O espectáculo signfica que o desenvolvimento traspujo
o limiar da sua própria abundância.
Guy Debord
Os anos quarenta representam, para a história do cinema, umha década portentosa. Cidadão Kane, Casablanca, ou Morreram com suas botas som apenas alguns exemplos desta extraordinária fornada cinematográfica. Naquela mesma altura –no começo da II Guerra Mundial– e como se tivessem a encomenda de planificar um daqueles filmes, o Departamento de Estado dos EUA e o Conselho de Relações Exteriores (think tank que fundaram, entre outros, J.P. Morgan e J.D. Rockefeller), criárom grupos de estudos para roteirizar a paz de pós-guerra. Depois convocárom –por nom seguir a falar sós–os británicos, que enviárom a Keynes negociar com o director do Departamento do Tesouro, Harry Dexter White.
A princípios de 1944, antes do final da guerra, Keynes e White já tinham desenhado –entre outras cousas– o roteiro do futuro sistema monetário internacional. O argumento: estabilidade do sistema sem a rigidez do velho padrom ouro. Com essa ideia reunírom os representantes do resto da comunidade internacional –para que aceitassem a proposta– num hotel de New Hampshire. Esta é, brevemente, a história dos acordos de Breton Woods que configurárom baixo a égide dos EUA o que, de ser um filme, poderia levar por título Nova Ordem Internacional: Padrom dólar-ouro; Banco Mundial, FMI, Organizaçom Internacional do Consumo (antecedente da OMC), Plano Marshall…
Aquelas planificações fôrom todo um sucesso, mas apenas até o 15 de Agosto de 1971, quando o presidente norte-americano Nixon “fechou a janela do ouro” e rompeu os acordos de Bretton Woods. Curiosamente, também naquela mesma época, introduziu-se no cinema o processamento digital: as imagens geradas por computador. E, como diria Milton Friedman, o excepcional tornou-se regra geral: tanto a digitalizaçom dos efeitos visuais no cinema, quanto a desvinculaçom do dinheiro de qualquer mercadoria ou, por outras palavras, os efeitos monetários especiais. Em realidade, do que se desvinculava o dinheiro era do valor e da sua substância, o trabalho. O ouro, e também a prata, ou as vacas, eram o elo substantivo que durante milénios unira materialmente o equivalente geral (o dinheiro) com o valor de cada mercadoria. Umha evoluçom paralela à das imagens, as quais também se desvinculavam de qualquer sustento físico virtualizando-se.
Como se explica umha tal decisom estadunidense? Foi a guerra do Vietname? A desconfiança dos aliados europeus? O assédio ao dólar dos especuladores?… Qualquer ou todas estas cousas, e outras, pudérom estar na mente do presidente Nixon. Mas a explicaçom das decisões nom sempre é a mente dos decisores, tampouco neste caso. O que realmente determinou aquel adeus ao ouro foi sobretudo o crescimento da produtividade (muito mais intenso que o da demanda) graças ao desenvolvido aparelho fordista, complementado com os recentes avanços da microelectrónica (a propósito: o mesmo na indústria em geral que na cinematográfica). Fosse entom a decisom, ou em qualquer outro momento, o ouro estava sentenciado: a situaçom fazia preciso ter as maos livres para lhe dar com força à manivela de fazer notas.
Até aquela altura o capitalismo vivia, em parte, no mundo físico do valor substanciado no trabalho e, noutra parte, no mundo ficcional do fetichismo da mercadoria/dinheiro. Mas a erosom do valor, como efeito do crescimento da produtividade, ia reduzir inexoravelmente a parte física. Seguindo com a metáfora cinematográfica: cada vez menos efeitos especiais prácticos (fisicamente presentes na gravaçom) e mais Chroma Key (a tela verde que nos fai ver o que nom está presente).
Desde o passamento do Sr. Breton Woods, o crescimento da oferta monetária pouco demorou; num par de anos, o 40% nos EUA, e o 70% no Reino Unido. Estas injeções de liquidez tivérom consequências imediatas e algunhas mesmo duradeiras. A primeira, a desvalorizaçom do dólar. Outra, também imediata, foi a inflaçom como era de esperar: nos EUA os alimentos em geral subírom um 20%, as patacas ou o pam o 25% e o arroz o 60% (isto último deve soar). Outra consequência, e esta bem duradeira, foi o crescimento do capital financeiro disponível nos mercados internacionais. Quando Nixon “fechou a janela do ouro” o capital disponível era de 160.000 M$ e os empréstimos 35.000 M$ por ano. Nos primeiros oitenta o capital financeiro multiplicara-se por dez e prestavam-se, cada ano, 300.000 M$. E, com a derradeira década do século, a expansom do sistema financeiro alcançou os cinco bilhões; superando, os empréstimos concedidos, o bilhom de dólares.
Com este cenário monetário e financeiro que se foi configurando no final do século, nom se fariam esperar muito as tensões sistémicas. Antes de finalizar a primeira década do século XXI conhecíamos a recessom internacional mais importante desde 1929. Fechava-se aqui o ciclo que começara em 1971; a nova fase hiperprodutiva do sistema dependeria, desde agora, totalmente da tela verde do dinheiro criado do nada. Estímulos monetários sem os quais nom é hoje possível metabolizar toda a ingente, e desvalorizada, produçom de mercadorias.
Sem padrom ouro, teoricamente, a funçom dos bancos centrais deveria ser preservar um certo paralelismo entre as taxas de juro e as de inflaçom. Porém, com as maos livres trás o adeus ao ouro, a operaçom manivela repetiria-se tantas vezes, e tam intensamente, como se estimou pertinente. A última começou em 2014 com medidas como o Plano Draghi, e outras semelhantes por parte dos grandes bancos centrais. Concretamente o BCE respondeu, aos problemas do euro e a recessom, injectando na economia 3,4 B€, para sair da Grande Recessom, e 1,7 B€ para recuperarmo-nos da pandemia. Em total, isto supõe –saído do nada– o equivalente, em só oito anos, a mais de quatro vezes o PIB do estado espanhol.
E após um período de certa calma chegou a inflaçom, e os problemas dos Bancos Centrais para cumprir com o seu teórico role. A fraqueza do sistema bancário ficou patente trás as primeiras subidas de tipos, as falências bancárias fôrom imediatas a ambos lados do Atlântico (Silicon Valley Bank, Credit Suisse…): Desde março, estamos a assistir nos meios a umha recorrente comparaçom entre a situaçom bancária criada por essa fraqueza e o que se viveu em 2008. Lembremos: primeiro foi a queda de Lehman Brothers e de seguido a Grande Recessom. Será entom, esta turbulência, presságio dumha nova Grande Recessom? Postos a comparar, eu acho melhor nom concentrar-se em factos pontuais e focarmos em processos mais sustidos e prolongados. Por exemplo, paga a pena confrontar o período do que falamos antes, que vai desde 1971 até 2007, com o que estamos a viver desde aquela altura.
Agora, nom se confundam, todas as supostas crises que se sucedem no capitalismo desde os 70 ou antes –e das que tanto se leva falado– nom som tais em realidade. A crise do petróleo, a década perdida, a crise das dotcom, a das subprime, a Grande Recesom, esta de agora dos bancos…. todas elas som, por seguir com a brincadeira, falhas de raccord, problemas de continuidade que ponhem de manifesto o carácter ficcional do mundo da mercadoria. Mas acreditem: estamos sempre a ver a mesmo filme com diferentes títulos –remake trás remake–, umha história sobre tecnologia e automatizaçom das sociedades onde impera o capitalismo, na qual a riqueza torna-se –diante dos olhos da audiência– umha enorme e falsa acumulaçom de efeitos digitais.