensificar o movimento de colocar o grosso das transações financeiras internacionais ao desabrigo do controle dos bancos centrais e, por tabela, dos Estados nacionais.

6 Tal como esclarece Wallerstein, há uma espécie de contraposição entre a produção e os investimentos financeiros em cada fase do ciclo. Mais especificamente, o que se passa é que os ciclos de Kondratiev são compostos por uma fase A e por uma fase B – a fase de expansão e a fase de contração da economia, respectivamente –, cada qual com duração aproximada de 25 a 30 anos. Os períodos de expansão e de retração “[…] distinguem-se principalmente pela prevalência do pleno emprego ou do desemprego, pela preponderância da produção ou de investimentos financeiros como fonte principal de lucro, pela prioridade dada à minimização dos custos de transação ou à minimização do custo da força de trabalho, pelo aperfeiçoamento das técnicas existentes ou pela inovação na produção” (WALLERSTEIN, 2003, p. 72). Deste modo, uma das características das fases ascendentes do ciclo é a prevalência da produção sobre a destinação financeira dos recursos, havendo crescimento do produto, o que conduz a um enquadramento da economia num momento A de Kondratiev, sendo o raciocínio oposto igualmente verdadeiro.

7 Assim sendo, é possível dizer, inclusive, que, se seguimos Hilferding na percepção de que o imperialismo é a conformação política necessária para lidar com a era do capital financeiro, incorremos em uma clara limitação que nos levaria a concluir em favor do fim do imperialismo, uma vez que a era do capital financeiro se esgotou. O que defendemos aqui é que, apesar de tal esgotamento – e até mesmo por conta daquilo que tomou o lugar do capital financeiro –, o imperialismo permanece imperante e se apresenta mais forte do que nunca.

8 Neste sentido, é interessante notar que, em Panitch e Gindin (2006), há uma diferença em relação ao pensamento de Hilferding. Para este último, apresentava-se como uma vantagem para os países exportadores de capital que estes pudessem exercer o controle direto dos seus territórios de interesse através de seu próprio poder estatal. Para Panicth e Gindin, ao contrário, aquela que se desenha como a potência imperialista única no período atual passa a exercer seu poder através dos Estados nacionais que, de alguma maneira, domina, ou, se se trata de aliados, em relação aos quais desenvolveu certa relação de interdependência.