Por Carlo Frabetti (traduçom do galizalivre) /
Na passada semana falávamos sobre a componhente ideológica da massificaçom do running, e nesta linha reproduzimos o seguinte texto de Carlo Frabetti, onde faz umha análise sobre o desporto em equipa.
‘O instinto de conservaçom regula o nosso comportamento através de dous impulsos complementares: fome e medo. O primeiro empurra-nos cara a comida que precisamos para sobreviver; o segundo impulsa-nos a proteger-nos dos perigos que ameaçam a nossa sobrevivência.
Num momento de carestia, os nossos antepassados remotos descobriram um jeito eficaz de satisfazer à vez ambas necessidades: ao caçar em equipas fornecidos com pedras e paus, nom só eles poderiam obter comida mais facilmente, mas também eram menos vulneráveis a possíveis ataques dos seus predadores ou dos seus rivais. Organizar um grupo armado foi a melhor maneira de sufocar simultaneamente as dores da fome e do medo e, como todas as fórmulas de sucesso, esta estratégia ofensiva-defensiva foi consolidada e espalhou-se rapidamente. Co tempo, a banda primitiva de homens armados com pedras e paus evolui cara o exército. E numha equipa de futebol.
O nosso desejo (tanto individual como coletivo) de poder e riqueza responde aos mesmos instintos básicos de sempre: fome e medo, e os referentes ancestrais do homem cum bastom na mao e a banda armada ainda estom vivos, de forma real ou simbólica, nos seus sucessores e nas suas metáforas: o soldado e o atleta, o exército e a equipa desportiva. O grande arquétipo individual da cultura patriarcal (isto é, de quase todas as culturas conhecidas ao longo da história) é o herói guerreiro (de feito, “protagonista” significa literalmente “primeiro lutador”); e o grande arquétipo coletivo é o grupo armado, o exército. Os intrépidos heróis e os gloriosos exércitos garantem a prosperidade e a segurança das naçons, e todos precisam deles ou acreditam que precisam deles. A primeira grande epopeia ocidental, a Ilíada, é umha cançom de raiva individual e rapina coletiva, e se há algumha dúvida, avisa-nos desde o primeiro verso. Aquiles, os Argonautas, Sansom, o Rei Arthur e os cavaleiros da Mesa Redonda, o Cid, D’Artagnan e os mosqueteiros, os Jedi … Desde o passado mais remoto distante até o mais distante futuro imaginário, um homem com um bastom (ou umha espada, que é a mesma cousa) e umha banda armada som os grandes modelos da cultura patriarcal.
Embora, afortunadamente, o belicismo explícito tem cada vez menos partidários, continuamos a aceitar com naturalidade, quando nom com alegria, a grotesca parafernália marcial. ‘Aqueles que gostam dum desfile militar apenas por erro receberam um cérebro: com a medula espinhal teria tido suficiente’, dizia Einstein. Cyrano de Bergerac deplorava que levar pendurada do cinto umha espada, um instrumento de morte, fosse umha sinal de distinçom. No entanto, as pessoas continuam a acodir em massa aos desfiles, e as forças armadas continuam a lozir orgulhosamente os seus ridículos sabres.
Mas, mais do que os próprios guerreiros, o belicismo da nossa sociedade atual é alimentada dos seus sucedáneos: as estrelas do desporto e das equipas de futebol, que livram as suas incruentas batalhas para satisfazer (e alimentar) a agressividade latente de milhons de machos (e de algumas meninas, embora muitas menos). E neste terreno (no ‘campo de jogo’), a batalha dialética da razom contra o mito ainda está por livrar. O engano do ‘espírito olímpico’ penetrou tam profundamente que a suposta ‘nobreza’ do desporto agonístico tornou-se inquestionável. E, no entanto, o desporto, tal como hoje é entendido e praticado, é belicismo sublimado, o belicismo mitificado, é dizer, convertido em mito, em mito que justifica e sustenta a nossa infeliz cultura. Supom-se que o desportista é o paradigma do homem saudável, quando, de fato, o desporto apenas é saudável se for puro jogo profilático, se nom tiver outros objetivos além da diversom e do exercício. O desportista que se esforça até o esgotamento para derrotar um oponhente ou superar uma marca, por chegar mais alto, mais longe ou mais rápido do que outros, é uma pessoa doente, um pervertido, o icono pervertido de umha sociedade perversa. É por isso que se fala tanto de ‘jogo limpo’: porque o desporto competitivo (isto é, quase todos os desportos) é o mais sujo dos jogos. Na nossa miserável sociedade, a vida consiste em competir para ter, em vez de colaborar para ser, e o mito do desporto santifica a competiçom, a luita sem quartel pola propriedade (os grandes deportistas som excessivamente ricos). O tam cacarejado espírito olímpico é, em última instáncia, o mesmo lixo que o ardor guerreiro; se ‘o importante é participar’, como se diz hipocritamente, por que os desportistas de elite se esforçam tanto por ganhar, até o extremo de arriscarrm amiúde a sua saúde e mesmo as suas vidas?
Os primeiros caçadores nom tivérom eleiçom: a escasseza de alimentos vegetais forçou a mover-se do aprazível frugivorismo próprio dos primates para o feroz carnivorismo dos predadores; de aí à exaltaçom da violéncia e da camaradagem masculina (com o consequente relegaçom das mulheres) havia apenas um passo, e era quase inevitável que eles o deram. Mas já é hora de darmos o próximo.
*Este artigo foi publicado originariamente em www.rebelion.org em 2006.