Uma das formas de analisar a situação na Palestina é através do conceito de necropolítica, cunhado pelo teórico camaronês Achille Mbembe. Num ensaio de 2003 e no seu livro “Politiques de l’inimitié” de 2016, Mbembe descreve a formação de “mundos de morte”: espaços em que milhares de pessoas são submetidas a condições que lhes conferem o estatuto de “mortos em vida”.

Outra forma de explicar o conceito de necropolítica é a de um poder que tem a capacidade de matar através de uma série de medidas excepcionalmente brutais impostas aos palestinianos e, agora, também aos libaneses.

Para além da eliminação imediata das vidas palestinianas, a necropolítica israelita opera num quadro temporal mais vasto, naturalizando o extermínio, a expropriação, a dominação e a exploração. Isto resulta na criação de condições para uma morte lenta, através da fome induzida, da destruição sistemática do sistema de saúde em Gaza e da imposição de mortes prematuras. Além disso, são impostas condições ainda piores do que a morte, como a tortura brutal, aprofundando o sofrimento dos palestinianos.

Isto traduz-se em viver em constante antecipação da morte, ou daquilo que foi definido como condições piores que a morte. O indivíduo colonizado vive à espera de degradação, humilhação e assassinato. O sujeito colonizado caracteriza-se pela condição de morto-vivo, tal como definida por Mbembe: um ser despojado da soberania sobre o próprio corpo e a vida. Esta vida é vivida como habitar uma câmara de tortura, dando à existência uma sensação avassaladora de ser pior do que a morte. Da mesma forma, ser colonizado implica viver em constante antecipação da possibilidade de o próprio corpo ser violado ou subjugado por outro, pelo colonizador.

Esta política de morte não se dirige apenas aos palestinianos vivos (e agora aos libaneses), mas mesmo os falecidos estão sujeitos a esta visão que lhes nega a possibilidade de morrer devido à construção anterior que os despoja da sua humanidade e, portanto, da capacidade de morrer como humanos.

Existem centenas de testemunhos que indicam que os mortos palestinianos são enterrados à pressa, sem ritos fúnebres adequados, muitas vezes em valas comuns. Nem os corpos enterrados foram poupados, pois as forças israelitas destruíram cemitérios, desenterraram sepulturas e até confiscaram corpos. Episódios semelhantes ocorreram em algumas instalações hospitalares, onde foram apreendidos corpos de doentes falecidos.

A necropolítica dita quem vive e quem morre, procurando gerir as populações criando as condições de vida e de morte. Neste sentido, os mortos são também “administrados” e divididos entre aqueles que são suficientemente humanos para morrer e aqueles que, como se observou, não podem morrer de forma “normal”. A desumanização é tão extrema que “[é] como se reter a morte – negar que alguém morre ou fazer com que alguém não morra – se tornasse um ato de desumanização [em si mesmo]: os palestinianos nem sequer são suficientemente humanos para morrer.”

Evidentemente, a necropolítica assenta numa hierarquização da humanidade, característica do colonialismo, que diferencia entre aqueles que são considerados humanos e aqueles definidos como não-humanos ou insuficientemente humanos. Neste sentido, todos os genocídios são caracterizados porque os primeiros sinais da sua implementação aparecem na linguagem. As declarações dos políticos sionistas no ano passado exemplificam este uso desumanizador do discurso: a categoria de “selvagem” é facilmente substituída por termos igualmente desumanizantes como “sub-humano”, “baratas”, “manifestação cancerosa”, “parasitas” ou “humano-animais.”

A política da morte, que Achille Mbembe definiu na sua obra, baseia-se na capacidade de decidir quais as populações que são completamente descartáveis. No caso do sionismo, o seu colonialismo de colonização assenta na combinação da supremacia branca (entendida como ideologia), da fantasia da violência e do sistema capitalista.

Esta rede de morte não procura apenas a eliminação física da população designada como descartável, mas também procura criar uma população que vive em constante estado de stress e enfraquecimento, o que, dentro da fantasia sionista, impediria a sua resistência à opressão. Portanto, a necropolítica abrange também a ocupação mental e psicológica.

Outro aspecto fundamental da necropolítica é aquilo a que alguns especialistas chamam “necroeconomia”. Isto é, a morte e as condições piores que a morte não só não se opõem ao mercado, como são complementares. Um exemplo claro desta relação entre a criação de populações destinadas à morte e o capitalismo é o projecto de construção de colonatos em terras colonizadas pelo sionismo, ou a repetida narrativa de que Israel “floresceu o deserto” para desenvolver uma indústria agro-alimentar destinada à exportação, tudo baseado na ocupação, eliminação e opressão dos palestinianos.

O complexo de morte que caracteriza a necropolítica ocorre através da constante racialização das populações destinadas a viver em condições piores do que a morte ou a sofrer uma morte prematura. Quando se fala de “raça”, não se refere a fenótipos ou biologia, mas a uma tecnologia de gestão da diferença humana cujo principal objectivo é a produção, reprodução e manutenção da supremacia branca, tanto a nível local como global.

Tudo isto ajuda a compreender que a resistência à opressão colonial sionista não é apenas uma luta para evitar a eliminação física, mas também uma batalha para recuperar a soberania sobre os corpos e a capacidade de reumanização face à brutalidade sionista, que só oferece a morte.

Politicamente, a resistência à necropolítica sionista passa por reimaginar um mundo alternativo, no qual aqueles que são colonizados e brutalizados pela ocupação possam criar formas alternativas de ser, fazer e viver no mundo.

*Publicado originalmente em Lahaine.org. Traduçom do Galiza Livre.