Sou da chamada “geração Y”, mais vulgarmente conhecida como “geração milénio”: os millenials. Esta geração, que se refere às pessoas nascidas entre 1980 e 1996, vive numa época de grandes avanços tecnológicos, num mundo onde foi instaurado o domínio do virtual como sistema de interação social e mediática. De outro modo, a “geração X”, viveu na transição para o mundo tecnológico e, a “geração Z” nasce com a idealização e nascimento da World Wide Web (www) em 1990. Se a “geração Y” já vive rodeada de produtos de baixa durabilidade e efemeridade, a “geração Z” vive a criação de vários aparelhos tecnológicos: televisão, Internet, vídeo-jogos, smartphones. No entanto, não é demais dizer que este recorte social é feito com base em pressupostos característicos de uma sociedade com determinados privilégios e/ou estruturas sociais.
O conceito de ciberfeminismo nasce já nos anos 90 com a ascensão da cibercultura. É um movimento que procura usar a infraestrutura do ciberespaço para estender o alcance da luta feminista, ou melhor, das lutas feministas – preocupando-nos em não considerar o feminismo uma entidade e conceito único. Porém, ainda que sejamos capazes de reconhecer que existe um conjunto de práticas de construção política associadas à Internet e à cibercultura, pergunto-me: de quem e para quem os ciberfeminismos? de quem e para quem o acesso à cibercultura e à ciberpolítica?
Olho para o acesso à Internet como um privilégio. Trabalho na área das tecnologias de informação há 14 anos e tenho em mente que aquilo que faço apenas chega a um corte bem particular da sociedade. Quando falamos da cibercultura é importante ter em consideração que esta é moldada por um conjunto de pessoas em particular. Existem dois grandes perfis de pessoas que acedem a estes espaços: pessoas que ativamente produzem e moldam o conteúdo disponível e pessoas que o consomem continuamente. Ambos estes perfis requerem condições específicas para o fazer: um computador ou outro aparelho com acesso à Internet e Internet. Sabemos que a primeira condição é exclusiva, o que implica a exclusividade da segunda. Quero dizer que ter a capacidade de aceder à Internet e o seu acesso são particularidades de um segmento social com acesso a recursos digitais (seja pela via individual ou partilhada). É com base neste pressuposto que posso argumentar que a Internet, como a conhecemos, não é democrática.
Ainda que sejamos capazes de reconhecer que existe um conjunto de práticas de construção política associadas à Internet e à cibercultura, pergunto-me: de quem e para quem os ciberfeminismos? de quem e para quem o acesso à cibercultura e à ciberpolítica?
O acesso a conteúdo é, muitas vezes, limitado a quem pode pagar, o acesso às redes compreende uma certa capacidade de aprendizagem e acessibilidade. Sabemos que as dificuldades financeiras espelham-se nos segmentos que são criados online, por exemplo, o consumo de publicidade e fornecimento de dados em troca do uso de serviços. Sabemos que a maioria do conteúdo publicado no ciberespaço não está preparado para a acessibilidade, reduzindo assim a hipótese de ser consumido por larga percentagem da população. Sabemos, também, que a autonomia digital, devido a uma série de questões de segurança pessoal e não só, é difícil de obter para uma navegação segura e eficaz.
Em Portugal, a chegada da pandemia derivada da COVID-19 veio demonstrar de uma forma muito clara as desigualdades sociais que também são provocadas derivado das diferenças no acesso à Internet. Por exemplo, enquanto algumas pessoas podiam continuar a comunicar com as suas pessoas queridas, ainda que de forma digital, muitas outras pessoas ficaram no isolamento total. Ou, por exemplo, enquanto muitos conteúdos didáticos eram publicados na Internet, uma grande parte do alunado não tinha sequer um computador para os poder consultar. Ou, ainda, por exemplo, as pessoas que foram enviadas para teletrabalho sem condições habitacionais que as permitisse ter um um acesso seguro e digno. Os exemplos são inúmeros, mas a mensagem é clara: a Internet não é para todas nem chega a todas as pessoas.
A cibercultura sendo construída por apenas parte da população confere-lhe um viés estrutural. À cultura da informação associou-se a cultura da contra-informação. A troca financeira por conteúdo fidedigno gera fossos digitais promovendo o consumo de informação gratuita e gerando dificuldade em distinguir contra-informação, muitas vezes responsáveis por credibilizar e cristalizar situações com determinados alinhamentos estruturais. Esta problematização do acesso à Internet deve-se à efemeridade e rápida mudança do que acontece no ciberespaço.
Por quanto, também, a Internet gerou um espaço de discussão e aproximação política que dificilmente existiria de outro modo. Criaram-se grupos, criaram-se respostas reais a determinados problemas, criaram-se comunidades. Esta construção permitiu conhecer realidades muito distintas, permitiu contestar o sistema e entender a sua configuração. Também, de uma forma mais instantânea (que também pode ser prejudicial) permitiu-nos o contacto com muitas pessoas ao redor do mundo – os programas de chat online vieram para ficar, os podcasts, os videologs, os blogs, os artigos de opinião.
A troca financeira por conteúdo fidedigno gera fossos digitais promovendo o consumo de informação gratuita e gerando dificuldade em distinguir contra-informação, muitas vezes responsáveis por credibilizar e cristalizar situações com determinados alinhamentos estruturais.
Podemos e devemos perguntar-nos novamente: de quem e para quem os ciberfeminismos? de quem e para quem o acesso à cibercultura e à ciberpolítica? A resposta não é simples, mas claramente sabemos parte da resposta, pois somos parte dela. O fosso digital é um problema global. Enquanto a cibercultura molda-se em torno de um grupo de pessoas que têm o privilégio de aceder a esse espaço, outro grupo de pessoas é privado dessa mesma cultura devido a estruturas de poder e manutenção do status quo de determinados sectores sociais. A Internet, por ser construída por pessoas, não demonstra apenas um fosso no seu acesso, a Internet,da forma como é usada hoje em dia, também é aliada ao capital, ao racismo, à xenofobia, ao colonialismo, ao cis-hetero-mono-sexismo, ao capacitismo, ao classism,… A manutenção dessa estrutura depende, na sua maioria, do mau trato social e ambiental. Sejam as populações dizimadas por conta de territórios ocupados, sejam as pessoas em trabalho precário que produzem todo o equipamento, sejam as consequências ambientais de os utilitários serem continuamente atualizados por novos (devido a atualizações constantes nas dependências dos aparelhos físicos).
Sermos parte da resposta implica sermos conscientes desta realidade. Sermos parte da resposta implica sermos responsáveis pela mudança. A procura de alternativas deve ser uma realidade. Quando a cultura do open source (código aberto) surgiu, a ideia era que o conhecimento fosse distribuído por todas as pessoas, que cada pessoa tivesse a capacidade de controlar com exatidão aquilo que usa. Porém, muitas vezes este trabalho não é tido em conta, em troca de software de corporações que oferecem funcionalidades financeiramente grátis mas que implicam-nos como o produto – a venda dos nossos dados. A exploração da nossa informação é rentável para estas empresas, mais do que vendendo subscrições de uso. Cabe-nos a nós procurar alternativas viáveis e seguras. Cabe-nos a nós transformar o ciberespaço para torná-lo um espaço verdadeiramente inclusivo e acessível. Cabe-nos a nós ter consciência que aquilo que fazemos online não chega a larga parte da população e que é necessário continuar com métodos mais tradicionais. É preciso continuar a lutar dentro e fora do ciberespaço.
Acredito que, configurando-nos em meios alternativos, críticos e seguros, podemos contribuir de uma forma crucial para a mudança de paradigma social. Os ciberfeminismos não devem ser apenas uma expansão do feminismo ao sector digital, devem ser uma visão crítica ao próprio ciberespaço e à cibercultura. Os ciberfeminismos devem ter, em sua política, a luta contra a brecha digital, promovendo a troca e criação de informação por vias alternativas, por vias acessíveis e inclusivas e promovendo a sustentabilidade ecológica dos avanços tecnológicos. Ainda que as soluções que nos oferecem sejam tentadoras, pelo polimento que recebem, é importante reconhecer que essas soluções são muitas vezes produtos capitais de trabalho voluntário e comunitário. Deste modo é importante construir também uma cultura de capacitação para o uso da Internet em meios alternativos – nem sempre é fácil estar a par das tecnologias seguras que podemos usar e nem sempre é fácil usar estas mesmas tecnologias.
Cabe-nos a nós transformar o ciberespaço para torná-lo um espaço verdadeiramente inclusivo e acessível. Cabe-nos a nós ter consciência que aquilo que fazemos online não chega a larga parte da população e que é necessário continuar com métodos mais tradicionais.
Em suma, nada na Internet é grátis. Desde o acesso à informação, a produzir informação ou até a aceder a determinados produtos e/ou soluções. Sabemos que a Internet confronta-se com a desigualdade social, por isso a importância de repensar o seu uso, repensar a sua lógica existencial e sobretudo confrontar-nos com o facto de que a cibercultura não representa o mundo como um todo, mas apenas parte dele.
*Artigo publicado originalmente na Revirada Feminista.