No passado dia 19 de fevereiro entrevistámos o sociólogo João Teixeira Lopes no seu gabinete na Faculdade de Letras do Porto, onde é professor catedrático. Ele foi vice-presidente e presidente da Associação Portuguesa de Sociologia, mas também teve uma destacada intervenção na política portuguesa como deputado nas legislaturas X e XI, e candidato à Presidência da Câmara Municipal do Porto em 2005 e 2009 pelo Bloco de Esquerda, do qual é militante. Com ele falamos das classes sociais em Portugal, sobre as quais escreveu uma obra em três volumes com vários colegas: Os burgueses, As classes populares, As classes médias.


Estamos muito curiosos por saber se o volume dedicado aos burgueses vendeu mais do que os dedicados às classes médias…

Os burgueses” foi a obra que vendeu mais. Para teres uma ideia, os burgueses chegaram quase aos dez mil exemplares, o que para um livro de ciências sociais é muito, enquanto que as classes populares venderam dois mil exemplares, um pouco mais talvez, e as classes médias, mil exemplares.

Há uma explicação para isso. Há um lado de curiosidade e há um lado também, evidentemente, de crítica. As pessoas têm muito interesse em saber quem são os poderosos de um país, como é que essa elite se constitui. Isto é, há quem leia um livro por curiosidade: é sempre interessante saber a vida dos ricos, como é que educam os filhos, que tipo de casas têm, como pensam. E depois está o lado crítico, que é verdadeiramente a leitura que nos interessa: perceber como é que se estrutura uma classe que quer ser classe dominante e que quer exercer o poder sobre as demais, sendo que exercer o poder implica algum grau de consentimento e algum grau de reconhecimento de legitimidade. Nós procuramos fazer isso em Os burgueses, procuramos mostrar até dentro daquilo que é a evolução histórica portuguesa, como é que a burguesia se vai constituindo, como é que ela é muitíssimo dependente dos apoios do Estado e como ela também funciona hoje em dia no sistema de portas giratórias entre administração, governo e empresas públicas; esta porta giratória é fundamental. Mas, por outro lado, é questão de saber como é que eles conseguem disseminar e impor a sua visão do mundo. Como é que uma visão do mundo que é particular e que serve os interesses de uma classe, a certa altura consegue ser universalizada a toda uma sociedade e aí prende-se com a questão da disputa do senso comum, que é a questão fundamental na política.


Gostaríamos também de saber qual foi o motivo de começar a obra precisamente pelos burgueses antes que pelas classes médias ou populares.

Sim, na verdade era só para existir “Os burgueses”, com esses objetivos de dar a entender como é que em Portugal a burguesia se estruturou, e também de desmontar a tal narrativa segundo a qual a burguesia merece os privilégios que tem. Queríamos desmontar isso e perceber como ela foi feita numa estrutura de modernização conservadora, de compadrio, de captura do Estado e de captura também dos aparelhos da governação, esse era o objetivo.

Depois pareceu-me -e foi por insistência minha-, que deveríamos falar das classes populares. Dar só a conhecer o poder da burguesia era contribuir também em certa medida para legitimar esse poder. Há que conhecer como é que as classes subalternas são também estruturadas como é que vivem e para não reproduzirmos a ideia de encontrarmos nas classes subalternas uma espécie de espelho na negativa ou um espelho distorcido das classes dominantes. Isto é, as classes subalternas têm uma afirmação própria têm uma vivência própria têm um espaço de representação próprio e por isso era importante conhecê-las.

E depois, o terceiro volume também por insistência minha, surgiu para dar conta de como em Portugal as classes médias estão cada vez mais a comprimir-se na base da sociedade. As classes médias são o nó górdio do discurso político, o grande excitante político. Quase ninguém fala das classes populares e toda a gente fala em nome das classes médias e para as classes médias, as políticas públicas estruturam-se em função das classes médias, etc. Mas isso é um efeito de biombo, porque na verdade as políticas públicas estruturam-se para as classes dominantes, e a maior parte da classe média está a pauperizar-se e vive no medo da desclassificação social. Isso é muito importante. Ela ainda se pensa como classe média, como classe tampão, como classe mediadora, mas as suas condições de vida aproximam-se cada vez mais das classes populares e isso evidentemente pode criar forças profundamente retrógradas. Pode ser o o caldo para o reacionarismo que em muito contribuiu historicamente para o ascenso das forças de extrema direita.

Se conhecermos os mecanismos que fazem a reprodução social, se conhecermos os mecanismos que estão por detrás das desigualdades sociais, é mais fácil combate-los. Se formos cientes das matrizes que geram as desigualdades sociais estaremos em condições de aumentar as possibilidades de mudança.

As classes médias são o nó górdio do discurso político, o grande excitante político. Quase ninguém fala das classes populares e toda a gente fala em nome das classes médias e para as classes médias, as políticas públicas estruturam-se em função das classes médias, etc. Mas isso é um efeito de biombo, porque na verdade as políticas públicas estruturam-se para as classes dominantes

E este encantamento do ser humano pelos ricos e poderosos que está na base da crença da direita política de sermos desiguais e haver classes naturais, de onde é que surge?

É uma questão essencialmente simbólica. O poder das classes dominantes só existe como crença. Acreditarem que seu poder é uma fatalidade é uma das formas, ou que nada pode ser diferente, que nada pode ser transformado, que tudo será igual até o final dos tempos, que não vale a pena mudar nada. Também todas as ideias do darwinismo social e que eles são os melhores. Por que é que este poder é tão longevo? Porque as classes dominantes asseguram-se também os meios de transmissão simbólica do seu poder e esses meios de transmissão simbólica têm-se vindo a metamorfosear. Já não é a violência física, já não é a coerção brutal, é o controlo das industrias culturais, e agora o controlo evidentemente dos novos media.

Os pobres são feitos de história e de estatísticas, mas os ricos têm biografias.

Sim, sem dúvida. Claro, quem é que controla a produção da história? Os pobres são falados os ricos falam. Eles não controlam a sua narrativa.

Embora o vosso trabalho teve a pretensão de dar-lhes voz.

Sim. Eu não diria tanto de dar voz porque as classes populares têm voz, mas amplificar, retirá-las da invisibilidade. Nós fazemos isso e é uma metodologia que eu tenho usado muito, seguindo os ‘retratos sociológicos na primeira pessoa’ que o antropólogo Oscar Lewis fez há muitos anos atrás com um livro chamado “Os Filhos de Sánchez”. A ideia é de dar eco, de dar visibilidade às classes populares nos seus próprios termos. Se calhar, é a melhor maneira de combater a hegemonia das classes dominantes porque na verdade elas estão muito habituadas a falar na sua linguagem. A linguagem é uma maneira de criar o mundo, é um frame, é uma moldura da forma como vivemos. Nós vivemos dentro dessas molduras discursivas

Quanto desse direito ou aspiração de termos uma biografia está a reconfigurar a materialidade das classes e, se calhar, tem a ver com a importância crescente das políticas identitárias?

Sim. Sabemos bem como as políticas identitárias também se alimentam da tal ideia altamente individualista da sociedade em rede, isto é, de que cada pessoa é um ponto distinto na rede e como ponto distinto é um ponto soberano, e isso pode ser lido de uma forma perniciosa porque desliga as pessoas da consciência dos condicionamentos sociais. É muito importante que as vozes ecoem, é muito importante que o espaço público seja polifónico, mas é tão essencial também a percepção de como existe uma lógica sistémica, que ajuda a compreender e que ajuda a articular as nossas vivências.


Em relação aos processos de segregação educacional, profissional, etc. descritos em Os burgueses, acreditas numa fugida ou migração da burguesia portuguesa para participar em algo como uma classe burguesa global?

Sim. A burguesia portuguesa tem uma característica própria dos países semiperiféricos que é um certo paroquialismo. Mas ao mesmo tempo a nova grande burguesia tende a transnacionalizar-se. Isso vê-se muito bem nos projetos educativos dos filhos, cada vez mais internacionais, em a componente das viagens, das línguas, do cosmopolitismo digamos de fachada, porque o cosmopolitismo implica saber aceitar e lidar com a diversidade, e duvido que isso aconteça, não é? Enfim, cada vez mais há a consciência de que a grande burguesia só tem hipóteses nessa estratégia transnacional, e as escolas, os projetos habitacionais, residenciais e os projetos culturais coincidem muito nisso. E também através das finanças, com o instrumento básico dos offshores e a concentração financeira. Não obstante, a burguesia portuguesa é periférica na Europa e no mundo e por isso ao mesmo tempo que ela tende a concentrar as suas energias nessa transnacionalização não consegue fazê-lo ao nível dos seus negócios, e há uma tensão permanente entre paroquialismo e globalização em que ela vive. Continua no essencial a ser uma burguesia que aposta nas formas de rentabilidade imediatas na exploração do trabalho, rentista, que vive das ajudas do Estado.

Aliás, nós temos essa enorme contradição: classes populares que são hiperfiscalizadas e as classes burguesas apoiadas pela máquina do Estado com isenções fiscais, deduções fiscais, incentivos, apoios económicos, no entanto desenvolvem constantemente o discurso de que é preciso fiscalizar os pobres e que é preciso desconfiar dos pobres e que é preciso fazer aquela distinção entre os bons pobres que aceitam o domínio e os maus pobres.

A burguesia portuguesa tem uma característica própria dos países semiperiféricos que é um certo paroquialismo. Mas ao mesmo tempo a nova grande burguesia tende a transnacionalizar-se. Isso vê-se muito bem nos projetos educativos dos filhos, cada vez mais internacionais, em a componente das viagens, das línguas, do cosmopolitismo digamos de fachada, porque o cosmopolitismo implica saber aceitar e lidar com a diversidade

Passamos para as classes médias. Definir quem é ou quem não é classe média é problemático em todos os países, ou por acaso é especialmente problemático em Portugal?

É sempre problemático para todos os países porque as classes médias alargam-se num terreno algo indefinido. As classes médias estão muito ligadas ao processo de escolarização e também ao processo do chamado organizational man. Isto é, nas empresas, nas organizações criam-se chefias supervisões, cadeias intermedias que, funcionando muitas vezes como elo das classes dominantes, têm no entanto um poder de controlo de vigilância sobre as classes populares. Portanto, por um lado são classes que têm recursos escolares maiores que as populares, têm também recursos organizacionais próprios, embora elas oscilam: nem são burguesia nem proletariado.

No livro dedicado às classes médias os capítulos 1, 2 e 5 foram focados a debater estas problemáticas.

Sim, é um livro que tem uma componente teórica também. Depois há outra questão, que é tu tens de pensar as classes sociais sempre dentro de um espaço social. Cada classe só existe em relação com as outras e a relação é diferente consoante as formações sociais, consoante aos países. A classe média em Portugal é diferente da classe média na Suécia ou é diferente da classe média na Polónia e isso também tem as suas implicações. Ou seja, a configuração e a interdependência entre elas se vai estabelecendo em cada país.

Há outra coisa que nos chamou a atenção no livro: não sei se é casual mas este livro é o mais fraco dos três, e também as classes portuguesas médias são muito fracas.

Muito fracas, muito fracas. Em pauperização. Muito dependentes também das crises. Com uma fraca almofada de resistência e de acumulação. E com o medo da desclassificação social. Os filhos das classes médias que têm curso superior não encontram um reconhecimento social, e em particular no tecido económico. Isso para a classe média é dramático porque elas investem em força no capital escolar e os filhos conseguem cada vez mais títulos escolares mas depois o título não tem uma relação com o mercado de trabalho. Os jovens das classes médias que começam a pensar o futuro vivem aprisionados na incerteza e emigram, e isso forma uma bolha de descontentamento muito grande, uma bolha de ressentimento. As classes médias são muito propensas ao ressentimento porque também são muito propensas às expectativas que foram criadas e nelas, e o fosso entre expectativas e concretizações vive-se de forma dramática.

Os filhos das classes médias que têm curso superior não encontram um reconhecimento social, e em particular no tecido económico. Isso para a classe média é dramático porque elas investem em força no capital escolar e os filhos conseguem cada vez mais títulos escolares mas depois o título não tem uma relação com o mercado de trabalho.

É já uma frase feita em todos os países no Ocidente dizer que ‘as novas gerações vivem pior que seus pais’.

Exatamente. Repara, a ideia surgiu aqui em Portugal antes que em toda a Europa. A ideia do progresso é a narrativa da modernidade, que cada geração é uma etapa numa linha de ascensão. Agora não. Agora percebe-se que os mais jovens podem viver pior que os pais e se inverte o ciclo das representações simbólicas.

Mobilizaçom. Fonte: Público.pt

A relativa fraqueza da classe média portuguesa estaria na maior desigualdade interna ou no menor rendimento geral?

As duas coisas. Tirando uma pequena parte que é cooptada pelas grandes empresas, nomeadamente empresas internacionais, é uma classe que tem vindo a ser afetada nos rendimentos para aproximar-se à base da distribuição. Há uma pequena parte que se julga burguesia e há uma pequena parte que não se quer julgar povo mas cujas condições de vida se aproximam das classes populares, e para essas em particular, nesse segmento pauperizado, o tal nível de ressentimento é ainda maior. Aquí é onde a extrema-direita vai buscar votos e apoio cada vez mais. O Vox em Espanha tem muita política identitária, noto uma maior consistência ideológica, uma herança franquista muito assumida, muito autoritária. O nosso partido de extrema-direita é muito mais pragmático e oportunista, isto é, vive destas ondas de ressentimento social. Claro que lá está também o discurso anti-imigração, mas não se metem nas questões identitárias, vão buscar os ressentimentos sociais e alimentam-se a desigualdade social.

E já que estamos a falar do Chega, eles parecem ter mais projeção de votos no Sul de Portugal.

Sim, é verdade. Isto é, porquê? Eu acho que há várias razões. Em primeiro, em Portugal, ainda há no Norte um peso maior do catolicismo que desconfia dos políticos mais extremistas e tende a sentir-se mais representado nos partidos da democracia cristã. Há uma tendência conservadora de inércia, muito ligada ainda também a um certo universo camponês, de preservação, de estabilidade, de ser avesso à mudança, que refreia a ascensão do Chega. E por outro lado, eu acho que os problemas sociais são mais agudos no Sul. Apesar do Porto, como cidade turistificada e gentrificada, ter imensos problemas de habitação, a área intermetropolitana de Lisboa e o Sul em geral está mais sob pressão com os problemas de serviços públicos. E também no Sul há uma maior visibilidade da população estrangeira e essa visibilidade é utilizada para fins xenófobos. O que passa é que essas três coisas, ou seja, o tecido social mais tradicional, uma menor pressão sobre os serviços públicos, que aguentam mais, e simultaneamente a menor visibilidade dos estrangeiros, que faz com que o Chega penetre menos aqui.

Em primeiro, em Portugal, ainda há no Norte um peso maior do catolicismo que desconfia dos políticos mais extremistas e tende a sentir-se mais representado nos partidos da democracia cristã. Há uma tendência conservadora de inércia, muito ligada ainda também a um certo universo camponês


São muito interessantes esses legados históricas que aparecem em certos momentos, como é a distribuição de voto entre o Sul e o Norte em Portugal, Espanha, ou Itália, onde a divisão está muito marcada.

Muito marcada, é verdade. Se bem que está-se a modificar, o Partido Comunista está a desaparecer do Sul.

Curiosamente, onde cresce a extrema-direita.

Isto é muito importante, a extrema-direita alimenta-se dos territórios e das franjas em que as pessoas se sentem mais inseguras, sentem-lhe menos à almofada protectora, ou do Estado, ou do patrão, ou da economia paternalista. Quando essa economia paternalista, ou o peso dos serviços públicos, do Estado, das redes de solidariedade afrouxam, a extrema-direita tem mais possibilidade.

Isto é muito importante, a extrema-direita alimenta-se dos territórios e das franjas em que as pessoas se sentem mais inseguras, sentem-lhe menos à almofada protectora, ou do Estado, ou do patrão, ou da economia paternalista.

O que resta em Portugal da herança fascista?

Pouco. Pouco. O Chega não pega nisso, por exemplo. O imaginário salazarista é muito minoritário. Aí há uma diferença, não é? Espanha teve uma transição pactada. Em Portugal, houve um golpe de Estado que depois foi alavancado por uma revolução popular. E basta comparar as constituições, não é? Aqui a marca revolucionária é mais forte e esmagadora e a maioria da população revê-se, embora genericamente, no imaginário do 25 de abril. E o salazarismo é discurso de uma minoria muito envelhecida e ressentida. Não é um discurso que seja capitalizado politicamente.


Das classes médias disseste antes que eram nacionais, mas também se fala de uma classe média mundial, sobretudo quando se olha para as estadísticas da Ásia. O que achas desse discurso de uma classe média mundial?

Mas essa classe média mundial não tem uma consciência mundial. Ela pode existir em certos ambientes de trabalho que o favorecem, ambientes das indústrias culturais,
por exemplo, na produção simbólica, na intermediação cultural, na arte, sim, essa classe média move-se com muita facilidade aí. Move-se muito com facilidade também nos contextos de cooperação, de programas de cooperação. Mas ela é muito diversa de país para país. Por isso é que eu digo que se tu fosses a classe média portuguesa comparada com a classe média nórdica, não há uma operação possível. Portanto, eu acho que importa haver a classe média dentro de cada território.

Portugal, como a Galiza, viviram nas últimas décadas uma mudança sociocultural muito forte, associada a uma desagrarização. O nacionalismo galego, hoje politicamente de esquerda, tem muito presente o desarreigamento cultural camponês, porquanto a aculturaração da modernização foi concorrente com a espanholização dessa população. No volume das classes portuguesas prestastes especial atenção às questões de submissão e hegemonia cultural, mas não achamos muita atenção a este particular ponto de vista de desarreigamento da cultura e tradições camponesas. Então, a pergunta é: vive-se em Portugal algum tipo de nostalgia ou de preocupação pelas perdas culturais, sociais e ambientais associadas à modernização? E se houver, onde é que ficariam politicamente?

Não, de facto, não há, tirando algum tecido associativo, não há grande representação política, política num sentido amplo, da descamponização e da perda de raízes culturais. Vamos lá ver. Esse discurso, essa preocupação também tem os seus perigos. Isto é, nós às vezes tendemos a mitificar as ditas raízes populares, ou as raízes rurais, quando elas também foram sinónimo de muito sofrimento, de muita exploração, de vidas muito difíceis. E tendemos ainda a considerá-las de uma forma fixista, como se estivessem paradas no tempo. O que eu acho que é um desafio para as classes populares, e se quiseres, para a esquerda, incluindo a esquerda nacionalista, é encontrar validade naquilo que são as formas de reciclagem das tradições que as classes populares vão fazendo. E que às vezes se encontram onde menos se espera. Podem encontrar-se nas formas de arte urbana dos miúdos das classes populares. Podem encontrar-se no tecido associativo, onde elas ainda são vivas, mas que vão tendo também adaptações. E podem encontrar-se em formas artísticas renovadas, como em algum teatro. Eu acho que serve prestar uma atenção muito grande àquilo que é hoje a reapropriação, a reciclagem, a reinvenção das culturas populares. Pensar que o tradicional não tem que estar num passado que morreu. Deve ser antes um passado que nunca deixa de viver, mas que dialoga com o presente e que é capaz de imaginar o futuro.

O que eu acho que é um desafio para as classes populares, e se quiseres, para a esquerda, incluindo a esquerda nacionalista, é encontrar validade naquilo que são as formas de reciclagem das tradições que as classes populares vão fazendo.

Há outra questão relacionada, que é o atraso na industrialização e modernização de Portugal, também da Galiza, com respeito a outros países da Europa. Esta tardia industrialização é alvo de algum tipo de debate público? Alguém acha que o relativo atraso no progresso de Portugal seja um fracasso ou um problema histórico?

Sim, tem a ver com a tal modernização conservadora. Repare, aqui em Portugal, o setor secundário, na indústria, nunca foi dominante. Se for olhar para os censos, para o período censitário, nunca tivemos um setor secundário que fosse primordial. Ou seja, passamos de uma situação em que dominava a agricultura para uma situação em que dominam os serviços. E que serviços são esses? São serviços turísticos ou são serviços de baixo valor acrescentado. Isso é uma das chaves do nosso atraso. Isto é, de alguma maneira, nós, hoje, na divisão do trabalho que existe na Europa, nós somos os destinos turísticos.

Mas há um discurso histórico de: ‘Ei, fracassamos como país’?

Há um discurso histórico. Hoje fala-se muito da policrise, que Portugal sempre viveu em policrises, em crises sucessivas, sim. E há um discurso de desistência, inclusivamente até da própria intelectualidade. De considerar que nós somos a choldra, o país dos vencidos, um país eternamente fracassado. É verdade que sim. Mas, ao mesmo tempo, e em boa medida isso liga-se à fraqueza da nossa burguesia. Uma burguesia que, ao contrário da palavra empreendedora, foi muito pouco capaz de empreender por si mesma, que viveu sempre das rendas, dos monopólios, do apoio estatal. Sempre. Ou seja, as lógicas capitalistas mais puras entraram em Portugal sempre sob o prisma do Estado e de um Estado providencial.


Mas isso politicamente foi uma questão de conflito?

Sim. Foi. É um tema forte. Mas eu acho que a nossa burguesia continua a ser uma burguesia rentista, agora, na área financeira. Mesmo durante o salazarismo, onde é que a indústria cresceu? Nos setores protegidos pelo Estado, de quase monopólio. E agora a mesma coisa. Quer dizer, o Estado protege certos setores: as grandes energéticas, ou a banca. Mas não há verdadeiramente produção industrial, nem há soberania, sob esse ponto de vista. E parece não importar. Porque parece que já toda a gente se resignou ao facto de nós termos um dos destinos turísticos da Europa. Destinos turísticos e destinos da especulação imobiliária, evidentemente.

A questão da especulação imobiliária está a tornar a questão da habitação crucial. Crucial. Crucial. Está a destruturar as sociedades. Porque está a chegar às classes médias, e quando chega às classes médias é um problema de discurso político, não é? Porque as classes populares sempre viveram mal, mas agora ninguém pensa em comprar casa, ninguém consegue comprar casa, portanto, a questão da habitação está a precarizar cada vez mais as existências e está a bloquear a emancipação juvenil, os jovens não conseguem ter a sua própria casa, a sua própria família, os seus filhos. Somos o país mais embelecido da Europa.

Não há possibilidades…

Eu só vejo uma possibilidade que é termos ainda mais imigração, mas para isso é preciso integrá-la. É fundamental integrá-la, não é? Somos, felizmente, um país generoso, generoso a acolhê-las na legislação, em fronteiras relativamente abertas, mas estamos a ter dificuldade a integrar, estamos já a ter casos de exploração de uma obra imigrante muito preocupante. Nós hoje estamos até já a ter uma dificuldade em integrar os imigrantes. Quer dizer, nós precisamos de mais imigração como precisamos de estancar a emigração, porque nós estamos com um volume de saídas que se aproxima das saídas dos anos 60 do século passado.

Eu só vejo uma possibilidade que é termos ainda mais imigração, mas para isso é preciso integrá-la. É fundamental integrá-la, não é? Somos, felizmente, um país generoso, generoso a acolhê-las na legislação, em fronteiras relativamente abertas, mas estamos a ter dificuldade a integrar

A respeito disso. O Chega começou já com o discurso da sustituição da população. Está a ter repercussão?

Ainda não. É ténue ainda. Começam a falar nisso, mas ainda não é um discurso que pega, ainda não está a aderir muito à realidade porque apesar de nós termos mais imigração, comparativamente com outros países europeus é menos. Ainda. Mas começam a tentar, estão a ensaiar fazer esse discurso da substituição, mas ainda não é o eixo. O eixo ainda é a questão social, os ressentimentos sociais.


Há uma frase muito famosa na Galiza, de um dos personagens mais relevantes do nacionalismo galego, que foi Castelão, que diz: o galego não protesta, imigra. Concordas?

Sem dúvida. Para Portugal, completamente. O facto de haver uma válvula de escape chamada emigração torna os conflitos sociais mais geríveis. Porque, mesmo alguns desses jovens mais consciencializados e mais politizados, migram, isso até se reflete nos resultados eleitorais.
E isso cria menos densidade política, menos densidade na interação política e na cultura política. Concordo inteiramente com essa frase.

Para rematar. Há debate sobre a responsabilidade do colonialismo português?

Pouco, pouco ainda. Insuficiente. Começa a haver. O nosso primeiro-ministro já pediu desculpas em Moçambique por um massacre horrendo ocorrido nos anos 70, no final da Guerra colonial. Mas, ainda persiste em Portugal a ideia de que nós somos um povo brando na colonização. Essa sim é uma herança salazarista. Que somos mais de misturar-nos do que de oprimir, e de que os colonizados gostavam de nós. Isso reflete-se nos manuais escolares, que abordam de forma muito pouco crítica o período colonial. Mas eu vejo alguma esperança, há cada vez mais debates.

E visto na perspectiva da submissão aos poderes econômicos extrangeiros, até mesmo às elites económicas das ex-colónias, como foi o caso das inversões angolanas em Portugal, qual é a percepção, como é que esta questão é politizada, se é que é?

Em relação ao regime angolano havia um forte conluio de classe. Isto é, a burguesia portuguesa aliou-se à burguesia angolana numa situação pós-colonial em que se mantinha, por outras vias, a exploração do povo angolano. Nessa aliança estratégica, Portugal era uma porta de entrada na Europa e no escoamento de capitais obtidos pela expropriação do povo angolano pela burguesia. Aliás, o presidente angolano, na altura, chegou a dizer que Angola tinha direito à sua acumulação primitiva. E a burguesia portuguesa encontrou em Angola, mais ou menos, uma fonte de capitais que lhe faltavam. É uma típica situação pós-colonial em que, digamos, o povo continua a ser explorado.

Livros nos que dos que o entrevistado é um dos autores. Fotografia do entrevistado.