Por grupo Exit /
Nas condições da crise, do aumento da produção de supérfluos, do colapso de regiões inteiras do mundo, é bastante consequente que os partidos democráticos convirjam com a extrema-direita no mesmo molho acastanhado: “Frente transversal em toda a parte” (Daniel Späth), por assim dizer. Se não se questiona as categorias reais capitalistas, insiste-se que as pessoas têm de provar o seu valor como contentores de força de trabalho; daí resulta que elas já perderam a sua humanidade, se deixam de poder vender rentavelmente a sua força de trabalho, sendo a consequência logicamente desumana. A consciência burguesa comum aos partidos, portanto, assume o ponto de vista de se submeter à situação de facto: não é o capitalismo que é objecto de crítica, mas são os ditos supérfluos que se tornam “factores de perturbação” e “problema de segurança.” A naturalização da relação de capital, da dissociação sexual e do trabalho não está longe, e é sempre mobilizada com gosto como justificação, quando a “segunda natureza” entra em crise. Assim, os fluxos globais de refugiados surgem frequentemente incompreendidos, como uma espécie de catástrofe natural.
Pressupondo o capitalismo como um “facto natural”, é realmente verdade que “nós” não podemos ajudar “toda a gente”. Sob as condições do capitalismo, a ajuda bem-sucedida pressupõe financiabilidade e uma integração bem-sucedida no mercado de trabalho. E, sem dúvida, existem limites imanentes para isso – especialmente em tempos de colapso da soberania nacional. A “retórica ingénua das boas pessoas”, por si só, dificilmente poderá mudar isso. Mas essa ingenuidade não tem origem na pretensão de não ser um idiota racista, mas sim na insuficiência da crítica das condições que causam esses fluxos de refugiados.
As novas e novíssimas direitas, pelo contrário, submetem-se a esta realidade e estão mesmo orgulhosas de terem a “realidade” do seu lado, como um “aliado”, como enfatiza Martin Sellner, o spiritus rector do movimento identitário em países de língua alemã. O gesto da nova direita é justamente lembrar os supostos factos, sem que estes factos (se existirem!) sejam relacionados com a dinâmica da valorização capitalista. As novas direitas, com a sua pretensão de “nova objectividade”, como antípodas da arbitrariedade pós-moderna, são em certo sentido positivistas da agitação política e racista. O modelo para o efeito, como se sabe, vem sendo dado há anos pelo “quebrador de tabus” Thilo Sarrazin.
Não menos falsos e inimigos da humanidade do que os democratas acastanhados são aqueles que colocam sob condição de financiamento a paragem da destruição ecológica da Terra, que leva precisamente a um aumento cada vez maior de “refugiados do clima”. Certamente que a destruição ecológica é objecto de queixa de vários eco-social-democratas: mas também a solução da crise ecológica se pretende que esteja na própria economia de mercado; seria preciso apenas fazer investimentos apropriados, para que a maravilhosa Alemanha, bio e de cereais integrais, pudesse finalmente tornar-se a “campeã mundial de exportação” de produtos sustentáveis!
Mas nenhum facto pode ser exposto, como recentemente a morte de insectos, a poluição dos oceanos, etc., sem que esse facto seja recebido com um encolher de ombros. No fim também perante tais questões catastróficas se prefere falar de uma suposta eco-histeria da esquerda. A pós-verdade e a ignorância do óbvio são o credo não reconhecido das pós-democracias capitalistas tardias como tais, e não apenas uma questão de Donald Trump, que afirmou, por exemplo, que as alterações climáticas são apenas uma invenção da China! São principalmente o credo daqueles que pretendem continuar a acreditar como antes na sua maravilhosa economia de mercado. Tudo se resume ao facto de se agir na ignorância, como se fosse possível a “normalidade” usual, um “mais do mesmo”. Além disso, as medidas para remediar a extinção de espécies, etc. revelam-se geralmente vazias e ineficazes porque, como de costume, exigem capacidade de financiamento e, portanto, não podem ameaçar os lucros, nem os sagrados “postos de trabalho.”
Os desastres e catástrofes sociais e ecológicos e a barbárie daí resultante não diminuirão; cessará a capacidade reprodutiva capitalista (e provavelmente também a ecológica) de cada vez mais regiões do mundo. Nenhuma normalidade burguesa será restaurada, por muitos partidos fascistas ou populistas de direita que surjam para o efeito, com a sua ilusão identitária de “resgate” do respectivo país ou “povo” (situação em que, certamente, serão “caçadas com sucesso” outras pessoas). Em vez disso, haverá cada vez mais “Estados falhados”. No final, tudo se resume a uma guerra civil mundial, que há muito tempo se tornou realidade em muitas partes do mundo, como se tem enfatizado repetidamente nesta revista. As regiões de um “interior” ainda não colapsado estão a tornar-se cada vez mais reduzidas; os centros capitalistas têm vindo a aproximar-se cada vez mais da periferia. Por último, mas não menos importante, o conflito na Ucrânia mostrou que um “Estado falhado” não tem de estar a milhares de quilómetros de distância, mas pode estar muito próximo.
As razões para a fuga também não diminuirão. A onda de refugiados, como resultado do terrorismo do Estado Islâmico e da guerra na Síria, a partir de 2015, poderá ter sido apenas o começo. Abstraindo do facto de que, no futuro, não haverá falta de guerras como razão para a fuga, grandes multidões serão obrigadas a fugir devido a catástrofes ecológicas e em consequência das alterações climáticas. Por exemplo, já foi descrito há vários anos que o maior lago do Irão, o lago Úrmia, está a secar. Mais uma vez, essa catástrofe ecológica (que é apenas uma entre muitas) está relacionada com vários projetos de barragens e de irrigação, isto é, com a dominação capitalista da natureza. O total desaparecimento do lago teria por consequência a fuga de cerca de cinco milhões de pessoas. Além disso, grandes partes do Médio Oriente se tornarão inabitáveis devido às alterações climáticas; regiões onde vivem centenas de milhões de pessoas! Igualmente fatais seriam as consequências da subida do nível do mar. Como seria, por exemplo, afundarem no mar partes significativas do Bangladesh, um país onde vivem mais de 150 milhões de pessoas. Mas pior que isso seria provavelmente se a mudança do clima fizesse derreter os gelos do Himalaia, colocando em risco o abastecimento de água de milhares de milhões de pessoas!
Sem a abolição do capitalismo, apenas um futuro distópico aguardará a humanidade. Mas poucas pessoas querem perceber essa consequência. Pelo menos, agora envergonha-se o foco da esquerda que há anos insistia precisamente em concentrar-se no “discurso”, na “narrativa” e na “desconstrução” (a que seria preciso acrescentar os seus estados de alma encenados), sem prestar quase nenhuma atenção à realidade social; pretendia-se que não poderia haver uma crise final, nem um limite interno; para muitos uma ruptura categorial era sentida como a violação e destruição da sua identidade de esquerda, especialmente da marxista tradicional. Por isso a recepção séria de uma “grande teoria” crítica ao capitalismo, como a da exit!, continuou minoritária. Agora está claro que a crise, há muito negada ou minimizada, chegou ao centro “civilizado” há muito tempo, sendo a crítica pós-estruturalista, tão fraca e fixada no discurso, especialmente oprimida pela realidade, ficando num certo desamparo e impotência.
*Fragmento do editorial de EXIT, Crise e crítica da sociedade da mercadoria, nº 15 (Abril 2018)