Ao reconhecer umha nova localizaçom das culturas periféricas na história mundial, bem como partindo de umha concepçom nom monolítica e nom substancialista de cultura, este artigo localiza, por um lado, a Europa na história mundial e propom, por outro, um diálogo intercultural simétrico entre críticos das culturas ditas periféricas. Essas culturas periféricas fôrom colonizadas, excluídas, desprezadas, negadas e ignoradas pola Modernidade eurocentrada, porém, nom fôrom eliminadas. O desafio que se coloca é o de estabelecer um diálogo transmoderno e simétrico entre essas culturas – tratadas como exterioridades da Modernidade – a fim de responder de outros lugares os desafios da Modernidade e pós-modernidade europeia.

Centro e periferia cultural: o problema da libertaçom
Desde o final da década de 1960, como fruto do surgimento das ciências sociais críticas latino-americanas (especialmente a “teoria da dependência”), como também da obra Totalidade e infinito de Emmanuel Levinas (1988), e principalmente polos movimentos populares e estudantis de 1968 (no mundo, notadamente na Argentina e América Latina), produziu-se no campo da filosofia, portanto na filosofia da cultura, umha ruptura histórica. O que fora considerado como mundo metropolitano e mundo colonial agora era classificado (a partir da terminologia, ainda desenvolvimentista, de Raúl Presbisch – Cepal) como “centro” e “periferia”. A isso se deve agregar todo um horizonte categórico proveniente da economia crítica, que exigia a incorporaçom das classes sociais como atores intersubjetivos a serem integrados a umha definiçom de cultura. nom se tratava de mera questom terminológica e sim conceitual, que permitia romper com o conceito “substancialista” de cultura, descobrindo suas fraturas internas (dentro de cada cultura) e entre elas (nom só como “diálogo” ou “choque intercultural, mas estritamente como dominaçom e exploraçom de umha sobre as demais). A assimetria dos atores deveria ser levada em conta em todos os níveis. A etapa “culturalista” tinha acabado. Em 1983, em um capítulo intitulado “Más allá del culturalismo” escrevim:
Para a visom estruturalista do culturalismo, era impossível compreender as situaçons de mudança de hegemonia, dentro de blocos históricos bem definidos e as formaçons ideológicas de várias classes e fraçons […]. Faltava também, ao culturalismo, as categorias de sociedade política (em última análise, o Estado) e a sociedade civil […] (Dussel, 1983: 35-36).

A filosofia latino-americana como filosofia da libertaçom descobria seu condicionamento cultural (pensava-se a partir de umha cultura determinada), mas também articulada (explícita ou implicitamente) a partir dos interesses de classes, grupos, sexo, raça etc. determinados. A location fora descoberta e era a primeira questom filosófica a ser tratada. O diálogo intercultural perdera a sua ingenuidade e passou a ser compreendido como sobredeterminado por todo o período colonial. De fato, em 1974 iniciamos um “diálogo” intercontinental “Sul-Sul” entre os pensadores da África, Ásia e América Latina, cuja primeira reuniom foi realizada em Dar-Es-Salaam (Tanzânia) em 1976. Esses encontros dérom-nos um novo panorama sobre as grandes culturas da humanidade.

A nova visom sobre a cultura emerge na última reuniom realizada na Universidade de El Salvador, em Buenos Aires, já em pleno desenvolvimento da filosofia da libertaçom, sob o título Cultura imperial, cultura ilustrada e libertaçom da cultura popular (Dussel, 1997: 121-152). Foi um ataque frontal à posiçom de Domingo F. Sarmiento (2010), eminente pedagogo argentino, autor da obra Facundo, ou civilizaçom e barbarie. Para Sarmiento, a civilizaçom era a cultura norte-americana; a barbárie, eram os caudilhos federais que luitavam pola autonomia regional contra o Porto de Buenos Aires (cinturom de transmissom do domínio britânico). Era o início da desmistificaçom de “heróis” nacionais que conceberam o modelo neocolonial do país e que mostrava seu esgotamento. Uma cultura “imperial” (a do “centro”), com origem na invasom da América em 1492, enfrentava as culturas “periféricas” na América Latina, África, Ásia e Europa Oriental. nom era um “diálogo” simétrico, mas de dominaçom, exploraçom e aniquilaçom. Além disso, nas culturas “periféricas” existiam elites educadas pelos impérios, como escreveu Sartre (1968) na “Introduçom” de Os condenados da Terra, de Frantz Fanon; elites que repetiam como eco o que aprenderam em Paris ou Londres; elites ilustradas neocoloniais, leais aos impérios, que se distanciavam de seu próprio “povo” e o utilizavam como refém de sua política dependente. Havia, entom, assimetrias de dominaçom global:

  1. umha cultura, a ocidental, metropolitana e eurocêntrica que dominava com a pretensom de aniquilar todas as culturas periféricas;
  2. as culturas pós-coloniais (América Latina desde o século XIX e Ásia e África, após a Segunda Guerra Mundial), fragmentadas internamente entre
  3. grupos articulados aos impérios, elites “ilustradas”, cujo domínio significava dar às costas para a cultura ancestral regional; e
  4. a maioria da populaçom, fiel às suas tradiçons, defendendo-se (muitas vezes de forma fundamentalista) contra a imposiçom de umha cultura técnica e economicamente capitalista.

A filosofia da libertaçom como filosofia crítica cultural precisava gerar umha nova elite cuja “ilustraçom” se articularia aos interesses do bloco social dos oprimidos (o que, para Gramsci, era o popolo). Portanto, falava-se dumha “libertaçom da cultura popular”:
Uma delas é a revoluçom patriótica de libertaçom nacional, a outra seria a revoluçom social da libertaçom das classes oprimidas, e a terceira a revoluçom cultural. Esta última encontra-se no nível pedagógico, da juventude e da cultura (Dussel, 1997: 137).

Essa cultura periférica oprimida pola cultura imperial deve ser o ponto de partida para o diálogo intercultural. Em 1973, escrevíamos:
A cultura, como cultura popular, longe de ser umha cultura menor, é o centro menos contaminado e radiante da resistência do oprimido contra o opressor […]. Para criar algo de novo, há de se ter umha palavra nova que irrompa a partir da exterioridade. Esta exterioridade é o próprio povo que, embora oprimido polo sistema, é o mais distante em relaçom a este (Dussel, 1973: 147).

O “projeto de libertaçom cultural” (Dussel, 1973, 147) parte da cultura popular, embora pensado a partir da filosofia da libertaçom no contexto latino-americano. Já se superara o desenvolvimentismo culturalista a sustentar que a partir dumha cultura tradicional se poderia passar a umha cultura secular e pluralista. Mas havia ainda a necessidade de se radicalizar a análise do “popular” (o melhor), que em seu cerne abrigava o populismo e o fundamentalismo (o pior). Será necessário dar um passo além.

A cultura popular: nom é simples populismo
Em artigo que integra o livro Oito ensaios sobre a cultura latino-america e libertaçom (1997), intitulado “Cultura latinoamericana y filosofia de la liberación (cultura popular revolucionaria mas allá del populismo y del dogmatismo)”, tivem, umha vez mais, de esclarecer a diferença entre:
a. o “povo” e o “popular”;
b. “populismo” (este último tendo faces diferentes: desde “populismo thatcherista” no Reino Unido – sugerido por Ernesto Laclau e estudado em Birmingham por Richard Hall – até a figura atual de “fundamentalismo” no mundo muçulmano; “fundamentalismo”, que também está presente, por exemplo, nos Estados Unidos, em um cristianismo sectário como o defendido por George W. Bush).

Neste artigo, dividimos o material em quatro seçons. No primeiro, reconstruímos as posiçons desde a década de 1960, mostramos a importância de superar os limites reducionistas (dos revolucionários a-históricos, das histórias liberais, puramente hispanoconservadoras ou indigenistas), reconstruímos a história cultural latino-americana no contexto da história mundial (desde a Ásia, nosso componente ameríndio; a proto-história euro-afro-asiática até a cristandade hispânica; desde a cristandade colonial até a cultura latino-americana dependente, pós-colonial ou neocolonial). Este processo converge para um projeto de “uma cultura popular pós-capitalista”:
Quando estávamos nas montanhas, Tomás Borge escrevia sobre camponeses, e ouvim falar ao seu coraçom puro, limpo, com umha linguagem simples e poética, percebemos quanto talento perdemos [as elites neocoloniais] ao longo dos séculos’ (FSLN, 1981: 116).

Isso exigiu um novo ponto de partida para descrever a cultura como tal, tema da segunda seçom do capítulo em destaque.

A partir dumha leitura cuidadosa e arqueológica de Marx (desde seus primeiros trabalhos até os da maturidade, escritos entre 1835 e 1882), demostramos que cada cultura é um modo ou um sistema de “tipos de trabalho” (Dussel, 1985; 1988; 1990). nom é por outra razom que “agri-cultura” era estritamente “o trabalho da terra” já que “cultura” tem sua origem etimológica no latim “culto”, no sentido da consagraçom da terra. A poética material (fruto físico do trabalho) e o mítico (criaçom simbólica) som produçons culturais (uma exteriorizaçom objetiva do subjetivo, ou melhor, do intersubjetivo e comunitário). Desta forma, o econômico (sem cair no economicismo) foi resgatado.

Em umha terceira seçom (Dussel, 1997), fôrm analisados vários momentos, agora fragmentados, da experiência cultural, numha visom pós-culturalista ou pós-spengleriana. “A cultura burguesa” (a) era estudada em relaçom a “cultura proletária” (b) de forma resumida, a “cultura dos países centrais” era analisada em relaçom às “culturas dos países periféricos” (na ordem mundial do “sistema-mundo”); a “cultura multinacional ou imperialismo cultural” (c) era descrita em relaçom à “cultura de massa ou alienada” (d) – globalizada -; “cultura nacional ou populismo cultural” (e) era articulada com a “cultura da elite ilustrada” (f) e contrastada com a “cultura popular” ou “a resistência de criaçom cultural” (g)1.

  • Nota-se, em particular, que grupos culturais (grupos étnicos indígenas, lúmpen ou marginais etc.) encontram-se “fora” da ordem capitalista, mas no coraçom do povo.
    Figura 1 A experiência cultural pós-culturalista  

Evidentemente, esta tipologia cultural e seus critérios categóricos supunham umha longa “luita epistemológica”, crítica, própria das novas ciências sociais na América Latina e da filosofia da libertaçom. Nós já chegáramos a estas distinçons muito antes, mas agora elas destacavam-se definitivamente.

Em 1977, no volume III de Para una ética de la liberación latino-americana, escrevemos:
A cultura imperial2 (supostamente universal) nom é a mesmo que a cultura nacional (que nom é idêntica à popular), que a cultura ilustrada da elite neocolonial (o que nem sempre é burguesa, mas sim oligárquica), que a cultura de massa (que é alienante e unidimensional, tanto no centro como na periferia), e também nom é o mesmo que cultura popular. [E acrescentavámos:] A cultura imperial, ilustrada, e a cultura de massa (onde deve se incluir a cultura proletária como negatividade) som os momentos internos imperantes na totalidade dominante. A cultura nacional é, no entanto, ainda equivocada, embora relevante [….]. A cultura popular é a noçom chave para a libertaçom [cultural] (Dussel, 1980: 72).

Na década de 1980, com a presença ativa da Frente Sandinista de Libertaçom Nacional na Nicarágua e muitas outras experiências na América Latina, a cultura criativa foi concebida como “cultura popular revolucionária” (Cardenal, 1980: 163):
A cultura popular latino-americana – escrevíamos no artigo de 1984 – apenas fica clara, decanta, autentifica-se no processo de libertaçom (da libertaçom econômica do capitalismo, da libertaçom política da opressom), instaurando um novo modelo democrático, sendo assim libertaçom cultural, dando um passo criativo na linha da tradiçom histórico-cultural do povo oprimido e agora protagonista da revoluçom (Dussel, 1997: 220-221).

Nesta época, falava-se de “sujeito histórico” da cultura revolucionária: o “povo” como “bloco social dos oprimidos” quando cobra “consciência subjetiva” de sua funçom histórica revolucionária (Ramirez, 1982; Arce, 1980).

A cultura popular nom era populista. “Populista” implicava a inclusom na “cultura nacional” da cultura burguesa ou oligárquica de sua elite e a cultura do proletariado, do campesinato, de todos os habitantes da terra organizados sob um Estado (na França denominou-se “bonapartismo”). O popular, no entanto, seria um setor social de explorados ou oprimidos dumha naçom, mas que guardaria também certa “externalidade”, como veremos adiante. Oprimidos do sistema estatal, este setor mantém umha alteridade livre nesses momentos culturais, desprezados pelos dominantes apenas como folclore3, música, comida, roupas, festivais, a memória de seus heróis, os feitos emancipatórios, as organizaçons sociais e políticas etc. Como pode ser observada, a visom monolítica substancialista de umha cultura latino-americana havia sido deixada para trás e fissuras culturais internas cresceram graças à mesma revoluçom cultural.

Modernidade, globalizaçom do ocidentalismo, multiculturalismo liberal e o império militar da “guerra preventiva”
Lentamente, embora a questom tenha sido vislumbrada intuitivamente desde o final dos anos 1950, passa-se de (a) umha obsessom por “situar” a América Latina na história mundial – o que exigiu reconstruir completamente a visom da denominada história mundial – (b) para o questionamento sobre a visom padrom (geraçom hegeliana) da mesma história universal que havia nos “excluídos”, já que, por ser “eurocêntrica”, construía umha interpretaçom distorcida nom só de culturas nom europeias, mas, e esta conclusom era imprevisível na década de 1950 e nom era esperada a priori, igualmente interpretava equivocadamente a própria cultura ocidental (Dussel, 1995). “Orientalismo” (um defeito da interpretaçom europeia de todas as culturas ao oriente da Europa, que Edward Said (2007) mostra em sua famosa obra, Orientalismo) foi um defeito coordenado e simultâneo ao “ocidentalismo” (má interpretaçom da própria cultura europeia). As hipóteses que nos permitiram negar a ausência da cultura latino-americana agora levavam-nos à descoberta dumha nova visom crítica das culturas periféricas, e até mesmo da própria Europa. Essa tarefa estava sendo realizada quase simultaneamente em todos os domínios das culturas pós-coloniais periféricas (Ásia, África e América Latina), mesmo se, infelizmente, em menor escala na Europa e nos Estados Unidos.

Na verdade, a partir da problemática “pós-moderna” sobre a natureza da Modernidade – que, em última análise, é umha visom ainda europeia da Modernidade -, começamos a perceber que, o que chamávamos como “pós-moderno”4 era algo diferente do que aludiam os pós-modernos nos anos 1980 (ao menos davam umha definiçom diferente do fenômeno da Modernidade daquela que eu entendera a partir dos trabalhos realizados para situar a América Latina em confronto com a cultura moderna observada a partir da periferia colonial). Por isso, sentimos a necessidade de reconstruir a partir de umha perspectiva “exterior”, ou seja, global (nom provinciana, como eram as perspectivas europeias), o conceito de “modernidade”, que era – e ainda é -, na Europa e nos Estados Unidos, umha conotaçom claramente eurocêntrica, desde Lyotard ou Vattimo, até Habermas e, de maneira mais sutil, Wallerstein – que chamamos de “segundo eurocentrismo”.

O estudo desta cadeia argumentativa permitiu-nos vislumbrar um horizonte problemático e categórico que relançou o tema da cultura, agora como crítica ao “multiculturalismo liberal” (à maneira de John Rawls, por exemplo, em The law of people), bem como críticas ao otimismo superficial de umha suposta “facilidade” com a qual se expom a possibilidade de um diálogo multicultural, supondo-o como ingênuo (ou cínico) em umha simetria inexistente entre os argumentadores.

Agora nom se tratava mais de umha questom de “situar” a América Latina. Tratava-se de situar todas as culturas que inevitavelmente se enfrentam em todos os níveis da vida cotidiana: a comunicaçom, a educaçom, a pesquisa, a política de expansom ou de resistência cultural ou mesmo militar. Sistemas culturais, cunhados por milênios, podem quebrar em décadas, ou desenvolver-se polo choque com outras culturas. Nengumha cultura tem assegurada a sobrevivência de antemao. Tudo isso foi intensificado hoje, momento crucial na história das culturas do planeta.

Em nossa visom no curso da “Hipótese para o estudo da América Latina na história universal”, e nos primeiros trabalhos deste período, tendíamos a mostrar o desenvolvimento de cada cultura como um todo independente ou autônomo. Havia “zonas de contato” (como o Mediterrâneo oriental, o Pacífico e as estepes da Eurásia desde Gobi até o Mar Cáspio), mas deixou-se para a expansom portuguesa ao Atlântico Sul e ao Oceano Índico, ou para a “Descoberta América” pola Espanha, o início da implantaçom do” sistema-mundo” e a conexom pola primeira vez dos grandes “ecúmenos culturais independentes” (a partir de ameríndios, da China, do Hindustám, do mundo islâmico, das culturas bizantina e latino-germânica). A modificaçom radical desta hipótese por aquela proposta de Andre Gunder Frank – o “sistema de cinco mil anos”, (que se impujo de imediato a mim porque refletia minha própria cronologia) – mudou a paisagem. Deve-se reconhecer que houvo contatos fortes polas estepes e polos desertos do Norte da Ásia (a denominada “rota da seda”): a regiom da antiga Pérsia foi helenizada em um primeiro momento (em torno de Seleukon, nom muito longe das ruínas Babilônia) e, mais tarde, islamizada (Samarkand e Bagdá). Era a “plataforma giratória” do mundo ásio-afro-mediterrâneo. A Europa latino-germânica foi sempre periférica (embora ao sul tivesse seu próprio peso devido à presença do antigo Império Romano), mas nunca foi “centro” desta vasta massa continental. O mundo muçulmano (desde Mindanao, nas Filipinas, Malaka, Delhi, o “coraçom do mundo” muçulmano, até o Maghreb com Fez no Marrocos ou a Andaluzia de Averroes, Córdoba) era umha cultura mercantilista muito mais desenvolvida (científica, teórica, econômica e culturalmente) do que a Europa latino-germânica depois da catástrofe das invasons germânicas, e as invasons islâmicas do século VII d.C. (Dussel, 2000: 465-478). Diversamente do que afirma Max Weber, deve ser aceita umha diferença civilizatória até o século XIII (as invasons turcas siberianas destroçaram a grande cultura árabe) entre a futura cultura europeia (ainda nom desenvolvida) e a cultura islâmica.

No Ocidente, a “Modernidade”, que começa com a invasom da América pelos espanhóis, cultura herdada dos muçulmanos do Mediterrâneo (Andaluzia) e do Renascimento italiano (pela presença Catalã, no sul da Itália5), é a “abertura” geopolítica da Europa para o Atlântico; é a implantaçom e o controle do “sistema-mundo” no sentido estrito (polos oceanos e nom mais polas caravanas continentais lentas e perigosas) e ainda a “invençom” do sistema colonial, que, por 300 anos, há inclinar lentamente o equilíbrio econômico-político em favor da antiga Europa isolada e periférica. Tudo o que é simultâneo com a origem e o desenvolvimento do capitalismo (mercantil a princípio, de mera acumulaçom primitiva de dinheiro), ou seja, a Modernidade, o colonialismo e o sistema-mundo, denota aspectos dumha mesma realidade simultânea e mutuamente constitutiva.

Se assim é, entom a Espanha é a primeira naçom moderna. Essa hipótese opom-se a todas as interpretaçons da Modernidade, da Europa Central e dos Estados Unidos, e é até mesmo contrária à opiniom da grande maioria dos intelectuais espanhóis de hoje. No entanto, estas ideias imponhem-se a nós com cada vez mais força, à medida que encontramos novos argumentos. De fato, a Primeira Modernidade, a Ibérica (1492-1630 aproximadamente), tem nuances muçulmanas na Andaluzia (a regiom foi a mais culta do Mediterrâneo no século XII) inspirada polo humanismo renascentista italiano, firmemente implantado pola contrarreforma do cardeal Cisneros, pola reforma universitária dos dominicanos de Salamanca (cuja Segunda Escolástica já é “moderna” e nom meramente medieval) e, logo depois, pola cultura barroca jesuíta, na figura filosófica de Francisco Suarez, que inaugura o pensamento metafísico moderno (Al-Yabri, 2001a; 2001b)6. Dom Quixote é a primeira obra literária moderna de seu tipo na Europa, cujos personagens têm cada pé em um mundo diferente: ao sul islâmico e ao norte cristao, na cultura mais avançada de sua época, iniciando a Europa moderna7. A primeira gramática de umha língua românica era espanhola, editada por Nebrija, em 1492. Em 1521, a primeira revoluçom burguesa de Castela é esmagada por Carlos V (os moradores lutavam para defender suas jurisdiçons urbanas). A primeira moeda de prata mundial foi cunhada no México e no Peru, passando por Sevilha e, eventualmente, entesourada na China. É umha Modernidade mercantil, pré-burguesa, humanista, que começa a expansom europeia.

Apenas na Segunda Modernidade é desenvolvido nas Províncias Unidas dos Países Baixos – província espanhola até início do século XVII – um novo desenvolvimento da Modernidade, agora devidamente burguesa (1630-1688). A Terceira Modernidade, inglesa e, mais tarde, francesa, expande o modelo anterior – filosoficamente iniciado por Descartes e Espinosa, desdobrando-se para umha coerência mais prática, a partir do individualismo possessivo de Hobbes, Locke e Hume (Wallerstein, 1974; 1980; 1989).

Com a Revoluçom Industrial e o Iluminismo, a Modernidade atingiu sua plenitude, financiada polo colonialismo, expandindo-se polo Norte da Europa, pola Ásia e, depois, pola África.

A Modernidade teria cinco séculos – assim como o “sistema-mundo” – e também foi coextensiva com o domínio europeu sobre o planeta, da qual tornou-se o “centro” a partir de 1492. A América Latina, assim, foi um momento constitutivo da Modernidade. O sistema colonial nom podia ser feudal – questom central para as ciências sociais em geral, desenvolvida por Sergio Bagú (1949) – senom periférico de um mundo capitalista moderno, portanto, ele mesmo moderno.

Neste contexto, fai-se a crítica à posiçom ingênua que definia o diálogo entre culturas como possibilidade multicultural simétrica, em parte idealizada e na qual a comunicaçom parecia ser possível para os seres racionais. A “ética do discurso” adotava esta posiçom otimista. Richard Rorty, de forma distinta àquela desenvolvida por Alasdair McIntyre, mostrava a completa incomensurabilidade de umha comunicaçom impossível ou sua extrema dificuldade. De qualquer forma, era necessário situar as culturas (sem nomeá-las concretamente nem estudar sua história e seu conteúdo estrutural) em umha situaçom assimétrica que se originava a partir de suas respectivas posiçons no próprio sistema colonial. A cultura ocidental, com seu evidente “ocidentalismo”, alocava todas as demais culturas como mais primitivas, como pré-modernas, tradicionais e subdesenvolvidas.

No momento em que se desenvolve umha teoria do “diálogo entre as culturas” parecia que todas as culturas teriam condiçons simétricas. Ou por meio dumha “antropologia” ad hoc que realizava a tarefa de observaçom descomprometida (ou, no melhor dos casos, “comprometida”) das culturas primitivas. Neste caso, existem as culturas superiores (do “antropólogo cultural” acadêmico) e “as outras” (primitivas). Entre esses dois extremos estám as culturas desenvolvidas simetricamente e “as outras” (que sequer podem ser situadas assimetricamente, em razom do abismo cultural intransponível). É o caso de Durkheim ou Habermas. Diante da posiçom de observaçom da antropologia nom pode haver diálogo cultural com a China, com a Índia, com o mundo islâmico etc., que nom som culturas ilustradas nem primitivas. Estám na “terra de ninguém”.

Essas culturas, que nom som nem “metropolitanas” nem “primitivas”, vam sendo destruídas por meio de propaganda, a partir da venda de mercadorias e de bens materiais que som sempre produtos culturais (tais como bebidas, alimentaçom, vestuário, veículos etc.), mesmo se, por outro lado, há umha tentativa de salvá-las valorizando o seu isolamento, os seus elementos folclóricos ou momentos culturais secundários. A transnacionalizaçom da alimentaçom pode subordinar entre seus cardápios um prato próprio dumha cultura culinária (como “Taco Bell”). Este processo passa-se por “respeito” às outras culturas.

Este tipo de multiculturalismo altruísta está claramente formulado no overlapping consensus8 de John Rawls, que exige a aceitaçom de certos princípios processuais (que som profundamente culturais e ocidentais) que devem ser aceitos por todos os membros dumha comunidade política, permitindo, ao mesmo tempo, a diversidade cultural valorativa (ou religiosa). Politicamente, isso supom que aqueles que estabelecem o diálogo aceitem o Estado liberal multicultural, sem perceber que a própria estrutura deste Estado multicultural, tal como está institucionalizada no presente, é a expressom da cultura ocidental e restringe a possibilidade de sobrevivência de todas as demais culturas. Sub-repticiamente, impom-se umha estrutura cultural em nome de elementos puramente formais de convivência (que foi umha expressom do desenvolvimento de umha cultura particular). Além disso, nom se tem clara consciência de que a estrutura econômica deste processo é o capitalismo transnacional, que funda este tipo de Estado liberal, e que limita nas culturas “incorporadas”, graças ao indicado polo overlapping consensus (açom de esvaziamento prévio dos elementos críticos anticapitalistas dessas culturas) diferenças antiocidentais inaceitáveis. Este tipo de diálogo asséptico multicultural (frequentemente também entre as religioms universais), torna-se, em certos casos, umha política cultural agressiva, como Huntington (1996), em seu livro The clash of civilizations, advoga diretamente, em defesa da cultura ocidental mediante a utilizaçom de instrumentos militares, especialmente contra os fundamentalistas islâmicos, habitantes dumha regiom cujo subsolo se caracteriza pelas maiores reservas de petróleo do planeta (e sem se referir à presença do fundamentalismo cristao, especialmente nos Estados Unidos, de igual signo e estrutura). Novamente nom se adverte que o “fundamentalismo de mercado”, como denomina Georg Soros, institui esse fundamentalismo militar agressivo, das “guerras preventivas”, que se disfarça como choques culturais ou expansom de umha cultura política democrática. Tem-se passado, portanto, de (a) um pretenso diálogo simétrico do multiculturalismo para (b) a supressom pura e simples de todo diálogo e a imposiçom, pola força, da tecnologia militar da própria cultura ocidental, ao menos este é o pretexto, já que sugerimos que se trata tam somente do cumprimento dos interesses econômicos polo petróleo, como demonstrou a Guerra do Iraque.

Em sua obra Império, Negri e Hardt sustentam certa visom pós-moderna da estrutura globalizada do sistema-mundo. É necessário antepor esta visom a umha interpretaçom que permita compreender com mais profundidade a conjuntura atual da história mundial, sob a hegemonia militar do Estado norte-americano (o home-State das grandes corporaçons transnacionais), que vai transformando os Estados Unidos em império, um tipo de dominaçom posterior ao fim da Guerra Fria (1989), que tenta encaminhar umha gestom monopolar de poder global. O diálogo multicultural ficou certamente reduzido apenas à visom ingênua das assimetrias entre dialogantes? Como é possível imaginar um diálogo diante de tamanha distância de possibilidade para suportar os instrumentos tecnológicos de um capitalismo baseado na expansom militar? nom estará tudo perdido se a imposiçom de certo ocidentalismo, cada vez mais identificado com o “americanismo” (estadunidense, obviamente), apagar da face da terra todas as culturas do mundo que se desenvolvérom no último milênio? nom é o inglês a única língua clássica que a humanidade importará, que sobrecarregada deve até mesmo esquecer as suas próprias tradiçons?

Transversalidade do diálogo intercultural transmoderno: libertaçom mútua das culturas universais pós-coloniais
Assim, chegamos à fase final de maturaçom, a partir das novas hipóteses de Andre Gunder Frank (1998). Sua obra ReOrient: global economy in the Asian age (e a argumentaçom mais complexa de Kenneth Pomeranz (2000) em The great divergence: China, Europe and the making of the modern world economy9) novamente permite-nos implantar umha problemática ampliada e críticas que devem retomar chaves de interpretaçons para o problema da cultura da década de 1960, alcançando agora umha nova aplicaçom que queremos denominar como “transmoderna” – superaçom explícita do conceito de “pós-modernidade” (pós-modernidade ainda é um momento final do modernidade).

A nova hipótese de trabalho pode ser formulada da seguinte maneira, e muito simplificadamente: a Modernidade (o capitalismo, o colonialismo, e o primeiro sistema-mundo) nom é contemporânea à hegemonia global da Europa – desempenhando um papel de “centro” do mercado no que di respeito às culturas restantes. “Centralidade” do mercado mundial e Modernidade nom som fenômenos sincrônicos. A Europa moderna torna-se “centro” depois de ser “moderna”. Para Wallerstein, ambos os fenômenos som coextensivos (por isso posterga a Modernidade e a sua centralidade no mercado mundial até o “Iluminismo” e a ascensom do liberalismo). De minha parte, acredito que os quatro fenômenos (sistema-mundo, capitalismo, colonialismo e Modernidade) som contemporâneos (mas nom a “centralidade” do mercado mundial). Hoje, entom, devo salientar que, até 1789 (para dar umha data simbólica para o final do século XVIII) a China e a regiom do Hindustám tinham um enorme peso produtivo-econômico no “mercado mundial” (que produzia os bens mais importantes desse mercado tais como porcelana, tecidos de seda etc.) e que a Europa nom poderia de modo algum igualar-se. A Europa nom podia vender nada no mercado do Extremo Oriente. Só foi capaz de comprar no chamado mercado chinês durante três séculos, graças à prata da América Latina (principalmente do Peru e do México).

A Europa começou a ser “centro” do mercado mundial (e através dele estender o “sistema-mundo” por todo o planeta) a partir da Revoluçom Industrial. No plano cultural, produziu o fenômeno do Iluminismo, cuja origem, no longo prazo, devemos encontrar (segundo as hipóteses que consideraremos seguindo o filósofo marroquino Al-Yabri) na filosofia averroísta do Califado de Córdoba. A hegemonia central e ilustrada da Europa tem apenas dous séculos (1789-1989)10. Apenas dois séculos! Período demasiadamente curto para transformar com profundidade o “núcleo ético-mítico” – para nos expressarmos como Ricœur – das culturas universais e milenares, como a chinesa e outras mais do Extremo Oriente (como a japonesa, a coreana, a vietnamita etc.), a hinduísta, a islâmica, a bizantino-russa, e até mesmo a bantu ou as da América Latina (de diferente composiçom e estrutura). Essas culturas fôrom, em parte, colonizadas, mas a maior parte das suas estruturas de valores fôrom sobretudo excluídas, desprezadas, negadas, ignoradas mais do que aniquiladas. O sistema econômico e político foi dominado no exercício do poder colonial e da acumulaçom gigantesca de riqueza, mas essas culturas têm sido interpretadas como desprezíveis, insignificantes, sem importância e inúteis. Esse desprezo, no entanto, permitiu-lhes sobreviver em silêncio, desdenhadas simultaneamente por suas próprias elites modernizadas e ocidentalizadas. Essa alteridade negada, sempre existente e latente, indica a existência de umha riqueza cultural insuspeita, que renasce lentamente como chamas de carvom enterrado no mar de cinzas centenárias do colonialismo. Essa exterioridade cultural nom é umha mera “identidade” substantiva nom contaminada e eterna. Ela tem evoluído diante da própria Modernidade; trata-se dumha “identidade” em processo de crescimento, mas sempre como umha exterioridade.

Essas culturas universais assimétricas – espelho de suas condiçons econômicas, políticas, científicas, tecnológicas, militares – guardam umha alteridade em relaçom à Modernidade europeia, com a qual convivérom e aprendérom a responder à sua maneira aos desafios. Nom estám mortas, mas vivas, e, atualmente, em pleno processo de renascimento, buscando (e inevitavelmente equivocando-se) novos caminhos para o desenvolvimento de seu futuro próximo. Por nom serem modernas, essas culturas nom podem ser “pós”-modernas. som pré-modernas (anteriores à Modernidade), contudo contemporâneas à Modernidade e logo serám transmodernas. O pós-modernismo é umha fase final da cultura moderna euro-americana, o “centro” da Modernidade. As culturas chinesa e vedanta nom poderám jamais ser pós-moderno-europeias, e sim outra cousa bem diferente e a partir de suas próprias raízes.

Assim, o conceito estrito de “transmoderno” indica essa novidade radical que significa o surgimento – como se a partir do nada – da exterioridade, da alteridade, do sempre distinto, de culturas universais em desenvolvimento, que assumem os desafios da Modernidade e, até mesmo, da pós-modernidade euro-americana, mas que respondem a partir de outro lugar, other location (Dussel, 2002), do ponto de sua própria experiência cultural, diferente da euro-americana, portanto capaz de responder com soluçons completamente impossíveis para a cultura moderna única. Umha futura cultura transmoderna, que assume os momentos positivos da Modernidade (mas avaliados com critérios diferentes a partir de outras culturas antigas), terá umha pluriversalidade rica e será fruto de um autêntico diálogo intercultural, que deverá ter claramente em conta as assimetrias existentes. Um mundo pós-colonial e periférico, como o da Índia, em completa assimetria em relaçom ao centro metropolitano da era colonial, sem deixar de ser um núcleo criativo de renovaçom dumha cultura milenar e decisivamente distinta de qualquer outra, capaz de propor respostas inovadoras e necessárias para os desafios angustiantes que o planeta nos lança no início do século XXI.

“Transmodernidade” indica todos os aspectos que se situam “além” (e também, cronologicamente, “anteriores”) das estruturas valorizadas pola cultura euro-americana moderna, e que atualmente estám em vigor nas grandes culturas universais nom europeias e se fôrom movendo em direçom a umha utopia pluriversal.

Esquema 1  modelo aproximado para compreender o sentido da transmodernidade  

O diálogo intercultural deve ser transversal11, ou seja, deve partir de outro lugar, para além do mero diálogo entre eruditos do mundo acadêmico ou institucionalmente dominante. Deve haver um diálogo multicultural que nom pressupom a ilusom de simetria inexistente entre as culturas. Aqui estám alguns aspectos críticos do diálogo intercultural em relaçom à transmodernidade.

Tomemos como fio condutor de nossa exposiçom umha obra da cultura islâmica no campo filosófico. Mohamed Abed Al-Yabri (2001a; 2001b), nas suas obras Crítica de la razón árabe e El legado filosófico árabe, é um excelente exemplo do que esperamos explicar. Al-Yabri, filósofo do Magreb, ou seja, de umha regiom cultural sob a influência do pensamento do Califado de Córdoba na sua idade clássica, começou a desconstruçom de sua tradiçom árabe12, culminando num autêntico “iluminismo” filosófico, antecedente direto do Renascimento latino-germânico de Paris do século XIII, e é ainda um antecedente direto do Aufklärung europeu do século XVIII (de ascendência “averroísta”, de acordo com a hipótese de Al-Yabri).

Afirmaçom de exterioridade desprezada
Tudo começa com umha afirmaçom. A negaçom da negaçom é o segundo momento. Como se poderá negar o desprezo de si mesmo, senom iniciando polo caminho para o autodescobrimento do próprio valor? A afirmaçom de umha “identidade” processual e reativa diante da própria Modernidade. As culturas pós-coloniais devem efetivamente decolonizar-se, mas devem começar pola autovaloraçom.

Há diferentes maneiras de autoafirmar-se, de entre elas formas equivocadas da própria afirmaçom. Assim, a partir do exemplo inicialmente adiantado, Al-Yabri critica as próprias interpretaçons ou “leituras” hermenêuticas da tradiçom islâmica da filosofia árabe contemporânea no mundo muçulmano. A primeira linha de interpretaçom é a do fundamentalismo (“salafismo”13). Essa interpretaçom tem umha intençom afirmativa, como todas as demais, já que tenta recuperar a antiga tradiçom árabe no presente. Mas, para Al-Yabri, essa corrente é a-histórica, meramente apologética e tradicionalista (Al-Yabri, 2001b). Outra linha de interpretaçom é a liberal, pró-europeia, destina-se a ser meramente moderna, mas, em última análise, nega o passado ou nom sabe como reconstruí-lo. A terceira interpretaçom é de esquerda (o “salafismo marxista”). A questom, diante dessas três hermenêuticas presentes no passado, é: “De que modo [podemos] reconstruir [hoje] o nosso legado?” (Al-Yabri, 2001b: 24).

O primeiro passo é estudar esse legado afirmativamente. Al-Yabri, leitor com domínio do árabe como língua materna, e aprendiz desde a infância da cultura islâmica, tem umha enorme vantagem sobre todos os peritos europeus e norte-americanos que estudam o mundo árabe como “objeto” científico e como cultura “estrangeira”. Ao ler os clássicos, vislumbrou nuances desconhecidas, e fai-no a partir da filosofia hermenêutica francesa contemporânea que foi estudada por todo o Magreb. Expom positivamente o pensamento de Al-Farabi, Avicena, Avempace, Averróis, Abenjaldún, mas nom apenas como afirmaçom ingênua ou apologética.

Em termos de cultura popular, outro exemplo: Rigoberta Menchú (1995), em Me llamo, Rigoberta Menchú y así nació la conciencia, dedica longos capítulos para descrever a cultura do povo maia da Guatemala. Parte dumha afirmaçom autovalorativa e é a partir desta reflexom inicial que edificará todo um edifício. Contra os juízos já habituais é necessário começar desde a origem positiva da própria tradiçom cultural.

Esta primeira etapa é umha recordaçom do passado, a partir dumha identidade anterior à Modernidade, ou que vem evoluindo de forma imperceptível no contato inevitável e secreto com a Modernidade.

A crítica da própria tradiçom a partir dos recursos de sua própria cultura
Mas a única maneira de crescer a partir de sua própria tradiçom é fazer umha crítica a partir dos pressupostos da própria cultura. É necessário encontrar nela os momentos originários dumha autocrítica.

Assim, Al-Yabri fai umha “desconstruçom” da sua tradiçom com elementos críticos da sua e doutras perspectivas da própria Modernidade. Nom é a Modernidade que impom ao intelectual os instrumentos críticos; é o intelectual crítico que controla, administra e escolhe os instrumentos modernos que serám úteis para a reconstruçom crítica de sua própria tradiçom. Al-Yabri mostra que as escolas “orientais” do mundo árabe (as escolas relacionadas a Bagdá som as propriamente orientais, mais próximas do gnosticismo persa; aquelas mais associadas ao Cairo, de tradiçom neoplatônica alexandrina, já som ocidentais na esfera do Oriente islâmico, como veremos adiante) opunham-se, inicialmente, ao seu principal inimigo: o pensamento gnóstico persa. Os Mu’tazilites criáromm o primeiro pensamento teórico islâmico (antipersa), com componentes próprios do Corám, integrando também de maneira criativa a cultura greco-bizantina, a fim de justificar a legitimidade política do Estado califal14. Assim nascérom as tradiçons orientais. A escola abacída (em Bagdá e nas regioms vizinhas, como Samarkand e Bukhara), mas também a tradiçom fatímida (no Cairo), com pensadores como Al-Farabi e Avicena, inclinárom-se, no entanto, para um pensamento neoplatônico com conotaçons teológicas e místicas como a “iluminaçom”. Em contrapartida, Al-Yabri ensina, de forma diversa a muitos expositores da história e da filosofia árabe, que a filosofia propriamente ocidental de Andalus-Magreb (em torno das grandes capitais culturais de Córdoba ao norte e Fez ao sul, que chegou a ter mais de 300 mil habitantes no século XIII) significou umha ruptura inicial que teria um legado duradouro. Tanto por razoms políticas como econômicas (e aqui o filósofo marroquino utiliza ferramentas críticas da filosofia moderna europeia), o Califado de Córdoba ocidental, como já indicado, quebrou a visom teológica do pensamento oriental e inaugurou umha distinçom clara entre a razom natural (que se conhece cientificamente pola observaçom e desenvolve dumha nova forma a física, a mecânica e a matemática) e a razom iluminada pola fé. Distingue-se razom e fé, nom as confunde nem as nega. Estas som articuladas dumha nova maneira.

Foi o filósofo Ibn Abdun que levou os filósofos do Al-Andalus à orientaçom racionalista da escola de Bagdá (contrária à posiçom de Al-Kindi, Al-Farabi e Avicena). Uma segunda geraçom – no início do século V da hégira (século XI cristao) -, especializa-se em matemática e medicina. A terceira geraçom, com Avempace, integra a física e a metafísica aos objetos de estudo e liberta-se do neoplatonismo gnóstico da escola oriental, já invocando a argumentaçom racional aristotélica – extraída de neoplatonismo (Al-Yabri, 2001b: 226)15.

Os Almohades tinham por lema cultural: “Abandonar o argumento de autoridade e voltar às fontes”. Trata-se, dum movimento cultural liderado por Ibn Tumart, num período de grandes mudanças, portanto, de grande liberdade política e com um ímpeto racional e crítico. Ibn Tumart critica a analogia como método que vai do conhecido para o desconhecido (Al-Yabri, 2001b: 323). Se Al-Farabi e Avicena (pola multiplicidade e os problemas políticos do Oriente) pretendiam unir filosofia e teologia, Averróis está propondo separá-las, mas mostrando a sua mútua autonomia e complementaridade. Esse foi o tema de sua obra Doctrina decisiva y fundamento de la concordia entre la revelacíon y la ciencia, um verdadeiro Discurso do método. A verdade (revelada) nom pode contradizer a verdade (racional), e vice-versa. Especificamente em A destruiçom da destruiçom Averróis mostra que Al-Ghazali nom se utiliza de argumentos apodícticos para tentar demonstrar a irracionalidade da filosofia. Na sequência, houvo o desenvolvimento e a expressom de toda a doutrina chamada “dupla verdade” de Averróis, que foi equivocadamente interpretada no mundo latino medieval, mesmo influenciando decisivamente a origem da ciência experimental na Europa mediante o chamado “averroísmo latino”. Ao mesmo tempo o filósofo de Córdoba indicou a maneira de se relacionar com as demais culturas:
É claro que devemos servir como apoio para o nosso estudo (racional dos seres existentes) das investigaçons realizadas por todos os que nos precedérom [os gregos] […]. Assim como realmente os filósofos antigos estudárom com muito cuidado as regras de raciocínio (lógica, método), convém a nós trabalharmos para estudar os livros dos chamados filósofos antigos, para que, se tudo o que dizem considerarmos razoável, aceitá-lo; e se algo houver de irrazoável, nos sirva de precauçom e advertência (Al-Yabri, 2001a: 157-158).

Para Al-Yabri, “adotar o espírito averroísta é romper com o espírito avicenista oriental, gnóstico e obscurantista” (Al-Yabri, 2001a: 159). Como se pode ver, a filosofia árabe praticou o método que estamos descrevendo: foi fiel à sua tradiçom, mas a subordinou ao melhor (segundo seus próprios critérios) de outra cultura que, de certa forma, era considerada altamente desenvolvida (por exemplo, no desenvolvimento da ciência lógica).

Rigoberta Menchú, da mesma forma, questiona, entre as comunidades indígenas irmás, a causa de sua passividade, o fatalismo, e inicia umha crítica comunitária que os levará a se comprometer na luita contra o governo mestiço e a repressom militar.

Dessa forma, o intelectual crítico deve ser alguém localizado “entre” (in betweeness) as duas culturas (a sua e a moderna). Essa é a questom da border (fronteira) entre duas culturas, como lugar dum “pensamento crítico”. Esta questom está detalhadamente exposta por Walter Mignolo, no caso da fronteira México-Estados Unidos, como ambiente bicultural criativo.

Estratégia de resistência
O tempo hermenêutico

Para resistir, é necessário amadurecer. A afirmaçom dos próprios valores exige tempo, estudo, reflexom, retorno aos textos ou símbolos e mitos constitutivos de sua própria cultura, antes ou ao mesmo tempo do domínio dos textos da cultura hegemônica moderna.

Al-Yabri mostra o equívoco de alguns intelectuais árabes, cuja relaçom com o legado cultural europeu parece ser mais estreita do que a que possuem com a herança árabe-islâmica, colocando o problema do pensamento árabe contemporâneo nos seguintes termos: Como este pensamento pode assimilar a experiência do liberalismo antes ou sem que o mundo árabe passe pola etapa do liberalismo?” (Al-Yabri, 2001a). Abdalah Laroui, Zaki Nayib Mahmud, Mayid Fajri e tantos outros levantárom dessa forma a questom. O problema, no entanto, é outro:
Como o pensamento árabe contemporâneo pode recuperar e assimilar a experiência racionalista de seu próprio legado cultural para vivê-la novamente, numha perspectiva semelhante à dos nossos antepassados: luitar contra o feudalismo, contra o gnosticismo, contra o fatalismo e estabelecer a urbe da razom e da justiça, umha urbe árabe livre, democrática e socialista? (Al-Yabri, 2001a: 160).

Como se pode constatar, um projeto desta envergadura requer tenacidade, tempo, inteligência, investigaçom, solidariedade. Trata-se dum longo período de amadurecimento dumha nova resposta da resistência cultural, e nom apenas de coabitaçom com outras elites doutras culturas, especialmente as dominantes, senom contra o eurocentrismo das suas próprias elites da mesma cultura periférica, colonial, fundamentalista.

Rigoberta Menchú, pola sua vez, mostra como exemplo a sua reinterpretaçom sobre a comunidade. Ao ir tomando consciência crítica, o cristianismo tradicional permitiria justificar as luitas das comunidades contra a dominaçom das elites brancas militarizadas na Guatemala. Trata-se dumha nova hermenêutica do texto constitutivo da vida cultural da comunidade, o que, em nível simbólico, é fundamental para os ameríndios, que manifestam umha vertente maia articulada à vertente colonial-cristá.

O diálogo intercultural entre os críticos da sua própria cultura
O diálogo intercultural nom é apenas – ou principalmente – um diálogo entre os apologistas das suas culturas, que tentárom mostrar aos outros as virtudes e os valores de sua própria cultura. É, sobretudo, um diálogo entre os críticos da sua própria cultura (intelectuais da “fronteira” entre a própria cultura e a Modernidade). nom som os que simplesmente a defendem de seus inimigos, mas que primeiramente a recriam a partir de pressupostos críticos que se encontram na sua própria tradiçom cultural e da mesma Modernidade que se globaliza. A Modernidade pode servir como catalisador crítico (se utilizada pola mao especialista de críticos da própria cultura). No entanto, nom é um diálogo entre os críticos do “centro” e os críticos da “periferia” cultural. É, sobretudo, um diálogo entre os “críticos da periferia”, um diálogo intercultural Sul-Sul, antes de ser um movimento para o diálogo Sul-Norte.

Este diálogo é essencial. Como filósofo latino-americano, gostaria de começar umha conversa com Al-Yabri a partir da seguinte pergunta: Por que o pensamento filosófico islâmico caiu numha crise tam profunda a partir do século XIV? Isto nom se explica apenas pola presença lenta e crescente do Império Otomano. Por que essa filosofia foi imersa polo impasse do pensamento fundamentalista? Temos de recorrer a umha interpretaçom histórico-mundial mais ampla para compreender que, tendo sido o mundo islâmico a “chave” de contato com “mundo antigo” (a partir de Bizâncio, e em menor parte, da Europa latino-germânica até o Hindustám e a China), a constituiçom do “sistema-mundo” tendeu para a Espanha e Portugal, para o domínio dos oceanos, deixando lentamente o mundo muçulmano fora da zona central de contato com as demais culturas universais (como fora no “mundo antigo”). A perda de “centralidade” (e, assim, de “informaçom”), o empobrecimento relativo (mesmo que apenas pola inflaçom da prata diante da enorme quantidade extraída da América Latina) e outros fatores nom necessariamente culturais ou filosóficos mergulhárom o mundo árabe numha pobreza “periférica”, numha divisom e num isolamento político que o “tribalizou”, desarticulando-o em separatismos destrutivos nas antigas regioms unificadas polo direito, pola religiom, pola ciência, polo comércio e pola língua árabe.

A decadência filosófica foi apenas um momento do declínio dumha civilizaçom, dumha crise econômica, política e militar de um mundo que de “centro” tornou-se “periferia”. Há, entom, que relacionar, por exemplo, a história do mundo islâmico com o nascimento do “sistema-mundo”, com a América Latina e com o crescimento da Modernidade europeia, equidistante ao peso da cultura hindu-chinesa até os anos 1800. Isso permitiu, no século XIX, ou seja, após a Revoluçom Industrial, a “colonizaçom” do mundo árabe. A colonialidade cultural expressa-se filosoficamente pola decadência filosófica. Salazar Bondy perguntava-se de maneira semelhante na América Latina em 1969: “É possível pensar filosoficamente e criativamente a partir de um ser colonial?” (Bondy, 1969).

No caso de Rigoberta Menchú, o diálogo mais fértil é realizado pelos críticos de cada comunidade com outras comunidades, e das comunidades indígenas com os críticos do mundo mestiço e latino-americano hegemônico. Rigoberta transforma-se numha interlocutora de muitas vozes, muitas reivindicaçons: das feministas, dos ecologistas, dos movimentos antirracistas etc.

Com essa capacidade de se fertilizarem transversalmente, mutuamente, os pensadores críticos da periferia e dos espaços de “fronteira” consolidam o fruto do diálogo intercultural. Ao organizarem redes de discussom de seus problemas específicos, o processo de afirmaçom torna-se umha arma de libertaçom. Temos de nos informar e aprender com os fracassos, as conquistas e a justificaçom, mesmo que teórica, do processo de criaçom diante da globalizaçom da cultura europeia e norte-americana, cuja pretensom de universalidade deve ser desconstruída a partir da perspectiva multifocal de cada cultura.

Estratégia de crescimento libertador transmoderno
Uma estratégia pressupom um projeto. Denominamos projeto “transmoderno” a tentativa libertadora que resume tudo o que temos dito. Em primeiro lugar, a afirmaçom é indicada como valorizaçom de seus próprios momentos culturais negados ou simplesmente depreciados que se encontram na exterioridade da modernidade; que foram deixados de fora da consideraçom destrutiva desta pretensa cultura moderna universal. Em segundo lugar, esses valores tradicionais ignorados pola Modernidade devem ser o ponto de partida dumha crítica interna, a partir das possibilidades hermenêuticas próprias dessas culturas. Em terceiro lugar, os críticos, para serem críticos, devem viver o biculturalismo das “fronteiras” e entom criar um pensamento verdadeiramente crítico. Em quarto lugar, esse processo supom um período longo de resistência, de amadurecimento e de acumulaçom de forças. É tempo do cultivo acelerado e criativo do desenvolvimento da própria tradiçom cultural, agora a caminho dumha utopia transmoderna. Trata-se de umha estratégia de crescimento e criatividade dumha cultura nom só decolonizada, mas renovada.

O diálogo, entom, entre os críticos criadores de suas próprias culturas já nom é moderno nem pós-moderno, mas estritamente “transmoderno”, porque, como mencionado acima, a localizaçom do esforço criador nom parte do interior da modernidade, mas de sua externalidade, ou melhor, do seu ser “fronteiriço”. A exterioridade nom é pura negatividade. É umha positividade dumha tradiçom distinta da tradiçom moderna. A sua afirmaçom é novidade, desafio e inclusom do melhor da própria modernidade. Por exemplo, nas culturas indígenas da América Latina, há umha afirmaçom dumha natureza completamente distinta e mais equilibrada, ecológica e, hoje, mais necessária do que nunca, em relaçom à forma como a Modernidade capitalista confronta a natureza como simplesmente explorável, negociável e destrutível. A morte da natureza é o suicídio coletivo da humanidade, no entanto, a cultura moderna que se globaliza nada aprende a respeito da natureza com outras culturas, aparentemente mais “primitivas” ou “atrasadas”, de acordo com os parâmetros vigentes de desenvolvimento. Este princípio ecológico pode integrar o melhor da Modernidade (nom se deve negar toda a Modernidade a partir dumha identidade substantiva purista de sua própria cultura) para construir até mesmo o desenvolvimento da ciência e da tecnologia a partir de experiências da própria Modernidade.

A afirmaçom e o desenvolvimento da alteridade cultural dos povos pós-coloniais, integrando-se ao melhor da Modernidade, nom se deve desenvolver num estilo cultural que leve a umha unidade globalizada, indiferenciada ou vazia, mas a um pluriverso transmoderno (com muitas universalidades: europeia, islâmica, vedanta, taoista, budista, latino-americana, bantu etc.), multicultural, num diálogo crítico intercultural.

  1. Para o tema da cultura popular, ver: Bosi (1977), Ardiles (1975), Cabral (1981), Najenson (1979), Warman (1969) e Vidales (1982).
  2. Em 1984, denominamos “cultura multinacional” em relaçom às corporaçons “multinacionais”, mas seria mais apropriado chamá-la, em 2003, a “cultura dominante que se globaliza a partir do centro do capitalismo pós-Guerra Fria”. * Nota-se, em particular, que grupos culturais (grupos étnicos indígenas, lúmpen ou marginais etc.) encontram-se “fora” da ordem capitalista, mas no coraçom do povo.
  3. Gramsci escreve: “O folclore nom deve ser concebido como algo ridículo, como algo estranho que causa risadas, como algo pitoresco; deve ser concebido como algo relevante e deve ser considerado com seriedade. Assim a aprendizagem será mais eficiente e mais formadora sobre a cultura das grandes massas populares” (Gramsci, 1975: 90).
  4. Em 1976, antes de Lyotard, usamos o conceito em “Palabras preliminares” da nossa filosofia de la liberación, quando escrevíamos: “Filosofia da libertaçom, filosofia pós-moderna, popular, feminista, da juventude, dos oprimidos, dos condenados da terra…”.
  5. Para os intelectuais do norte da Europa e dos Estados Unidos, desde Habermas até Toulmin, a Modernidade segue aproximadamente este caminho geopolítico: Renaissance (Leste) → Reforma Protestante (Norte) → Revoluçom Francesa (Oeste) → Parlamentarismo Inglês. A Europa do Mediterrâneo ocidental (Espanha e Portugal) é explicitamente excluída. Trata-se de umha miopia histórica. Mesmo Giovanni Arrighi, que estuda o capital financeiro genovês, ignora que esta era a época do Império Espanhol (e nom vice-versa). Ou seja, a Itália renascentista era ainda mediterrânea (antiga), já Espanha era atlântica (moderna).
  6. René Descartes foi aluno de La Flèche, escola jesuíta, e reconhece que a primeira obra filosófica que ele leu foi Disputaciones metafísicas, de Francisco Suárez (ver Dussel, 2007).
  7. Nom se esquecendo que o cavaleiro medieval – Dom Quixote – enfrenta os moinhos, que som o símbolo da modernidade (moinhos procedentes do mundo islâmico: Bagdá empregava moinhos de vento desde século VIII d.C.).
  8. Consenso justaposto ou consenso sobreposto. (n. do t.)
  9. Nesta obra, Pomeranz comprova que efetivamente que, até 1800, a Inglaterra nom tinha nengum progresso significativo em relaçom ao Delta do rio Yangtze, na China (habitado por 39 milhoms de pessoas, em 1750), e que, depois de avaliar novos argumentos sobre o desenvolvimento ecológico do uso da terra em ambas as regioms, atribuiu a possibilidade da Revoluçom Industrial dar-se na Inglaterra, devido a dous fatores externos, ou fortuitos, ao sistema econômico inglês: ter colônias e carvom. Nengum outro fator permitiu esta vantagem inicial mínima da Inglaterra sobre a regiom do Delta do Yangtze que, na sequência, se tornaria enorme. O autor desconsidera mesmo a crise econômica na China ou no Hindustám. O uso crescente e antiecológico da terra na China exigiu umha maior mao de obra campesina, o que impediu o surgimento da indústria capitalista na regiom, simultaneamente à inglesa.
  10. Da Revoluçom Francesa à queda da Uniom Soviética, o que significa a ascensom monopolar da hegemonia norte-americana, após o fim da Guerra Fria.
  11. “Transversal” indica aqui que o movimento se dá a partir da periferia para a periferia. Do movimento feminista às lutas antirraciais e anticoloniais, as “diferenças” dialogam a partir de suas várias negatividades, distintas, sem necessidade de atravessar o “centro” da hegemonia. Frequentemente, as grandes cidades têm grandes serviços subterrâneos que vam dos bairros dos subúrbios para o centro; mas faltam conexoms entre os subcentros suburbanos. Por analogia, acontece exatamente o mesmo com o diálogo intercultural.
  12. O árabe, depois de séculos de traduçons gregas das obras filosóficas helênicas, teve de inventar umha linguagem filosófica técnica absolutamente sofisticada. Portanto, desde o Marrocos às Filipinas, a filosofia do mundo muçulmano deve ser chamada de “filosofia árabe”, o nome da sua língua clássica.
  13. Quando perguntado “como recuperar a glória de nossa civilizaçom? Como dar nova vida à nossa herança?”. Al-Yabri responde com umha exigente descriçom das respostas ambíguas, parciais ou eurocêntricas. Os salafíes foram originados pola posiçom de Jamal al-Din al-Afghani (1897), que luitou contra os britânicos no Afeganistám, viveu em Istambul, refugiou-se no Cairo e fugiu para Paris. Este movimento visa libertar e unificar o mundo islâmico.
  14. De maneira altamente original e legítima, Al-Jabri mostra que “as ciências filosóficas gregas” transformárom-se em filosofia, teologia e jurisprudência islâmica graças a quatro correntes filosóficas: “A primeira é representada por tradutores e secretários de origem iraniana […], o modelo oriental (persa) do neoplatonismo. A segunda é representada por médicos e tradutores cristaos que chegárom da escola persa de Yundisapur [… que,] além de professores nestorianos, recebeu um grupo de professores da escola de Atenas […] o modelo neoplatônico ocidental. A terceira corrente [a mais importante], a oriental, é representada polos tradutores, professores e estudiosos originários da antiga cidade de Harrán, ao norte da Mesopotâmia. […]. A quarta, a ocidental, é a que finalmente aparece com a chegada da Academia de Alexandria” (Al- Yabri, 2001b: 177). A Academia foi criada no território dos sabeus. Esta escola é fundamental, já que significou umha síntese do pensamento persa, neoplatônico e aristotélico (Al-Yabri, 2001b: 165), questom pouco estudada fora do mundo filosófico árabe, já que requer umha bibliografia sem traduçons para as línguas ocidentais. Os “Irmaos da Pureza” som da linhagem da tradiçom de Harrán.
  15. Para Avempace, a perfeiçom humana nom consiste na contemplaçom estática do sufismo, mas na vida do “homem solitário”, que, na cidade imperfeita, anseia pola cidade perfeita, polo estudo racional das ciências filosóficas. O ato de “intelecto agente” por excelência, o conhecimento dos sábios som espirituais e divinos. Al-Yabri (2001b) dedica excelentes páginas a Avempace, em seu tratado sobre a felicidade dos sábios, inspirado e desenvolvido a partir de Aristóteles (ver Dussel, 1994: 297-314).