(Imagem: merdeiro.org) É difícil topar algum território europeu onde se concentre a enorme variedade de celebraçons que conforma o nosso Entruido. Com especial intensidade no surleste galego, mas extendido também cara a faixa atlántica, o carnaval traz-nos umha festa sem hierarquias, de regras laxas, que convida ao excesso e festeja o aumento da luz solar, nas vésperas da restriçom católica da Coresma. Especialistas discutem ainda, sem chegar a conclusons sólidas, as origens dumha festa que situam o povo como protagonista único.
O nome galego-português ‘Entruido’ (também ‘Entroido’ ou ‘Antroido’ segundo as variedades dialectais) procede do latim ‘introitus’, e fai referência ao começo dumha nova estaçom, em que a vegetaçom agroma e os dias medram. Também recebe o nome ‘Carnaval’, especialmente popular em terras da lusofonia mui entruideiras, como Brasil. Alguns etimologistas situam a raiz do termo em ‘carne-levare’, isto é, ‘deixar a carne’, pois os excessos destes dias antecipam os jejuns da Coresma, que se inícia na Quarta feira de Cinza; outros, sem variar demasiado a interpretaçom, dizem que se relaciona com as palavras ‘carne vale’; quer dizer, que neste ciclo de várias semanas -concentrado em cinco dias- os excessos gastronómicos tenhem espaço, denantes de chegarem as restriçons.
“Galiza é um mundo”
A variedade do nosso entruido dá nas vistas. O seu núcleo é um conjunto de comarcas que partem da Ribeira Sacra e alcançam a Límia
Mais umha vez trazemos à tona a conhecida frase de Vicente Risco; pois foi ele, junto com outros eruditos de ‘Nós’, o que chamou a atençom sobre a diversidade de ritos, formas de vida, variedades dialectais e sistemas produtivos naquela velha civilizaçom agrária. A variedade do nosso entruido dá nas vistas. O seu núcleo é um conjunto de comarcas que partem da Ribeira Sacra e alcançam a Límia, cada umha delas com o seu ritual específico e os seus próprios personagens: bonitas em Cartelhe, murrieiros na Teixeira, vergalheiros de Sarreaus, felos de Maceda, boteiros de Vilarinho, troteiros de Bande, charruas de Alhariz, cigarrons de Verim, pantalhas de Ginço e, obviamente, os peliqueiros de Laça.
Estas celebraçons dam-se no Maciço Central galego, umha zona marcada historicamente pola escasseza e umha vida cheia de privaçons, o que sem dúvida dava um desfrute especial a festas marcadas polo excesso. Aliás, e contra a tradiçom rural reinante no norte da Galiza, mais individualista e baseada na reproduçom da casa grande, no sul a dinámica comunitária era mais forte, e daí o arraigo deste entruido massivo. Precisamente, nas bisbarras ourensanas nom há cinco dias de carnaval, mas todo um ‘ciclo do Entroido’ que começa em janeiro e tem onze dias grandes: o domingo fareleiro e oleiro, a quinta feira de compadres, o domingo corredoiro, a quinta feira de comadres, o domingo de entroido, a segunda feira de entroido, a terça feira de entroido, a quarta feira de cinza, e o domingo de pinhata.
Em todas estas festas locais e comarcais chama a atençom o colorido das máscaras, o seu complexo simbolismo, o feito de as pessoas irem totalmente tapadas, ocultando a sua identidade, e a actuaçom individual, sem programaçom, das pessoas disfarçadas (ainda que podem marchar em pelotom, caso dos peliqueiros). Neste sentido, a cenografia tem certas conexons com outras entruidadas de distintos pontos da Galiza: o urso de Salcedo, na Póvoa do Brolhom, que se interpreta como umha exaltaçom da natureza que acorda trás a hivernaçom, ou o Merdeiro viguês. Esta última figura, resgatada graças ao trabalho voluntário do CS Revolta, a Associaçom Vicinhal e Cultural Casco Velho de Vigo e do movimento galego em geral, recria em Vigo a velha rivalidade entre gentes do mar e lavradores (os ‘escarabicheiros’) que eram burlados polos marinheiros com comportamentos disonantes.
Totalmente distintos som os mais dos Entruidos occidentais galegos, marcados por representaçons colectivas mui regulamentadas, disfarces que deixam a cara descoberta, e menos ‘violência’, agressividade ou transgressom. Os generais da Ulha, que encenam um enfrentamento dialéctico rodeado dum cuidadoso protocolo, ao igual que as damas e galáns de Vila Boa e Cangas, estám muito longe do Carnaval do interior.
A interpretaçom
A complexidade do fenómeno do Entruido é tal, e as suas origens tam escuras, que um simples artigo jornalístico nom pode dar conta de toda a controvérsia que livram os especialistas. No único que existe consenso é em assinalar que provocou a desconfiança ou hostilidade dos poderes: a burla, a ruptura simbólica das hierarquias e a transgressom de tempos e espaços desacouga a tirania, e por isso a ditadura fascista tencionou -sem sucesso- banir a celebraçom. Grosso modo, existem teses que defendem as suas origens pagás, e outras que o vencelham claramente com o cristianismo e umha certa cultura da transgressom controlada.
No único que existe consenso é em assinalar que provocou a desconfiança ou hostilidade dos poderes: a burla, a ruptura simbólica das hierarquias e a transgressom de tempos e espaços desacouga a tirania, e por isso a ditadura fascista tencionou -sem sucesso- banir a celebraçom.
Certos estudos antropológicos apontam que as sociedades tradicionais consideravam a viragem do ano, tempo do máximo frio e escuridade, especialmente cercano às forças do mal, e por isso há evidência de rituais de expiaçom protagonizados por figuras do paganismo. Há quem vincula os cigarrons com figuras da antiga Trácia, os kukeri, que visitavam as casas da vizinhança desde o 1 de janeiro com o ruído das chocas. Esta explicaçom daria conta de por que em várias comarcas ourensanas o Entruido começa com os primeiros dias do ano, sem ter a ver estritamente com a preparaçom da Coresma cristá. Nessa mesma linha podem entender-se as possíveis relaçons do nosso Carnaval com as Saturnálias romanas, que festejavam o crescimento dos dias e, numha festa orgiástica, faziam que os senhores se vestissem de escravos. A hierarquia abolia-se temporalmente.
Umha das grandes achegas teóricas à compreensom do Carnaval veu da pluma de Michael Bakhtin: na obra ‘A cultura popular na Baixa Idade Média e o Renascimento’ estudou a pervivência na Europa dumha cultura milenar que se infiltrou na literatura e sobreviviu entre o povo como Entruido. Tratava-se dumha experiência, ainda que suspendida no tempo, igualitária. Facilitava o contacto cara a cara das pessoas, era umha experiência de convívio físico e humorismo, representada em figuras e ritos de grande riqueza simbólica, e celebrava a mudança e renovaçom de todo nos ciclos naturais. Emilio Araúxo, um dos grandes estudiosos e cronistas do Entruido galego, valeu-se destas chaves para defender as manifestaçons carnavalescas galegas, que entende como “cercanas à arte, e capazes de dar protecçom e amparo.”
Como dixo o poeta francês Pierre Le Pillouer a propósito do Entroido ourensano: “nem mercado, nem polícia, nem aplausos.” Umha festa única.
Na antropologia galega, Marcial Gondar Portasany ou Xosé Ramón Mariño Ferro entendem o Carnaval, pola contra, como umha festa puramente medieval e ligada com o Catolicismo. Antes do rigor da Coresma, baseada no jejum e no pensamento permanente em Deus, a Igreja permitiria um período de excesso para rebaixar tensons, mas também para mostrar, através do exagero, como de impraticável seria umha sociedade sem hierarquias nem controlos. Com um papel semelhante ao que hoje desenvolve a troula nocturna, o Entruido serviria para desabafar de tensons e contradiçons quotidianas sem real rebeldia social e política.
Pervivência sem mercado
Seja como for, no Entroido a Galiza demonstrou, mais umha vez, a pervivência milenária dumha forma de cultura que sobreviviu a mudanças de etapa histórica, modos de produçom e regimes políticos. Com umha riqueza incomparável exprimida em dúzias de variedades comarcais, o Carnaval demonstra-nos a possibilidade da festa comunitária, sem divisom entre protagonistas e espectadores, e prescindindo dos hábitos consumistas com que hoje se nos obriga a divertir-nos. Como dixo o poeta francês Pierre Le Pillouer a propósito do Entroido ourensano: “nem mercado, nem polícia, nem aplausos.” Umha festa única.