Em relação à questão proposta neste número 9 da Revirada, sobre os transdiálogos feministas, pensei no impacto degenerativo que precisamente a falta de espaços para falar tem causado no movimento feminista nos últimos tempos. Ouvimos monólogos de um e outro lado, com frequência de posicionamentos muito marcados, e elaborados pelas elites académicas ou de experiências muito concretas, mas com pouca margem para a pergunta, a curiosidade e de lugares mais diversos e matizados.

O resultado foi uma série de manifestações muito violentas, muito polarizadas, com agressões a direitos fundamentais das pessoas, a ser e existir, e também com ataques muito patriarcais, ao meu ver, em que se queria calar bocas em nome de um feminismo todo-poderoso, superinclusivo, mas que não permitia qualquer possibilidade de questionamento e crítica.

Foi, e é uma situação em que, ou bem te posicionas 100% num lugar, ou bem segues a estratégia da avestruz, escondendo a cabeça debaixo da terra à espera de que o barulho vá embora. Mas não vai.

Esta tendência à argumentação e contra-argumentação muito extremista e exigente – qualquer ponto ou vírgula fora do sítio é razão suficiente para se sentir mais agredida, provocar mais uma nova resposta, e daí uma interminável batalha seletivamente surda ao nosso erro, e muito sensível ao das outras – não é, sem dúvida, nova nem no feminismo nem em outros ativismos. E, com certeza, pode aplicar-se tanto à questão dos direitos trans, como ao debate eterno sobre a prostituição, à crítica do feminismo anticolonialista, antirracista, ou anticapacitista, entre outras.

Da mesma maneira, e com frequência paralelamente aos debates mais públicos, esta atitude pouco colaborativa no diálogo entre iguais, pode e deve ser também identificada  na organização interna dos movimentos e coletivos feministas, onde apesar do esforço em trabalhar os cuidados do grupo duma perspetiva não patriarcal, e da crescente tomada de consciência em redefinir – pelo menos por algumas – a liderança, poder e hierarquias dentro do grupo, como já falamos em anteriores artigos desta secção, parece que ainda temos um longo caminho a andar.

Por esta razão achei que seria interessante abordar neste apartado da Revirada, dedicado ao trabalho feminista em coletividade, o que acontece nos grupos quando surge o conflito, ou mais diplomaticamente nomeada, a diferença.

A transversalidade do diálogo, de nos comunicarmos com abertura ao que nós próprias pensamos e sentimos, e sermos desta maneira quem de nos abrirmos ao que outras pensam e sentem, é a base em que estamos a ter dificuldades.

No âmbito da facilitação de grupos, sociologia, educação social ou pedagogias críticas, entre outras disciplinas, tem-se em conta a importância dos lugares de poder e falta de poder dos que interagimos as umas com as outras, e dos que, portanto, construímos coletividade e ação feminista.

Na vida em geral, e em situações de conflito em particular, podemos ser definidas ou autodefinirmo-nos como vítimas ou oprimidas, como salvadoras, ou como agressoras ou perseguidoras, com a evidente incomodidade que isto possa significar.

O “Triângulo dramático de Karpman” (1968) muito utilizado na psicologia social e na abordagem das relações humanas e do conflito, e que mostro a seguir, pode ser de utilidade para entender isto.

É provável que na situação grupal de conflito comecemos sendo as vítimas, as oprimidas, com total legitimidade, porque realmente estamos a viver uma situação em que a nossa liberdade de pensamento, movimento e ação é limitada, questionada e atacada. Daqui identificamos aquela pessoa – ou pessoas – que consideramos é a origem desta opressão, e a ela demandamos com mais ou menos efetividade que resolva o problema. Em parte, porque ela tem a chave, e em parte porque nós não somos capazes de fazê-lo por nós próprias, isto último às vezes mais difícil de reconhecer.

O posicionamento de oprimida ou vítima, é de vulnerabilidade, de incapacidade de decidir e de profunda tristeza. Um papel, às vezes um bocadinho passivo que pode ou bem ficar eternamente à espera de que se veja a sua dor, ou fazer demandas com pouca determinação e intenção de se implicar no processo de resolução. No entanto, também é um lugar de onde se legitimar e, se continuar o conflito, tomar uma atitude mais beligerante, opondo-se e mesmo boicotando o grupo sistematicamente. Apareceria então o papel da “terrorista” ou “freedom-fighter”, se preferirem.

Mas em todo o grupo temos a amiga salvadora, aquela que nos vai escutar, empatizar com a nossa dor, e nos dar apoio incondicional. Vai possivelmente ser a nossa interlocutora com a agressora, interceder por nós com energia e firmeza, mas com a calma e diplomacia inerente ao seu distanciamento e desapego do conflito. Porém pode chegar a ser uma figura excessivamente maternalista, tirando a ação da própria oprimida, sem esquecer que a sua atitude superprotetora está não só baseada no altruísmo, mas também no medo ao conflito e desejo de o evitar como for.

Por último lá temos em frente, e acima, a figura agressora ou perseguidora cheia de razão, inquestionável, faz tudo bem, e com autoridade suficiente para determinar quem é culpável e quem não, assim como para fazer propostas de resolução impossíveis que só beneficiam e tem em conta a sua perspetiva. Despreza a tristeza e medo da vítima e salvadora, e age com raiva e despotismo à crítica. Não é estranho que ela própria chegue a autodenominar-se como vítima enquanto continua a invisibilizar e agredir quem realmente tem menos poder do que ela. Um ser odiável, sem dúvida.

Que fácil seria ficar aqui, colocar a ficha com o nome de cada figura em frente da pessoa ou pessoas correspondentes e já terminar o jogo. Exatamente isso é o que fazemos com maior frequência, e por isso ficamos presas em conflitos que vão crescendo de intensidade, com pessoas a falar sem serem escutadas, e sem escutarem.

O caso é que as pessoas somos bastante camaleónicas, e não ficamos num ponto do triângulo sem nos mexermos. Temos muita flexibilidade, e conforme vai crescendo a incomunicação, as recriminações e as agressões, passamos de ser vítimas, a agressoras, atacando quem nos agride, mas também quem nos ajuda, pois achamos que de algum jeito estão a bloquear as nossas demandas, ou domesticá-las e isso não é o que nós queríamos. Da mesma maneira, as “madre teresas” do feminismo, sentem uma grande ofensa ao ver questionado o seu labor conciliador, e começam a agraviar as que até há 5 minutos estavam a proteger com chantagens emocionais do tipo: “com tudo o que eu fiz por ti”. Elas abandonam com genuína tristeza e desesperança esse lugar onde façam o que fizerem vai estar mal. E, claro, as odiosas agressoras recebem também investidas, especialmente quando baixam a guarda, ou quando as companheiras cansam de aguentar as suas grosserias. O nível de violência e agressões só pode aumentar.

Se já se estão a identificar com umas mais do que com outras, ou ainda melhor, com nenhuma, esqueçam, porque elas estão todas em vocês e vocês já alguma vez passaram por todas elas. Como numa roda gigante, vamos mudando de lugar de ação, em parte, totalmente ou numa mistura das três – vítima, salvadora e perseguidora – e convertendo-nos, sem pensá-lo, até em aquilo que mais desprezamos.

Então, o que é que fazemos com isto? Como saímos do triângulo das Bermudas? Podemos com certeza optar por destruí-lo, como boas terroristas ou libertadoras feministas que somos. A questão é que fazer depois disso, se ficar a olhar para a nossa obra de destruição eternamente ou tentar talvez construir uma outra forma de nos relacionar e de gerir as nossas diferenças. Porque diferentes vamos continuar a ser, e relacionarmo-nos também vamos continuar a fazê-lo, com ou sem triângulo.

Se aceitarmos que as relações de poder existem, que todas somos partícipes delas de forma voluntária ou involuntária,  pelo simples facto de  nascermos em um lugar determinado, com umas possibilidades e limitações específicas, tanto pessoais, como contextuais… e mais importante, que estas não são estáticas, e que se vão mover colocando-nos em posicionamentos de maior ou menor privilégio em diferentes momentos e contextos, então vamos ter de aprender a entendê-las, olhar além da superfície, e da primeira reação de recusa, medo ou cansaço, e optar por tentar transformá-las.

Uma proposta que tenciona fugir deste abafante triângulo é colocada por David Emerald com O poder do empoderamento dinâmico (2009), onde vai além das sugestões de Karpman de transcender os papéis de perseguidora, vítima e salvadora, centrando-se em atingir resultados para resolver o conflito através do trabalho interno pessoal e grupal, tendo em conta onde está a ser colocado o foco no problema, de onde se está a gerar resposta interna, e de que maneira se está a agir na coletividade.

Bem como da perspetiva da facilitação de grupos, em que não se vai ser contra o conflito nem necessariamente contra os papéis de vítima, perseguidora e salvadora, mas vai olhar para eles de um outro lugar. Estes não conflituam porque queiram destruir o grupo ou a ideia, mas conflituam porque precisamente se importam com isso. O foco está aqui no processo mais do que na origem ou resultado, e na transformação de papéis bloqueadores em posicionamentos facilitadores do processo. A opressora sabichona passaria a ser aqui uma líder consciente guiando o grupo a conseguir os seus objetivos, com conhecimento da sua posição de poder e pronta a aceitar uma oposição construtiva. A salvadora tornar-se-ia numa sábia com disposição a escutar e colocar no grupo a diversidade de vozes que existem, sem por isso desempoderar as implicadas. E a vítima assumiria com segurança o seu papel de ativista critica construtiva, com disposição não só para dar a sua opinião, mas também para participar na tomada de decisão final e na equipa de execução das propostas. E todas elas com o poder e habilidade de mudar de papel assim que for necessário.

Felizmente, esta mudança está em progresso, especialmente nos espaços feministas, e embora esteja ainda a conviver com práxis mais totalitaristas, vai encontrando o seu lugar enquanto aprendemos as umas com as outras.

Todavia, um elemento fundamental para facilitar esta transformação do diálogo é a disponibilização de espaços seguros onde abordar as diferenças, geridos por pessoas do grupo ou profissionais externas, e que estes estejam prontos o antes possível. Sempre há uma vontade inicial de resolver, de confirmar que o que pensamos e sentimos e que nos magoa, tem uma resposta que nos vai acalmar. Perder esse momento pode causar o abandono da pessoa do grupo, em silêncio e sem quase ser percebido pelas companheiras, ou derivar num conflito muito maior, fora de controlo e com pouca esperança de que a razão e a lógica sejam bem-vindas. As possibilidades de entender-se e chegar a acordos de qualquer tipo se reduzem, bem como aumenta o desejo de vingança e condenação.

Precisamos portanto, e de acordo com o exposto neste artigo, de uma tomada de consciência do nosso status de poder, mas também de vulnerabilidade dentro do grupo; de considerar que os papéis de vítima, perseguidora e salvadora, têm uma função e intenção de mudança para um relacionamento mais integrador, e que são altamente permutáveis e assumidos por nós e pelas outras; que estes papéis, para serem realmente transformadores devem transcender o triângulo inicial de queixa-ataque-apaga fogos, através de um trabalho interno pessoal e grupal profundo e responsável; e finalmente criar, preferivelmente  antes de o conflito crescer, estratégias de gestão das diferenças e do conflito,  através de espaços de diálogo seguros onde todas as vozes sejam escutadas, tenham poder, e  possam expressar-se sem medo a ser agredidas e magoadas.

Podemos então construir feminismo sem nos maltratar? Podemos dialogar, debater, discordar sem autocensurar-nos? Podemos. Com dificuldades, medos e incertezas, mas é possível.

E em qualquer caso, não temos mais outra opção, especialmente no feminismo e nas coletividades feministas em que a diversidade existe, e em que a crítica e autocrítica é parte inerente da nossa ideologia e ação.

Caso contrário corremos o risco, como já estamos a experimentar, de sermos engolidas por uma única voz, talvez com duas cabeças, que determina que é ou não o movimento feminista, enquanto o feminismo coletivo, vital para o bem-estar e saúde crítica das mulheres, esmorece.

* Texto escrito originalmente para a Revirada Revista Feminista.