Em 2007, a Escola Popular Galega, organismo formativo dos movimentos, convocava durante várias semanas distintas pessoas envolvidas nas causas colectivas do País, dando voz a geraçons, ideários, trajetórias e biografias muito diversas, mas com o fio comum da defesa da naçom e a justiça social. Os colóquios reproduzírom-se depois na obra «Palavras sem maiúsculas. Experiências militantes na Galiza. (1970-2005)». Um dos entrevistados foi Manuel Bello Salvado, galeguista de Mesia que nos deixava no passado Natal. De Galizalivre reproduzimos aquela profunda conversa, como homenagem a um activista incansável, sempre amigo do nosso portal e de todas as causas nobres, e também como ferramenta de conhecimento e formaçom para todos e todas aquelas que seguem na tarefa.

“Quando começávamos a militar no nacionalismo no rural, padecíamos pressons psicológicas, políticas e laborais”

Manuel Bello Salvado (Janceda, Mesia, 1972, desempregado). Militante nacionalista desde mui novo, participa da política municipal da sua comarca e de vários movimentos sociais ligados à defesa do idioma, ao desporto nacional e ao cristianismo galego. Continua ativo na sua comarca natal.

Começamos formalmente, polos teus inícios, na vida e na tomada de consciência.

A minha localidade é Mesia. A tomada de consciência explica unha rutura, porque a vida muda totalmente e rompes, sobretodo, com as velhas companheiras. Agora, de adulto, recuperas um pouco, porque eles entendem que a política é umha cousa importante para a sociedade e perguntam por umha subvençom dos tratores, pola concentraçom parcelaria… entendem mais e perguntam-che. Mas com efeito, ao dares o passo és um ser estranho. Na minha comarca, por exemplo, o nacionalismo nom tinha nengumha tradiçom de antes. Nem Ordes, nem Frades, nem Mesia, nem Cesuras, nem Carral. Ali a politica era AP e um casal, os da Casa Grande de Janceda, Maria Victoreia Fernandez Espanha, que em paz esteja (e digo isto porque eu era o sacristám quando se enterrou) e Augusto Assia. Tinham 54 % das açons de La Voz de Galicia, ela estava relacionada com a política em Madrid…

E eram naturais de Mesia?

Nom, nom eram naturais de Mesia. Ele era natural da Mesquita, Ourense, e Maria Victoria era umha menina bem da Corunha, da família Fernades Torre, com paços em Cambre e fincas tremendas em Oleiros, com plantaçons de vinhedos por Espanha adiante. Mas Augusto Assia gostava das vacas. Era este hominho que tinha trato com Filgueira Valverde, com este médico de Santiago, Sixto Seco, com esta gentinha assim. Tenho boas experiências com ele, porque nas missas eu começava a tocar os sinos antes da missa e ele sempre aparecia para conversas comigo. Ele sempre era mui crítico. Quando descobriu as minhas inquietaçons polo nacionalismo dizia-me que o nacionalismo era bom, que havia que defender Galiza mas que havia que ter cuidado com os do Bloco, que eram má gente, estudantes universitários com ideias mui radicais. Dizia que o símbolo da Galiza era a vaca. Comprou com a mulher umha finca nos anos sessenta e montou umha exploraçom mui avançada na Europa, com quinhentas vacas. Exploraçom que ainda está aí, e que gere o filho, um homem ligado ao PP, mas mui aberto, que fala galego. E tem umha filha que montou ali os iogurtes ecológicos. Tenhem umha vida bastante respeitável, com certa humildade.

Era umha zona sem implantaçom. A juventude que nos criamos ali levamos a linha de ser rapazes de aldeia, que por circunstáncias naturais falávamos galego, mas éramos espanhóis, éramos da seleçom espanhola, a equipa de futebol era o Real Madrid, menos dous ou três que éramos da Real Sociedad porque ganhava as ligas… lembro que algum, com trinta ou quarenta anos, chamava-nos “etarras” por sermos da Real Sociedad, e nós tínhamos doze ou treze. Estou a falar do ano 83, 84, nem existia o BNG, por falar do nacionalismo mais recente. Nem em Ordes, nem em Frades, nem nada. Nem em Cúrtis, nem em Sobrado, nem em Toques, nem em Melide, que havia gente nacionalista, mas que ia com outra candidatura. E porque havia Bloco em Arçua ou Mesia e Cesuras? Em Arçua polos irmaos Couso, uns emigrantes retornados com consciência de país. E em Mesia e em Cesuras, que som concelhos mui pequenos? Havia BNG, já houvera BN-PG antes, nas eleiçons de 1979. A explocaçom era que havia dous cregos. Em Cesuras Domingo Martins Beiro, mais conhecido por Gino, o seu nome na clandestinidade, natural de Carnota, que foi o que montou as listas. E em Mesia porque estava Gumersindo Campanha Ferro, umha pessoa mui formada, sobrinho de Ferro Couselo. Já no seminário tinha fama de nacionalista e de esquerdas. Inicia entom duas listas do BN-PG; era meritório, o nacionalismo apresentava-se e tirava um vereador ou dous. O PSOE nom existia e AP tinha nove conselheiros. De resto, nom havia nada.

Os rapazes, umha minoria, fomos a Ordes fazer o bacharelato, porque em Cúrtis estava a Formaçom Profissional. Os meus inícios, com dezessete anos fôrom em Ordes. Nós éramos galegofalantaes com comportamento espanhol, com consciência espanhola, vivíamo-lo com naturalidade. Falar galego, mas fazer exames ou cobrir papéis em espanhol. Quem fomos à escola secundária levávamos um certo respeito pola língua galega, polos escritores galegos. Sabíamos quem era Cabanilhas, aqueles versos de “nom ajoelhar-se diante dos poderosos nem erguer-se diante dos coitados”. Tivemos um professorado bom, eu tivem a Mero, o componente de Fuxan os Ventos e da Quenlha. Mas claro, nós nom recebíamos agressons à nossa cultura , entom até que vês que alguém agride o que tu és nom reages. Realmente tés que posicionar-te entom. Em Ordes, o instituto foi umha fase interessante, porque ir exercendo a consciência galega nom se via agressivo, havia campo. Entom, como algum dos velhos de COU faziam o exame de religiom em galego, tu fazia-lo. Claro, fazias o de religiom, nom o de matemáticas nem o de história, mas começavas por aí. E despois em Ordes houvo umha experiência, um bom germe, a criaçom da Associaçom Reintegracionista de Ordes, com mais de trinta sócios, um jornal mensal… e ainda que era mui radical para algum de nós dizer que escrevemos com “ene aga” e todo isso, víamo-lo bem. Porque os referentes da gente que trabalhava na ARO davam-nos muita credibilidade. Algúns estám hoje no BNG, como Charo, outros nom, como Daniel, como Manolo Paços, um ativista cultura importante da comarca… Houvo umha tomada de consciência propiciada por um professor, de quem nom lembro bem o nome, Diegues creio que era… sempre falávamos dele porque dava as aulas em português. Eram momentos em que começávamos a ver trípticos reintegracionistas, de Artábria, de Meendinho… havia muito coletivo.

A agressom que no meu caso me leva a umha tomada de contacto foi no ano 90 ou 91. Eu tenho problemas com o francês, porque levava má base da escola . Em COU reprovei o francês e nom puidem ir ao seletivo em Junho. Entom fum à Corunha viver com a minha irmá e fum a umha academia no ano seguinte. “La Academia”, chamava-se, na rua Santo André. Numha aula de arte onde punham diapositivos para fazer análise, éramos quatro alunos com umha professora entrada em anos, que na segunda aula me chamou a atençom: “mira, sois cuatro en clase y tus amigos hablan todos castellano, pero tú hablas siempre galego. Te criaste em el campo?” E a mim nesse momento saiu-me: “nom, eu nascim na rua Barcelona, mas falo sempre galego”. Umha mentira como um mundo, mas umha forma de dizer, “que passa, logo a Corunha nom é umha cidade galega, nom podo falar galego?”. E nesse momento passou-me umha cousa moi bonita: dous rapazes levantárom-se e saírom para fora. E eu fiquei lá, falando com ela amavelmente. Depois, ao sair para fora, diz-me um rapaz, o Lolo: “oye, tío, no sé como le aguantas el rollo a esta tía, porque lo que te dijo a mi me ofendió también”. E claro, despois fum para casa pensando: “eu falo galego e o da professora nom me ofende, e a esses que falam castelhano parece-lhes ofensivo”. E eu associando o de ARO, o do liceu… E dali a um mês ou dous vejo que se convoca umha manifestaçom na Praça de Maria Pita para reclamar a oficialidade do topónimo galego da cidade, e esse manifesto assinava-o Fernám Velho, que eu nem sabia quem era. E fum à concentraçom e vim encantado. És totalmente alheio a esse mundo mais intelectual, mas de consciência. E conheces gente mui tratável, que fala mui bem do país, que fala bem o galego. E falei com Fernám Velho, que me parecia mui importante, porque escreve na imprensa, porque tem livros, e pedim-lhe o telefone para que vinhesse a media a dar umha palestra. E assim foi, porque nesse ano, no Dia da Letras, eu já falara com o crego, com Gumersindo e com Mero de que podia vir Fernám Velho. Entom o BNG organizou umha palestra no salom paroquial e veu ele falar-nos de Cunqueiro. Nessa palestra decidim agir politicamente. Recebêrom-me mui bem. Assim foi a entrada formal, eu brindando-me para as eleiçons municipais. No 91, fôrom as primeiras eleiçons em que participei, que se tirara um concelheiro. Naqueles tempos, com todas as forças do mundo, pensas: “aqui está todo por fazer”. E estás dando passos que realmente nom sabes o que significam, nom conheces o mundo a que te abres nem o muito que che vai mudar a vida. Gente nova que te vai formar, que vai descobrir o que levas dentro… e os teus amigos e amigas de sempre ficam algo à margem, com a vida de sempre. Saindo, indo à discoteca, com o primeiro carro, o primeiro trabalho… “nós disso nom vivemos” como dim ali. Ora, isso é certo, sentes-te um pouquinho importante, vês que o que fás conta. E despois percebes que a realidade organizativa ainda deixa muito que desejar, porque nom havia BNG em muitas partes.

Entom chegaste através da língua?

Sim, é isso. A primeira organizaçom em que participei foi a Mesa. E depois onde mais trabalhei foi nas Comissons Labregas, que era a associaçom nacionalista que mais trabalhava ali, porque a cota empresarial ainda se eliminou no ano 93. Ainda lembro aquela homenagem a um velhinho de Láncara que lhe figera o SLG, um luitador contra a quota empresarial. E depois o problema do leite, dos preços, o tema das quotas, os danos que faziam as políticas da Uniom Europeia. Fazias colóquios e tinham-te aqui de mao, porque era um rapaz estudante, com tempo livre, e chamavam-te sempre: “vai a tal sítio, e a tal e a qual”. E lá ias, de bicicleta (risos), e era mui emocionante, porque um dia conhecias umha pessoa, outro dia conhecias outra, formavas-te… era todo mui virgem, levavas a frase aquela de Castelao de “há sítio para todos e todas. Nom lhe ponhais tachas à obra enquanto nom acabar”. E aliás vias que se ia avançando, comprovavas que aquela casa já nos apoiava, aquela outra também… porque sabedes que no rural o apoio move-sepor casas, e daquela era mais que hoje.

Que mudanças notaste na política do rural, em todos os sentidos?

Naquele momento vivia-se todo comais esperança, e mais credibilidade. Vivia-se todo como “o nosso partido”, “o nosso sindicato”, o que se defende é o nosso; fazia-se o que se cria justo, por convencimento. E se havia que arriscar, arriscava-se, como quando fôrom as tratoradas, e na autoestrada em Ordes, um perdera um olho por bolaços da guarda civil. Hoje isto mudou, há menos entusiasmo e predomina a ideia essa de “todos os políticos som iguais, todos os partidos som o mesmo”, inclusive aplicado ao BNG. Há muita menos gente para dar umha mao; podes ter mais votos, mas gente…

Tinhas apoio na família, ou um ambiente favorável?

Nom, isso nom. Na minha família nom há tradiçom nengumha de tipo galeguista nem de política relacionada com a esquerda. Eu som dumha família de seis irmãos, minha mae é do concelho do Pino e meu pai dali, de Mesia. E a referencia que eu podia ter era meu pai, que foi vereador da Falange nos anos sessenta; quando descobriu que eu andava com a gente do Bloco, com o crego, o professor… foi umha decepçom, entendida como o que é, porque é de reconhecer que eu com doze, treze anos, arrancara caretazes do BNG… ouvia cousas na casa, que os do Bloco andam por aí, que som uns comunistas, querem-nos levar as leiras, querem levar os porcos a matar a Ordes, nom querem deixar que mates os porcos, estám em contra dos eucaliptos, ponhem-lhe lume aos montes… e entom sim, eu lembro diante da minha casa, onde punham os cartazes das salas de festas, que se “El Vergel” de Ponte Carreira, “Dona Dana” de Touro, “La Flor” de Montouro, da sala de festas de Mesom do Bento… e eu arrancar cartazes do bloco. Curiosamente, cinco ou seis anos despois, estava eu achegando-me a essa base militante. Isso provocou umhas quantas conversas na casa, conversas sérias, mas nom mui longas, porque eu assim que tenho as cousas claras tampouco som partidário de lhe dar muitas mais voltas. O que produziu isto foi umha rutura de relaçom: meu pai é umha pessoa que se mantém muito nas suas ideias, para mim enganado, claro, porque umha pessoa que nom sabe falar espanhol e defende politicamente todo o que tem que ver com o centralismo e o espanholismo… que se som homens sérios, que se antes havia respeito, que se nos tempos de Franco nom se pagavam tantos impostos… E eu podo-me situa em algo que se produziu no rural daquela, que foi umha rutura geracional.

Foi na tua época que se deu essa rutura…

Foi. Eu hoje tenho 36 anos e há dezoito que nom tenho relaçom com o meu pai, vivendo na mesma casa. Isto produziu-se em mais casas; nom em Mesia, que rapazes como eu nom havia, com esta inquietude, mas em Ordes sim. Que os pais eram do Partido Popular de Ordes e os filhos começárom em militância galega, da língua, do ecologismo… houvo outros casos, algum mui difícil. Para mim, afortunadamente, mui difícil nom foi. A mim simplesmente se me dixo que nom podia aparecer numha lista do BNG nas municipais, porque senom tinha que ir-me da casa. E isso levei-no estritamente até o ano 99, oito anos mais tarde de começar a militar. Já trabalhava, já tinha 26 anos, já era outra cousa.

E este talante político deverá-se ao rural, à pegada do franquismo? Tu como o interpretas?

Eu interpreto-o a partir dumha reflexom que figem muitas vezes. Eu hoje nom acredito, acreditar do ponto de vista da Igreja católica, ainda que participo do movimento cristao galego, que nom está reconhecido pola hierarquia. E fum sacristám dos dez aos trinta anos, em Janceda, nos últimos anos participando disso mais a distância. Nessa etapa, dos dez aos vinte anos, ia tocar os sinos e botava o dia na igreja falando com as velhas, lendo, preparando um exame… ali figem muito essa reflexom. E a conclussom que tiro é que influem vários fatores, e cada umha explica esse fenómeno de tantos concelhos rurais do país. A primeira impressom que tivem foi que no adro da nossa igreja, de 150 panteons, 99 % eram gente que se enterrava em castelhano. Vivêrom falando galego, morrêrom falando galego, era o único que sabiam falar, e, no entanto, os rótulos: “el senhor fulano de tal, falleció…” E eu pensava: e mesmo quando a gente morre nem lembra o galego, o seu idioma… nom conservam nem isto. Eu pensava: se há umha parte da populaçom que fai isto já nom é cousa de alienaçom senom de ignorância. Eu penso que é umha questom muito de ignoráncia, tampouco há que culpabilizar. Essa gente que hoje tem setenta e cinco, oitenta anos, a sua consciência, a sua ideia do matrimónio, das relaçons com a mulher, com a cultura, com a política, o seu modelo de sociedade, desenvolveu-se, como nos aconteceu a todas, com vinte, vinte e tal anos. Esta gente viveu no franquismo até os cinquenta anos, que vai sair daí? A ignorância, unida a que se assimilou mui bem a falta de poder, que se assumiu que os que mandam som os que mandam e que nom resta outra que juntar-se a quem toca a ver se tiramos algo de proveito, porque se te enfrentas vás perder… Na nossa zona ainda tés o exemplos do que significava ter umha atitude política contrária ao poder, que foi a gente da guerrilha dos anos quarenta e cinquenta, e toda a gente que apoiou a Ponte ou Foucelhas.

Sobreviveu essa memória?

Sobreviveu e sobrevive. E se calhar na casa ainda ouvias falar mais disso que dos partidos políticos ou das eleiçons. Falava-se dos escapados, da banda dos escapados, dos que se metêrom nisso e por se meterem causárom desgraças; famílias que o passárom mal, fame, filhas de vermelhos que nom podiam ir à escola porque os mestres se recusavam a dar-lhes aulas… na zona Ponte e Foucelhas lembravam-se, e eram gente de que se falava mal. Agora menos, agora com o da recuperaçom da memória, vai-se vendo de outra maneira. As homenagens valêrom para isso, que a gente nova tem um respeito, e os velhos andam mais calados. Sabem que nom se pode falar tam alto, que as cousas mudárom.