Neste digital, temos devotado os nossos modestos esforços a espalhar aquelas teses que apontam a gravidade enorme da crise climática, negligenciada por parte da esquerda, e os novos horizontes de conflitividade social que esta trazerá. Em 2021, publicávamos um artigo de opiniom que enquadrava a nova problemática. Pola sua triste atualidade, e a sua sinistra confirmaçom com a DANA nos Países Cataláns, resgatamos este texto.
Nos círculos militantes dos anos 90, as palavras dum velho comunista, basco de adopçom, sonavam para a mocidade como um sinal a um tempo assustador e inspirador. Chamava-se Justo de la Cueva, e num livro intitulado Comunismo o caos, que fazíamos cricular com entusiasmo de mao em mao, antes da generalizaçom da internet, dirigia-se à mocidade em tom de alerta: ‘Que o desastre vem. Que o Caos chega. Que o Caos está já aqui. Que o tempo acaba. Que temos por riba umha (a) crise ecológica planetária (dumha magnitude e umha escala nunca antes conhecida na História -e a Pre-história- da humanidade) e que agrava bestialmente a actual cíclica crise mundial capitalista.’ Sociólogo de formaçom e propagandista de vocaçom, de la Cueva nom ficava nas grandes declaraçons sensacionalistas, senom que acompanhava tais teses com um volume imenso de dados de fontes oficiais, procedentes todas elas das grandes instituiçons mundiais, e de reputados académicos.
Aquelas fontes oficiais – entre elas o prestigioso Clube de Roma- socializava-as um homem proscrito das universidades, dos meios de comunicaçom, e também da política da esquerda maioritária (era o período histórico no que se cozinhavam as primeiras ilegalizaçons do independentismo e o feche de jornais, com grandes cumplicidades de progressistas). Corria 1996, e os meios de grande tiragem demorariam um quarto de século em situar nos seus cabeçalhos as advertências ambientalistas daquel pequeno sector crítico das elites mundiais.
Assumir tais leituras supunha, obviamente, questionar muito seriamente os interesses das grandes corporaçons e os governos que as secundam, mas também conlevava algo mais sério e desafiante: rejeitar um modo de vida que nos tinha atrapado numha dinámica de absoluta dependência. Apontava de la Cueva: ‘esta nom é umha mensagem doada, nem afagadora, nem ‘publicitária’, nem ganha-votos. Mas é racional. E verdadeira. A única que assinala um caminho para evitar o desastre certo. (…) Os loucos nom somos os desta mensagem, os loucos e os criminosos som os que incitam a consumir mais quando já está cientificamente demonstrado que para evitar o colapso (…) cumpre reduzir o consumo material.’
De maneira que, para além de mui minoritários grupos militantes que adaptárom as suas vidas a este sinal de alerta, ou de académicos situados nas margens, o bloco dominante continuou a carregar no acelerador para produzir mais e esquilmar recursos, e as esquerdas institucionais, perfeitamente cientes da situaçom, preferírom adiar umha questom tam impopular e delicada ‘para o dia que acedamos ao governo’. Mas ocultar nom é ignorar. Podemos dizer que boa parte desta sociedade, nomeadamente os seus sectores mais informados, vivêrom durante décadas na negaçom. A negaçom, é sabido, constitui a primeira fase do luto. Quando o que perdemos é demasiado importante na estrutura da nossa vida, sobrevivemos fingindo que o ser ou a situaçom tam apreçada continua a estar com nós; vivendo, em certa medida, em companhia de fantasmas.
Mas a normalidade institucional, económica e de consumo que acompanhava os tempos da opulência desapareceu de vez. E como é sabido, ainda que a negaçom do luto pode prolongar-se no tempo, a psique vê-se forçada ao cabo a assumir a realidade. A segunda fase do luto é a raiva. Quem aceda com certa regularidade às redes sociais nestes meses, captará com claridade o estado mental dominante. Quando os preços, os virus, as notícias bélicas e as secas fam impossível negar que algo mui sério está a acontecer, um estoupido de ira começa a empapar as relaçons sociais. Assim, o foro público que é o mundo virtual converte-se num gigantesco retrete onde intercambiamos insultos e acusaçons, estabelecemos hierarquias morais, e lamentamos o pouco que se nos escuita, perdendo no entanto a nossa própria capacidade de escuitar.
Os velhos estoicos criárom o género ensaístico das ‘Consolaçons’, normalmente em forma epistolar ou de diário íntimo, para afrontar desde a serenidade, a enteireza de ánimo e a compreensom os momentos dramáticos, na conviçom de que existe umha grandeza humana capaz de amar o destino, mesmo na sua forma trágica. Lá onde a consciência puido superar o estado encolhido da ira, emergem colectivos e pessoas que aderem a esta conduta, o que de certo supom um grande avanço.
Ainda, se o cultivo da interioridade e o silêncio parece obrigado nestes tempos para alcançar curaçom e força, é no colectivo onde nos jogamos o essencial, pois dele obtemos eficácia e alegria -ao cabo, as duas condiçons básicas para a sobrevivência. Foi a ajuda mútua, cada vez em formas mais desenvolvidas, a que nos permitiu atravessar trances traumáticos como espécie, e é nela, como estudárom alguns dos melhores antropólogos libertários, onde despontam alguns traços que falam da nossa dimensom moral mais elevada. A estudiosa Rebecca Solnit, autora d’Um paraíso construído no inferno, mergulhou em vários dos capítulos mais duros do nosso passado para ratificar como, além da lei da selva, o ser humano é capaz de tecer redes muito complexas de cooperaçom que sobardam as burocracias e o ‘pánico das elites’, que nos chama a confiar apenas numha autoridade marcial centralizada que evitará o caos. Os desastres, diz a autora, revelam com toda transparência quem somos cada um de nós, deitam luz sobre o que já nom funciona, e evidenciam a nossa vulnerabilidade essencial como humanos, que jungue na poderosa consciência comum dum destino trágico. Entre outros muitos exemplos, Solnit recorda como o terrível terremoto de Lisboa de 1755 enfraquecera as explicaçons supersticiosas da realidade e fortalecera umha interpretaçom ilustrada do mundo, inspirando algumhas das grandes páginas de Voltaire, com todas as suas consequências políticas; um outro tremor de terra, o da Nicarágua de 1972, pugera a nu as carências da ditadura somocista e, familiarizando a gente com a morte e a desfeita, alimentou as fileiras sandinistas, como lembra Gioconda Belli; em 2005, na sequência da desfeita do furacám Katrina, projectos de autodefesa e cooperaçom supliram a carência do Estado nas zonas mais pobres de Nova Orleáns, protegendo aliás os negros das caçatas de supremacistas brancos. Como galegas e galegos podemos dizer que um temporal de outono, derivada na catástrofe ambiental do Prestige, pujo em andamento umha energia assembleária e mobilizadora que nunca concebéramos em tal dimensom, e achegou-nos como nunca o fixera ao sonho de umha Galiza diferente.