No final de 2018, foi lançado na Netflix o filme Black Mirror: Bandersnatch, que segue o modelo da série Black Mirror. Escrito polo criador do seriado, Charlie Brooker, e dirigido por David Slade, o filme traz a novidade de ser interativo, como num jogo de vídeo game. O telespectador participa fazendo desde pequenas escolhas, como a de uma música que irá tocar na cena, até escolhas que produzam mudanças no enredo, levando a diferentes finais. Esse modelo interativo fijo-me ver o filme mais de uma vez, no intuito de conhecer todas as escolhas possíveis, sobre as quais nom haverá spoilers aqui.


A forma interativa do filme é a novidade, já que a história segue a mesma fórmula da série: a mistura de tecnologias com temas que envolvam a subjetividade humana. Psicanalistas costumam se deliciar ao assistir a série Black Mirror, pois ela permite reflexons sobre temas como repetiçom, trauma, medo, memória etc…


No filme, em funçom da possibilidade de escolhas do espectador, fica subentendido que, dependendo do caminho tomado polo personagem, mudanças acontecerám na história. Dessa forma, uma primeira questom se coloca, a das escolhas.


A premissa de que nossas açons produzem consequências e que nom temos como saber o que aconteceria se agíssemos doutra forma sempre nos levou à pergunta: e se eu figesse aquilo diferente na minha vida?
Algumhas pessoas podem, inclusive, ficar na inibiçom do ato, por serem completamente tomadas pela dúvida. Como escolher, se nom sei exatamente o que produzirei futuramente com a minha escolha de agora?
As pessoas podem até buscar oráculos (cartomantes) para que o seu futuro poda ser previsto, na busca de uma proteçom contra escolhas erradas. Felizmente, acabamos entendendo que nom é provável que o nosso destino já esteja escrito previamente, e temos que suportar sermos nós mesmos os escritores de nossas histórias. Essa ideia pode-nos deixar no desamparo da falta de garantias de um futuro incerto, mas, ao mesmo tempo, também traz em si um gosto de maior liberdade. Somos, entom , responsáveis polo que fazemos e também polo que nom fazemos acontecer nas nossas vidas. Quando tomamos nas nossas maos as escolhas, estamos com certeza num caminho de maior responsabilizaçom.


O filme nos coloca também uma segunda questom: quem está no comando da mente que decide? Uma vez, minha filha ainda umha meninha, perguntou-me: como ela saberia se o que ela pensava era ela que pensava ou se foram seus pais que colocaram aquela ideia na sua cabeça. Achei esperta a sua questom pois, certamente, no início da vida de nossos filhos, somos nós, os pais, que apresentamos o mundo para eles, que vivem, portanto, em considerável alienaçom. Respondim-lhe a minha filha que, no momento em que ela se apropriasse de uma ideia, essa agora seria dela. E também que ela seria responsável por sustentar essa ideia como sua. Penso que, naquela época, é claro que ela já produzia seus próprios pensamentos, as separaçons estavam-se delineando com maior clareza, e ela buscava com sua pergunta poder constituir plenamente sua singularidade.


A condiçom de autonomia do pensamento de alguém depende dessa desalienaçom que precisa acontecer na relaçom com os seus cuidadores. A cria humana é a única que precisa permanecer mais tempo ligada intimamente com quem a cuida para poder criar as condiçons de separaçom. Mas a autonomia também pode ser questionada nalgumha medida, tendo em vista as inúmeras influências que recebemos de tantas outra relaçons. Além disto, temos que considerar o nosso inconsciente, que nos fai agir a partir de um saber que em geral desconhecemos. Entom, alienaçom e desalienaçom vam constituir-se num processo dialético contínuo ao longo da vida.


Por fim, o filme coloca-nos umha terceira questom, a do trauma que produz uma situaçom de aprisionamento na vida. A infância marcada por alguma situaçom de muita dor irá necessariamente impossibilitar a construçom de alternativas para uma vida de melhor qualidade? Seria como ficar preso no pesadelo? As repetiçons, nas situaçons da vida que podem levar alguém a imaginar-se sempre no mesmo lugar, costumam dizer respeito a situaçons que ficárom marcadas na infância.
O psicanalista trabalha na perspetiva de que o paciente reconte sua história, considerando que os fatos passados nom podem ser mudados, mas que temos ali um sujeito que pode, sim, ser transformado, frente às novas palavras hoje inseridas e associadas àquela história. Já nom será mais a criança presa na fatalidade e na falta de recursos para lidar com o acontecido. Fai-se necessário buscar a criança que ficou paralisada naquele lugar e naquele tempo, trazendo-a pola mao aos dias atuais e possibilitando novas aberturas para uma nova história. Torna-se, assim, possível imaginar finais diferentes para uma mesma história.


Black Mirror Bandersnatch levanta estas três questons, mas nom de forma tom otimista. A ficçom pode andar de maos dadas com a psicanálise gerando um campo fecundo de reflexons.

Publicado originalmente em Sul21