Desde a Ilustraçom, um pailanismo esquematista afastou a esquerda eurocéntrica de qualquer análise sobre a importância dos movimentos religiosos quanto revolucionários e modelos transformadores ao longo da história. Ainda hoje, quanto mais moderna, eurocéntrica, dogmática, sectária e, inevitavelmente, anódina for a óptica; maior é o grau de rejeitamento quanto a todo o que cheire a espiritualidade. Porém, como já sinalamos nos artigos anteriores desta série, paradoxalmente, a mais ortodóxia e conservadorismo ideológico de esquerda, mais proximidade ao esquema messiánico judeu-cristá. Pois, ao cabo, a visom da história e mesmo a ética e os objetivos materiais em que fôrom concebidas as posturas anti-capitalistas europeias nascérom diretamente dumha mentalidade e umha olhada judeu-cristás. Nom poderia ser doutro jeito.

Pola contra, as esquerdas periféricas sempre gozárom dumha facilidade maior para vulnerar as travas mentais que impunha o dogma occidental, graças também à prática na sua própria materialidade diferenciada. Por isso cumpre recorrermos ao maior pensador latino-americano do nosso tempo, Enrique Dussel, para encontrar chaves de análise marxistas e decoloniais sobre a importância do que queremos tratar. A interpretaçom que o velho reitor da UNAM realiza do messianismo em Walter Benjamin aparece, assim, como umha alfaia escintilante entre as tevras dos cientifismos históricos mais burdos, supremacistas e positivistas.

Pensemos no efeito do relato do Éxodo nos escravos negros norte-americanos, cristianizados à força. Um dos temas mais recorrentes nas cançons de Gospel é esse, let my people go! Dussel e Walter Benjamin identificam-no perfeitamente. Um sistema dado de exploraçom diviniza-se para naturalizar a sua existência. Apresenta-se como lógico e infalível. O sentido comum responde ao pensamento hegemónico do grupo dominante do que nos falava Gramsci, o faraó era deus. Mas, daquela, chegou o ungido polo povo oprimido, o mashiach em hebreu, e dessacralizou o sistema. Virou-se num ateu, num negador da divindade que justificava o funcionamento da opressom. Os mártires cristaos perseguidos no século I som-no sobre todo por ateus, por negar a divindade da ordem social do império. Refutam que o emperador e as suas engrenagens e dispositivos de poder provenham dos deuses e sejam intocáveis. Entre eles, o apóstolo Paulo emite na carta aos romanos umha comclussom revolucionária: a lei e a justiça som mui diferentes. Decote opor-se às leis injustas resulta precisamente o correto. Na sociedade da antiguidade mediterrânea, isto representa verdadeira pólvora ideológica transmitida na linguagem da época, religiosa ou filosófica. Frente à legalidade, a legitimidade popular daqueles que tenhem fé na vitória do modelo alternativo. As consequências desta reflexom, também hoje, nom podem mais que derivar-se em explosivas. Quando as múltiplas vítimas do sistema artelham unitariamente demandas de direitos que este nega, qualquer açom ao seu favor é legítma, ainda que se puder achar ilegal.

O arquétipo do liberador do Éxodo caiu assim sobre o nazoreo na memória coletiva e já Mateu o apresenta como o novo Moisés. Até tal ponto que os relatos do natal, engadidos aos evangelhos de Lucas e Mateu meio século após a sua composiçom e um século despois da cruzifixom, calcam os do Éxodo atribuídos a Moisés. A inexistente matança dos inocentes ou a fugida a Egito som as provas mais evidentes. No Éxodo, Deus justifica a sabotagem e mesmo as mortes, como danos colaterais contra os amos estrangeiros, para liberar o povo submetido. Claro prelúdio radical da sentença de Paulo na sua epístola aos romanos. O messias irrompeu e inaugurou o tempo messiánico em que devia construir-se o novo mundo. Contodo, o cristianismo acabou por institucionalizar-se e mesmo se converteu na religiom oficial do império copiando a sua estrutura de poder co Papa como emperador e os cardeais como senado. Que aconteceu? Dussel propom-no com claridade, nom avonda coa impugnaçom do sistema e o estado de rebeliom, cumpre também a construçom dumha nova institucionalidade sob os princípios que se defendem. A destruçom do templo de Jerusalém no ano 70 acelerou a interpretaçom escatológica do cristianismo. Delocou-se a ideia da elevaçom vagorosa do novo reino que continha a parábola jesuánica do grau de mostarda e aguardou-se o golpe súbito da intervençom divina que bruscamente mudasse todo. Mas a parussia, o salto revolucionário que operasse a ruptura que os próprios cristaos nom conseguiam realizar, nom dava chegado. Assim, num processo já iniciado no cámbio de século I para o II, a igreja foi abandonando devagar os contidos mais rupturistas para reproduzir o pensamento dominante ao tempo que idealizava até a anulaçom do seu discurso o próprio messias. A divinizaçom acelerada de Jesus, em menos de cem anos, tem muitas semelhanças coa idealizaçom do Ché Guevara e qualquer líder revolucionário da modernidade. Quiçais, Zapata represente o caso mais evidente, já que igual que Jesus, vive nas montanhas mália o seu assassinato.

Por outra banda, quando se analisa a extraordinária expansom do cristianismo nos três primeiros séculos da nossa era, adoita-se esquecer a sua parte mais material. As comunidades ofereciam, através da coletivizaçom dos bens, umha segurança social que nom existia no império romano. Comida, educaçom e medicina para orfos, viúvas, nais solteiras ou pobres de pedir. Essa rede tecida com base na irmandade e a ética do mundo novo constitui umha das chaves do seu sucesso. Nom só predicavam, também davam peixe.

Contodo, mália assimilaçom co poder romano consolidada co emperador Constantino, o próprio relato cristao mantivo de seu o potencial revolucionário. O nosso Prisciliano demonstrou-no no século IV. Ao pouco os donatistas. Pola mesma, hoje resulta evidente para os peritos que o Islám como movimento revolucionário e igualitarista do século VII bebeu a grolos do cristianismo maniqueo da zona onde se originou. Também que se apoiou no cristianismo ariano para a sua expansom disruptiva na história. Emparentado co maniqueísmo, abrolhou o catarismo na Occitánia do século XI. Assemade, o movimento valdense, também crítico coa riqueza e a hierquia da igreja romana. Face a eles, o poder vaticano tivo que adoptar e empregar os franciscanos, igualmente partidários da pobreza e da açom social, mas obedientes, a social-democracia do século XIII.

A expressom ideológica em linguagem teológica atingiu coa reforma protestante o seu exemplo mais evidente. Seria impensável o liberalismo como justificador teórico do capitalismo e os Estados-naçom contemporâneos sem que previamente o calvinismo nom se espalhasse precisamente polo Norte de Europa. Mal-interpretando as cartas de Paulo, autênticas e falsas, o protestantismo anulava a importância da conduta dos crentes a favor da fé. A usura já nom era um problema moral. Se Deus te escolhera para que te salvasses, podias fazer o que che petasse, porque se crias muito nele, já estava. Aliás, a divindade operava no mundo material favorecendo os seus escolhidos além do comportamento que manifestassem: In God we trust. Do mesmo jeito, um literalismo bíblico anacrónico, sem o contexto em que se escrevérom os textos, guiou para interpretaçons fechadas e ainda mais dogmáticas que as católicas. O feminicídio e epistemicídio maciço contras as bruxas produziu-se sobretodo em países protestantes nos Séculos XVI e XVII. Do mesmo jeito, a conquista colonial da Europa protestante sobre o mundo muçulmano nos séculos XVIII e XIX contagiou-lhe esta visom literalista e rigorista do texto sagrado. Assim nasceu o Wahabismo que hoje carateriza o regime de Arábia Saudita ou os Talibáns por ela educados no Afganistám.

Atrevendo-nos a umha analogia bruta, a secularizaçom do protestantismo deu no liberalismo como a secularizaçom do messianismo cristao mais revolucionário deu na esquerda anti-capitalista europeia. Esse potencial do discurso anti-sistémico do rabi de Galileia também explica que o Faraldo socialista utópico ou o Joám Jesus Gonçales marxista professassem umha funda fé. O mesmo que James Connolly e toda a miríada de militantes do IRA ou cregos guerrilheiros da teologia da liberaçom. Para além, abofé, de Basílio Álvarez, Santos Quintela, o Padre Seixas ou Moncho Valcarce.

Porém, quiçais a ensinança mais interessante que Dussel tira da sua análise dos movimentos messiánicos é a da transformaçom como síntese da oposiçom ruptura-reforma. Um debate que já existia no cristianismo do século I, entre aqueles que predicavam que o reino já chegara e que o construiam eles diariamente frente aos que aguardavam um golpe divino que todo o mudasse na apocalipse final. A irrupçom messiánica, o corte revolucionário ou a apariçom da proposta anti-sistema que vertebra as agredidas, tem de ser continuada no tempo e conceber-se como caminho para o horizonte de transformaçom. A esperança escatológica na mudança súbita que todo arranje foi a culpável da institucionalizaçom nos moldes do inimigo de quanto movimento revolucionário se deu na história. A construçom dumha nova institucionalidade realmente efetiva para o povo, entendido como bloco social das oprimidas, parte da conquista do sentido comum e do poder político, mas também da fé numha ética que sustente nos postulados de transformaçom toda prática. Caso contrário, há reproduzir e legitimar em odres novos o vinho velho ou ficará na marginalidade, apampada co mundo das ideias perfeito dum escol puro e indefenso, como lhes aconteceu a gnósticos, donatistas, cátaros… O mesmo engado platónico da perfeiçom ideal que também contaminou decote a esquerda anti-capitalista moderna fazendo-a fugir da materialidade das suas sociedades em nome da alvura ideologista. O reino, a nova civilizaçom que tem que superar este sistema, o mais criminal na história humana, já está entre nós e medra vagoroso como a mostarda. Já ora que há experimentar saltos no seu crescimento, mas nunca ham ser os definitivos até que cubra o céu e todas nos podamos abeirar à sua sombra. Ou isso, ou abofé que vai chegar o fim do mundo de verdade e nom o da apocalipse cristá.

Bibliografia

Dussel, Enrique. Las metáforas teológicas de Marx. Ed. Verbo Divino. Lizarra (Nafarroa), 1993.

Dussel, Enrique. Teología de la liberación. Un panorama de su desarrollo. Potrerillos Editores. México, 1995.

Dussel Enrique. Política de la liberación (Vol. I) . Historia mundial y crítica. Trotta, Madrid, 2007 .

Dussel Enrique.Política de la liberación (Vol. III) Crítica creadora. Trotta, Madrid, 2022.

Torres Queiruga, Andrés. Repensar a resurrección. A diferencia cristiá na continuidade das relixións e da cultura. SEPT. Vigo, 2002.

Piñero, Antonio (et alii). Los libros del Nuevo Testamento. Ed. Trota. Madrid, 2021.

Piñero, Antonio.Guía para entender a Pablo de Tarso: Una interpretación del pensamiento paulino, Trotta. Madrid, 2018.

Piñero, Antonio. Los cristianismos derrotados. EDAF. Madrid, 2007.