Em plena Segunda Guerra Mundial, o Gabinete de Informaçom de Guerra estadounidense encarregou à antropóloga Ruth Benedict um trabalho sobre o Japom. Os dirigentes norteamericanos queriam conhecer as regras de comportamento dum dos países com o que livravam a guerra, e que apresentava condutas mui paradoxais à olhada occidental. Benedict escreveu ‘O crisantemo e a espada’, que serviu como guia, mais ou menos simplificadora, do extremo oriente para muitos estrangeiros de posguerra. Entre as muitas estórias que chamavam a atençom aos políticos e aos militares era a atitude dos soldados rendidos. O japonês era o guerreiro mais feroz: o código Bushido proibía a rendiçom, e chegar a um acordo com o vencedor, nem que for em termos relativamente ventajosos, era a maior das vergonhas. Antes de cair prisioneiro, o japonês preferia expor o seu peito às balas, tirar-se a própria vida, ou fazer-se estoupar com umha granada, levando por diante vários norteamericanos. Porém, ao se dar o caso de cair irremisivelmente em maos inimigas -e mais ainda quando o conflito se decantou para o bando aliado- o japonês transformava-se e chegava a parecer outra pessoa. Virava um homem serviçal, atendia aos requerimentos dos guardas, nom enganava, e mesmo colaborava com os ocupantes ao detalhar onde se ficavam bases e arsenais. Obviamente havia excepçons a este comportamento: soldados arrestados que mantinham a atitude cheia de receios que acompanha instintivamente qualquer prisioneiro, ou persoeiros que, como o escritor Mishima, denunciárom este rebaixamento com suicídio público. Mas o servilismo do ex-heroi de guerra marcava a pauta, para abraio dos vencedores.

Esboroado todo sistema de referências e lealdades, privado de comunidade de aprovaçom ou reprovaçom, e ciente ele mesmo de que traiçoara todo o que a consciência lhe ditava, ficava o automatismo da sobrevivência. E numha cultura tam regulada e cerimoniosa como a japonesa, permanecia essa cortessia oca, um respeito superficial pola hierarquia, que parecia ser o último reduto dum mínimo convívio civilizado.

Como sempre, as situaçons extremas servem para deitar luz sobre as vivências mais convencionais. Sem os horrores da guerra, todos temos assistido a processos de adaptaçom a novos mandos, a novas ordes sociais e políticas, que provocam o assombro e fam duvidar da condiçom da pessoa que protagoniza a mudança. Se o homem ou mulher é o que conhecemos popularmente por umha ‘fanática’, aquela que fai de princípios e ideários motivo condutor da sua vida, o desconcerto multiplica-se. Desde os anos 80, a esquerda radical nutriu de quadros e apologistas as fileiras do Regime, reconvertidos ao pragmatismo ao entrarem na madurez; e também o independentismo viu casos de transformismo mui notórios. É entom mui provável que a questom japonesa, como versom exagerada dum feito universal, poda interpelar-nos.

Os nossos inimigos e adversários acusam-nos de fanatismo. É acaída a definiçom? Num sentido laxo, a palavra ‘fanático’ aplica-se sempre a essas minorias que, sem perspectivas de triunfo imediato, perseveram na sua luita, sacrificando em certa medida todos os placebos da vida convencional em favor dum norte que quase ninguém vê, nem a longa distáncia. Judeus ou neonazis, integristas religiosos ou anarquistas, arredistas ou tecnófobos. Nada partilham, nom sendo a condiçom de habitarem, ou terem habitado as margens, e o feito de armarem-se de certa disposiçom de carácter.

Mas a palavra fanático, a diferença de ‘devoto’, ‘entregado’, ‘convencido’ ou ‘coerente’, tem outra cárrega extra, muito negativa. Implica umha visom simplória do mundo, umha disposiçom a sacrificar bens politicamente neutros -a amizade, a vizinhança, a diversom- a um objectivo teoricamente maior. Conleva um desprezo da conversa e da controvérsia, e umha desconfiança grande a deixar-se influenciar por pontos de vista ou correntes de pensamento que nom som a própria. Muitas vezes, o fanatismo exerce-se com juízos constantes em favor da própria superioridade moral. Soi aparecer como desapegado e cerebral. O escritor irlandês O’Flaherty, que partilhou militáncia armada com este tipo de pessoas, descrevia assim um deles no relato ‘The sniper”: “a sua face era de estudante, magra e ascética, mas nos olhos escintilava o brilho frio do fanático.” Na verdade, ainda que o rosto seja de cimento, as dúvidas estám no coraçom. Segundo a psicologia, trata-se dumha sobrecompensaçom das inseguranças, o acópio de várias coiraças de certezas para dissimular umha fraqueza íntima. Por isso as fileiras dos fanáticos nom demoram em descomponher-se, assi que as vicissitudes da vida ponhem a fraqueza a nu.

Os reaccionários dim -ocultando o seu próprio fanatismo e portanto os seus grandes medos- que as fileiras revolucionárias se nutrírom sempre de fanáticos. É outra das verdades a médias que devêssemos examinar com tino. Certamente, os movimentos emancipadores podem ser o hábitat preferido para pessoas desejosas de cobrirem os seus desacougos inconfessos em grandes proclamas, estandartes marciais e calor de grupo. Como também o som para aqueles que curam a sua frustraçom com listas inacabáveis de denúncias, indignaçom pública e comparaçons entre projectos. As redes sociais canalizam melhor que qualquer outro meio todas essas paixons tristes.

A filósofa Simone Weil chamava sempre a distinguir, em cada esforço humano, nom ‘aonde vai, senom de onde vem’. Esta pequena frase pode orientar-nos num panorama tam escuro, pois na insurgência, em todo tempo e lugar, coincidem pessoas que semelham ir ao mesmo sítio, mas obtenhem a sua energia de motivaçons radicalmente diferentes. Por isso os frutos dos projectos revolucionários, exitosos ou nom, som tam divergentes: neles aparece o mais nobre do emprendimento humano, intercalado com ruindades de toda classe.

Quando perguntam a umha pessoa de abaixo, normalmente politicamente comprometida, porque deu um passo tam heroico ou se envolveu em compromissos de futuro tam incerto, a resposta é sempre muito semelhante: “nom podia fazer outra cousa.” Umha reflexom assim leva-nos a entender, com toda claridade, os comportamentos de Rosa Parks, Alexandre Bóveda ou Samartim Bouça. Nom há cálculo, nem estridência, nem rencor, nem tam sequer confiança. Tam só umha certeza sem nome.

Os gregos dérom a este estado o nome de ‘entusiasmo’. Etimologicamente significa ‘estar possuído polos deuses’. Fundido na tarefa com plena conviçom, devotado à missom sem consciência de horas nem de esforços, nom só aberto à controvérsia senom disposto a ela. Nom se relaciona com a eufória, porque é constante e sereno; tampouco acorda hostilidades,pois nom julga e adoita produzir simpatia ou surpresa. Os antigos conheciam-no, Simone Weil chamou-no ‘atençom’ e os cientistas contemporáneos dam-lhe distintos nomes: ‘flow’, ‘zone’, ‘peak state’… Estudam a disposiçom anímica que o fai possível, e as muitas capacidades que desata, situando as pessoas num horizonte de acçom e capacidades realmente novo. O entusiasmo aparece no esforço científico, filosófico, artístico ou desportivo. No nosso mundo capitalista soi ser um empenho individual e mais técnico que ético; mas por vezes adquire dimensom colectiva e consistência política, e resulta decisivo para os povos.