No ano 2008, num ciclo de conversas entre veteranas militantes e mocidade arredista, Luz Fandiño era convidada a um encontro no desaparecido centro social A Fouce, de Bertamiráns. A charla mantida, um documento histórico e biográfico de grande valor, foi recolhida na obra “Palavras sem maiúsculas. Experiências militantes na Galiza (1970-2005)”, editado pola Escola Popular Galega. Reproduzimos em duas partes a conversa com Luz, agora que os movimentos populares recordam a sua figura. Este primeiro fragmento conta a sua politizaçom como emigrante.
Luz Fandiño (Santiago de Compostela, 1931, reformada). Toma consciência nacional na emigraçom e começa a militar ativamente em organizaçons arredistas e comunistas na sua volta para a Terra, em finais da década de 70. Hoje continua a apoiar ativamente todo o tipo de iniciativas galegas e populares.
Vamos começar com os aspetos mais biográficos e depois já falaremos da política…
Bem, pois eu nascim de mae solteira, em Sar, a 23 de novembro de 1931. Os tempos eram terríveis, havia um êxodo para as américas e eu também fum vítima desse êxodo. A emigraçom nom é como muita gente pensa que é…nom é como o turismo, nom…íamos pior que o gado, num barco com 1001 emigrantes.
Quantos anos tinhas?
Eu tinha 19 anos, ainda nom figera os 20, mas daquela era-se menor de idade até os 25 anos, íamos num barco que…aquilo foi um milagre que nom afundisse…numha adega íamos 600 mulheres, noutra adega 500 homens e ainda a tripulaçom. Logicamente quando reclamavam era com enganos, e automaticamente eu também piquei. Mas, felizmente, atrasárom-se os meus papéis porque houvo um erro com o meu nome: em lugar de aparecer Marina pugeram Maria e demorei um ano mais a partir. Bem, a mim foi-me mui mal, explorada polas sobrinhas e as irmás de minha avó. Cinco anos trabalhando gratuitamente, maltratada e mal comida…e nom foi o único caso.
Qual era o vosso destino?
Argentina, Buenos Aires. Na província havia mais de meio milhom de galegos – galegos, nom espanhóis – e tínhamos que ficar a 550 km de Buenos Aires; foi assim que me levárom primeiro para Miramar, umha vilinha que ficava a 50 km de Mar del Plata, um lugar muito formoso, nom o nego, mas quando a umha lhe vai tam mal a formosura nom se vê…5 anos que estivem assim como umha verdadeira escrava, e depois mesmo chegárom a bater-me e decidim partir para Buenos Aires. Bem, Buenos Aires foi para mim um lugar de soidade total, até que no ano 1960 entrei na biblioteca do centro galego. Ali foi onde me dérom o empurrom para saber quem era eu, o que era e de onde saía, porque daquela diziam que eu era umha espanholita…e era umha espanholita! Aí recuperei a minha identidade e o meu idioma, passei 3 anos indo à biblioteca; podia ir às quintas-feiras de tarde, que era quando folgava, e surpreendeu-me o submetimento das que estávamos a trabalhar como serventas. Era umha casa onde nom tínhamos quarto próprio nem direito à intimidade, e os senhores e as senhoras nom gostavam de ter umha criada que lesse…era inconcebível para eles. Fôrom doze anos que estivem ali, ganhando algo de dinheiro. Mandava uns poucos cartos para a minha avó e para a minha irmá, assi que nom tinha um pataco comigo; deixava o justinho para andar limpa e talvez comprar um livro (raras vezes). Lembro o maravilhosa que era a imensa biblioteca do centro galego. Ia eu com umha amiga – a mae de Laura Ponte, a atriz – e vimos no expositor que tinham para os livros um livro aberto de Ramom Cabanilhas. O título era “O meu carro”, e até me lembro de parte do poema que dizia: “leva-me meu carro leva pola meiga terra nossa que a minha alma nossa saudosa longe dela nom se afai”…o poema era mui longo, suponho que vós o conheceredes…outro dia voltei à biblioteca com a minha amiga, mas a ela nom lhe interessavam muito os livros de poesia e aproveitou para ir à farmácia, onde havia umha fila enorme de pessoas à espera. Eu fiquei ali com o livro e lim muitas vezes esse poema. Primeiro lim-no chorando e depois respirando, como tomando fôlegos. E quando chegou a minha amiga e me perguntou: “Luz, vamos?” eu dixem-lhe: “primeiro tés que ler este poema!”. Ela nom gostava muito, mas eu insistim e figem-lho ler. Ela leu-no por obriga e, logicamente, nom gostou. Afinal eu quigem levar o livro e perguntei ao biliotecário de nome Ares se o podia comprar. E respondeu: comprá-lo nom pode, mas como sócia da biblioteca tem direito a levá-lo e devolvê-lo. Nesse momento comecei a ver todo o que havia por ali porque estava faminta de livros!
Um dia, em cima da porta da entrada da biblioteca vim um retrato de um homem sentado, e perguntei ao senhor Ares quem era. Ele respondeu-me: “esse homem é Castelao”. Eu ainda nom sabia quem era Castelao. O senhor Ares falava um bom galego, e eu um galego acastroado…
Nom queria parecer tam burra como era e comecei a ir à biblioteca habitualmente. O primeiro livro que lim foi um de Rosalia de Castro. Inicialmente na biblioteca eu ria, chorava…nom estava afeita a estar numha biblioteca onde havia que acatar umhas normas.
Entom na Argentina o único contacto que tiveste com o galeguismo ou o nacionalismo foi através dos livros? Nom conheceste nengum grupo ou personalidade?
Pois através do senhor Ares conhecim muitos poetas como Branco Amor, Suares Picalho…nom me lembro agora mesmo, mas conhecim muita gente. Lembro que numha ocasiom Garcia Sabell viajou a Buenos Aires para dar umha conferência e eu nom puidem ir porque tinha que trabalhar. O senhor Ares ao outro dia dixo-me: “nom sabe o que perdeu, este é o novo Castelao” (risos). O discurso que dera acabara assim: “de pouco vale a muitos galegos levar títulos na carteira se nom levam galeguidade.”
Na Argentina eu comecei a escrever graças ao senhor Ares, lendo Rosalia, Curros…eu gostava da poesia, mas nom sabia escrever bem o galego e o senhor Ares dixo-me “escreva, escreva tal e como lhe saia” e eu dixem: “eu nom sei escrever bem”. Animou-me muito e comecei a escrever com o dicionário de lado. A primeira carta que escrevim foi para a minha irmá. Foi a primeira carta que escrevim em galego. Era um poema, mas a verdade é que era mui, mui, mui ruim. Eu queria que a minha irmá conhecesse a mudança que estava a sofrer falando na nossa língua naquela carta. Nom a enviei directamente senom que continuei a escrever poemas; o senhor Ares animava-me muito porque a mim nom me soavam bem os meus poemas, e aos poucos fum aprofundando mais na forma de escrever, até que um dia o senhor Ares recitou em alto um dos meus poemas e achei que nom estava tam mal o que estava a fazer: nesse momento decidim enviar a carta à minha irmá. Ela respondeu-me em castelhano dizendo “ai pues sí, yo a veces también digo algo en gallego, por ejemplo carallo”, era profundo o que dixera (risos).
Já na França, um dos primeiros dias dixo-me minha irmá “bueno, te vamos a llevar a una casa de una amiga que te va a poner una música que te va a encantar.”
De que data estamos a falar?
Pois isto era por volta do ano 1964, sim, janeiro de 64. Bem, quando cheguei à casa da amiga da minha irmá eu pensei que me iam pôr umha cantiga galega ou algo parecido, mas nom! Pugérom-me um passodoble! Umha senhora estava a chorar polo vinho espanhol e eu aguardava a vez de chorar eu, mas nom cheguei a chorar eu. Entom perguntou-me minha irmá: “¿No te emocionó?” E eu respondim: “nom; o problema dessa senhora nom é o meu. Eu nunca choraria por vinho nengum mas se tivesse que chorar seria por um vinho da nossa terra”. Isso ofendeu as outras mulheres, que me acusárom de separatista: “¡Tanto como quieres tú a Galicia le queremos nosotras!” e eu dixem: “nom cabe dúvida! Mas vos querede-la falando em espanhol e eu quero-a em galego!”. Isto nom o entendiam, nom lhes cabia na cabeça. Foi horrível, havia um abismo entre elas e mais eu. Umha mesmo chegou a dizer: “Yo antes de ser galega soy española” e eu respondim: “neninha, isso é andar ao contrário, é impossível”. Todas se enfrentárom a mim dizendo que era umha tola, umha separatista, umha comunista e nom sei quantas cousas mais. Nom havia maneira de as fazer entender nada, estavam profundamente espanholizadas…
Bem, em Paris estivem um ano inteiro a viver num quarto com goteiras. Tinha que passar com um guarda-chuva aberto para chegar à minha cama…
Perto da catedral de Nôtre Dame havia bancas onde se vendiam livros, e por três patacons podias levar bastantes; para mim era incrível. Eu estava a trabalhar na casa de umha senhora que tinha umha biblioteca à qual me deixava aceder sempre que queria e eu estava mui contente com isso, ainda que eu sabia que ela era monárquica e ela que eu nom me sentia espanhola.
A primeira carta que escrevim foi para a minha irmá. Foi a primeira carta que escrevim em galego. Era um poema, mas a verdade é que era mui, mui, mui ruim. Eu queria que a minha irmá conhecesse a mudança que estava a sofrer falando na nossa língua naquela carta.
A senhora era francesa?
Era, era francesa, conferencista e historiadora, e sempre que sabia de algum evento que me podia interessar, mesmo que houvesse trabalho por fazer, dizia: “venha comigo que hoje tenho umha conferência; se nom entende o que estou a explicar olhe para mim e faga um leve movimento de cabeça”. Levou-me a Nôtre Dame, a Versalhes e a muitos outros sítios. Tenho mui boas lembranças de essa mulher ainda que fosse monárquica porque era boa comigo. Ofereceu-me livros que ainda tenho hoje na casa.
E lembras algo da vida política francesa? Da extrema esquerda? A luita na rua? Como vivias isso?
Claro, eu estivem ali em maio de 68.
E como o viveste?
Ai, eu vibrava com a juventude, aquilo começou com as greves dos estudantes…
Olhavas com simpatia para o que acontecia?
Claro, e tinha muitas discussons com a minha irmá e as amiguinhas que diziam “estos franceses es que no quieren trabajar.”
E as emigrantes tínhades maneira de contatar com algum grupo e participar do que acontecia ou vivíades à margem?
Eu estava à par de todo. Começou em Paris mas a França acabou por paralisar-se completamente. Daniel Cohn-Bendit era o líder dos estudantes, mas nom me inspirava muita confiança…e há uns 5 anos vim umha entrevista a Cohn-Bendit em que lhe perguntavam: “é possível umha revolta como aquela hoje?” e ele dixo: “nom, nom há necessidade, seria umha loucura”. O que acontece é que ele tem umha empresa com muitos trabalhadores e trabalhadoras e nom lhe deve convir muito. Bem, no maio do 68 unírom-se os operários aos estudantes e começou a parar todo. Eu vibrava com a emoçom e dizia “esta é a minha luita”. Na televisom havia debate, falavam da pílula anticoncetiva…a cançom de intervençom era umha maravilha, Louis Aragon e a mulher engaiolárom-me. Fum umha vez ao teatro mas nom lembro o nome…
O Olympia?
Esse, que tam famoso é.
E porque nom podíades contatar, por falta de tempo?
Com efeito. Na Argentina levárom-me umha vez a umha assembleia do partido comunista espanhol e com dous galegos mais fundamos o Centro Republicano Espanhol. Um dos galegos queria chamá-lo “Centro Recreativo” mas o irmao concordava comigo (polo menos era antifranquista). Eu propugem-no como presidente e ele a mim como vicepresidenta mas eu nom quigem; se tinha que berrar, precisava fazê-lo desde abaixo. Organizávamos festas, debates. Passei mui mal a emigraçom mas eu tinha necessidade de rebelar-me. Ia aos comércios procurando gente que se pugesse em contra de Franco. Um dia veu um senhor mui elegante e alto e dixo-me: “usted es Luz Fandiño, no?”, respondim afirmativamente e dixo: “bueno, a mi me parece mentira porque se ve que usted es una señorita muy delicada y esos del Centro Republicano son unos comunistas que mataron y violaron a monjas y mataron a sacerdotes”, eu ouvim o que contava e dixem: “usted sabe que soy gallega, ¿verdad?”, e ele dixo: “sí, usted es de Santiago de Compostela”, “pues le voy a decir una cosa: soy de Santiago y nunca vi que violaran ni mataran a un sacerdote, lo que fue una pena”. O homem voltou-se e nom dixo bem nem mal.
Voltamos a Paris: mudei de bairro e estivem 4 anos num bairro mais central mas de menos categoria (risos), e continuei no trabalho que já tinha. Ali também havia bancas de venda de livros geridas por comunistas, creio que lim um que se chamava “El Mundo Obrero”. Estivem em 3 centros e fum convidada, um deles chamava-se “A Casa de Galicia”, que era um antro de fascistas. O segundo centro galego era umha taberna onde iam os espanholitos para acabar as bebedeiras e insultar os “galheguinhos”. Eu desde a primeira vez que entrei ali enfrentei-me e mesmo quigérom bater-me.
Tinhas um ambiente afim a ti?
Claro. Ubaldo, diretor do IES Rosalia de Castro, de Santiago. Foz enviara o irmao David Rueda que me apoiou muito. Só ouvir um companheiro que me falasse em galego já era umha maravilha.
Na Argentina levárom-me umha vez a umha assembleia do partido comunista espanhol e com dous galegos mais fundamos o Centro Republicano Espanhol. Passei mui mal a emigraçom mas eu tinha necessidade de rebelar-me. Ia aos comércios procurando gente que se pugesse em contra de Franco.
Estávades organizados?
Estávamos, nom há dúvida, algo fazíamos. Da Casa de Galicia expulsei-me eu mesma; pedírom-me que recitasse poemas de Rosalia de Castro e eu neguei-me, porque os conhecia mui bem e sabia que nem sequer gostavam do galego. Também colaborei algumha vez com o pai de Manu Chao, que tinha umha estaçom de rádio.
Como era o emigrante galego médio em condiçons políticas?
Olha, um emigrante galego tinha como único objectivo fazer cartos; por isso, quando me viam comprar um livro pensavam que estava a deitar o dinheiro para o lixo.
Estávades em algum sindicato?
Eu nom, e a maioria das pessoas galegas penso que tampouco.
Víades televisom?
Sim, mesmo havia quem pagasse umha quota para que nom houvesse interrupçom.
Nom havia publicidade?
Nom. Passavam teatro, filmes, debates…havia muitos debates na televisom que de verdade valiam a pena.
Voltando ao tema dos 3 centros galegos faltava-me por falar do “Toxo” onde polo menos admitiam que eu falasse em galego. Tínhamos um coro…mau, mau…mau pior que mau! (risos) de verdade dava peninha. O que dirigia o coro era galego, mas falava um galego péssimo, eu pedim-lhe para me falar em bom galego ou entom em francês. Propujo-me traduzir “Negra sombra” para o castelhano para que a gente o entendesse, e eu respondim-lhe “se ides fazer isso avisa-me porque me vou”.
Entom tínhades muitos enfrentamentos?
Continuamente.
E como vivias com toda esta situaçom?
Mal, porque já o facto de ser emigrante se leva mal, ainda que se queira ocultar.
Lembro que no Centro “O Toxo” se propugera convidar Garcia Sabell para o dia das letras galegas, mas eu neguei-me: esse homem era um traidor. No início estávamos eu, um rapazinho anarquista e Foz. Foz já fora expulso e ficamos esse rapazinho e mais eu. O rapaz apoiava-me, mas houvo umha votaçom, e claro, perdemos. Quando estava chegando Garcia Sabell, eu fum colocar as mesas para a conferência, e umha companheira perguntou-me: “ai Luz, e tu apesar de teres perdido a votaçom, também ajudas?”, e eu dixem-lhe que sim, que a gente de esquerdas sabe perder mui bem. A minha intençom era abrir-lhe a porta…quando o vim chegar com a esposa e com um tal Carvalheira (creio que era o nome de guerra) abrim a porta e estavam todos a falar em espanhol. Eu estava furiosa, tinha umha vontade de dizer-lhe quatro cousinhas! E dixem: “bem-vindos a este curruncho galego”. O Garcia Sabell dirigiu-se ao secretário da Casa de Espanha e dixo-lhe: “Comprenderás que eu agora entro numha casa galega e tenho que falar em galego”. E o secretário responde: “ai si, si yo también se falar galego” (risos). O tal Carvalheira estava nervoso, se tivesse umha arma eliminava-me com certeza. O diretor do Centro dixo-me discretamente que me queria pedir um favor. Queria que recitasse algumha cousa enquanto o coro se preparava para a atuaçom. Eu pensei “esta é a minha!” (risos) e comecei a recitar um sobre Rosalia que acabava “Rosalia é Galiza e Galiza nunca morre”. O segundo era sobre Curros. Entom o Garcia Sabell dixo ao Carvalheira: “que conste que se eu ontem na Casa de Espanha falei em castelhano foi porque mo pediste”. O Carvalheira estava furioso, furioso de todo. O Garcia Sabell começou-me a louvar dizendo que falava mui bem em galego, e eu respondim: nom doutor, nom falo bem, mas as que decidimos defender a nossa língua e a nossa cultura temos que fazê-lo em galego. Ainda me lembro quando deu umha conferência no centro galego de Buenos Aires que acabou assim: “de pouco vale a muitos galegos levar títulos na bilheteira se nom levam galeguidade, galeguidade e galeguidade”. Sabell quijo tratar-me por tu mas eu nom o permitim como vingança. Como me prestou essa vingança.
Em que ano foi isto?
No ano 78, porque no seguinte já voltei para a Galiza.
E voltaste porque tinhas ganas de voltar? Nom foi por questons laborais?
Nom, nom foi por questons laborais.
E quantos anos tinhas?
Tinha 47 anos.