Com cada vez maior frequência, um novo termo ocupa reportagens e suplementos culturais dos meios de grande tiragem : ‘adultescência’. A palavra alude a um período de tempo indefinido, bem superada a juventude, no que as pessoas continuam a comportar-se como na jeira de liceu. Num tom habitualmente apologético, revestido de intranscendente, a mídia empresarial populariza um conceito com mais implicaçons sociais e políticas das que puidéramos suspeitar.
A grandes traços, e com certos ajustamentos etários em funçom do contexto histórico que abordarmos, a nossa cultura concebeu a década que se inicia a partir dos 20 anos como aquela na que tomamos o vieiro da responsabilidade e das decisons mais graves e transcendentes. A psicologia do desenvolvimento (com obras como a canónica “As oito idades do homem”, do psicanalista Erik Erikson) caracterizara esta fase a como a do assentamento dos vencelhos fortes : amorosos, laborais, e também indirectamente comunitários e vizinhais, ou políticos. É só nas últimas duas décadas, com a intensificaçom da contra-revoluçom neoliberal e os seus efeitos em todas as ordes da vida, que este modelo saltou polos ares, com fundas consequências na saúde mental das pessoas e na sua auto-representaçom.
A crise da identidade de classe
A atomizaçom da classe obreira desde inícios dos 90, com umha sucessom inacabável de reformas laborais que favoreceram a precariedade e a temporalidade, enfraqueceu em grande medida as identidades adultas baseadas na profissom, no orgulho de ofício e nos laços solidários. Como forma de colmar este vazio identitário, as diferentes políticas educativas neoliberais desenhárom um longo itinerário de graus, módulos, mestrados, ampliaçons curriculares, estágios…que prolongárom por lustros a tutelagem paternal sobre a juventude, criando a ficçom dum nicho de protecçom e segurança, nomeadamente na classe média.
Nas filhas e filhos de classe trabalhadora, sem capital cultural ou recursos económicos para conseguir a ascensom social, o salto entre umha série inacabável de trabalhos curtos, precários e normalmente mal pagos -frequentemente em geografias cambiantes- levou a umha juventude incapaz de desenhar itinerários de longo prazo, instalada num presente perpétuo, e sedada pola cultura do lazer. Por palavras do sociólogo Zygmunt Bauman, umha ‘sociedade líquida’ na que qualquer vínculo se concebe como umha fraqueza, um lastro do que desprender-se para prever males maiores.
No nosso contexto nacional, este processo tivo um plus de dramatismo, desde que a crise da sociedade rural programada por instituiçons espanholas e europeias favoreceu um abandono massivo de comarcas inteiras do país, nomeadamente do interior. A perda dos velhos referentes comunitários, das identidades vizinhais, paroquiais, adoito acompanhada da deserçom linguística, abocou a boa parte da mocidade rural a um presente sem passado, e no que o futuro, de se formular, fazia-se sempre bem longe das terras de origem
A irresponsabilidade como modelo de comportamento
Como reverso da precarizaçom laboral, a omnipontente filosofia consumista puido lavrar a bel-prazer umha psicologia volúvel e caprichosa ; na mocidade sem vencelhos, a sucessom vertiginosa de modas, tendências culturais, hábitos de lazer, impom-se com maior facilidade. Para isto desenvolveu-se toda umha associaçom positiva a conceitos como o de ‘reinventar-se’, ‘emprender’, ‘viver aventuras’, ‘vender-se’ ; se no mundo laboral se pretende a auto-concepçom da pessoa como um empresário de si mesmo, nas identidades de consumo e virtuais o ‘eu’ aparece inflado, cheio de marcas da diferença e empenhado em exibir-se ao mundo. Daí toda a oferta publicitária dedicada aos ‘singles’ (pessoas sem relaçom de casal), ou habitantes de ‘andares-abelha’ (habitáculos de infra-vivenda onde dormem as e os trabalhadores precários urbanos, sem vencelho vizinhal algum).
Comportamentos que há apenas umha década se considerariam quase patológicos ou como produto de sérios défices de socializaçom, hoje som pauta em capas muito amplas da populaçom. Mostras de retrocesso das condiçons materiais, como o recuar do direito à vivenda, ou a impossibilidade de trabalhar na comarca natal, propagandeam-se como ‘opçons de auto-melhora’.
Apologia e desmobilizaçom
‘Vives sem ataduras e desfrutas da situaçom’, escrevia há uns dias um jornalista da imprensa servil sobre este panorama : ‘nem contrato indefinido, nem hipoteca, nem filhos. Eis o triplete de muitas pessoas de trinta anos que se sentem com todo o tempo do mundo para emprender novas aventuras (…) nom há melhor idade para viver umha segunda juventude.’
A liberdade dissociada da responsabilidade, de qualquer peso, e sobretodo de qualquer obriga com as pessoas que nos rodeam ; velaí o ideário neoliberal exprimido com total falta de pudor : ‘eu o que quero é viver como me parecer, tendo a liberdade de escolher o que eu quero fazer com a minha vida’, manifesta umha das moças entrevistadas.Se aparece algum assomo de dimensom colectiva na vida, é polo que tem de ‘experiência’ pessoal e ganho curricular : ‘fixem-me voluntário de Protecçom Civil, e isso é algo que me achega muito. Alguns dias também che dá um subidom de adrenalina, quando saes a atender acidente e ajudas pessoas em situaçom limite.’ Esta via está-lhe a servir para formar-se, para fazer currículo, e para abrir-se outras vias profissionais’, aponta o jornalismo.
Mas nenhum caso, nom há pátina moral nem laboral a disfarçar esta posiçom vital: ‘vou ao meu ritmo, som umha Peter Pan’, continua outra das entrevistadas, perto de trintena : ‘eu som a mais velha, e a minha avoa ainda me seguia a fazer a cama. Agora fago-a eu, mas custou-me.’
Toda esta nova filosofia vital, socializada a partes iguais pola indústria cultural, a indústria do lazer e a mídia comercial, é um elemento determinante para explicar o retrocesso de direitos civis e laborais que vimos vivendo em formato democrático. Também é o que explica -junto com o fenómeno da repressom- as dificuldades da velha esquerda militante e responsável, que situa o dever e o colectivo como centro, para deslegitimar a esquerda fitícia do mundo virtual, as performances, e as ‘identidades activistas’ sem organizaçom nem estratégia.
Ainda, e segundo apontam pensadores da chamada ‘esquerda conservadora’, inspirados polo legado de Chesterton, a necessidade de arraigo, identidade e compromisso é um traço antropológico da espécie que ao neoliberalismo lhe custa desterrar : de nom intervir decisivamente umha esquerda rupturista em favor de conceitos como ‘responsabilidade’, ‘patriotismo’ e ‘comunidade’, será a extrema direita quem capitalize esta carência gritante.