Luke Bishop é um moço estadunidense que mereceu o seu espaço recentemente na imprensa de grande tiragem, e também em vários meios virtuais em defesa do galego. Vem de Iowa, nos Estados Unidos, e doutora-se em línguas romances na Universidade de Texas. A sua tese estuda o fenómeno neofalante em Ourense, e é por isso que mora entre a cidade das Burgas e Santiago de Compostela. Ele próprio neofalante e namorado do nosso idioma, é mais umha das dúzias de pessoas foráneas que, cada certo tempo, nos recordam a riqueza do que temos e nos dam umha poderosa injecçom anímica: existe o amor gratuito polas línguas e polas culturas (o amor, ao cabo), e este pode exercer-se a pesar das distáncias geográficas, da carência de gratificaçons materiais, ou da ausência dum caloroso ambiente que alente os nossos passos. Actua-se sem necessidade de especiais condicionamentos positivos, e isso é suficiente.
As pessoas que nos observam ou nos ajudam de fora tenhem um valor especial, porque vem e verám sempre o nosso panorama com umha outra perspectiva; quiçá nom tam funda e exaustiva como a nossa, mas si mais fresca, e menos limitada polas inércias e particulares afirmaçons de grupo nas que andamos, quigermos ou nom, quem andamos ofuscados nos movimentos e os conflitos. Perguntado por umha jornalista sobre o que mais lhe chama a atençom sobre a nossa realidade idiomática, afirma Bishop: “surpreende-me a quantidade de gente que defende o galego sem falá-lo”.
A dissociaçom entre conviçom e acçom é um dos traços marcantes da realidade que vivemos, no que ao idioma diz respeito, mas nom só. É um tema tam familiar, que tem que vir um estrangeiro chegado de milheiros de quilómetros de distáncia para no-lo recordar com essa claridade elemental. Nós preferimos obviá-lo. Possivelmente intervém a inércia, possivelmente intervém a preguiça e possivelmente – porque nom dizê-lo – intervém a incomodidade. É confortável exigir-lhe ao poder, mas é desagradável exigir-nos a nós mesmos, ou ao entorno imediato com o que convivemos e luitamos. Nom poucas vezes, confundimos exigir com praticar o moralismo, com despachar os passivos com duas ou três consignas ofensivas, sem nos deter no pensamento.
A nossa literatura e propaganda política centram-se na crítica ao poder; é justo e é lógico, ao cabo nascemos como resposta à injustiça. Acumulamos argumentos contra um Estado e um modelo económico que condenam a desaparecer ao nosso povo, e preparam para a humanidade, de nom mediar umha transformaçom de raiz, um horizonte sinistro de crise ambiental sem precedentes. Mas a crítica, privada de efeitos imediatos, corre o risco de virar rotineira, mecánica, quase como um exercício consolador que nom fai mais que proferir perguntas desesperadas: “como é possível que fagam…?” Si, é possível. É possível que o poder faga recuar a pobre legislaçom protectora do idioma; é possível inçar os nossos montes de parques eólicos contra toda recomendaçom social e ambiental sensata; é possível incumprir os teóricos acordos de emissons de gases de efeito estufa; é possível retorcer a lei para duplicar a dureza da vida das presas políticas no interior das prisons. Dizer que é possível é o mesmo que dizer que a correlaçom de forças permite tais atropelos. E por fortuna, mais dum século de luita no campo popular também nos leva a afirmar que a correlaçom de forças, felizmente, nom permite –hoje quanto menos– outros abusos que seriam mais terríveis: nom permite proscrever abertamente o galego, nom permite abolir toda legislaçom ambiental, nom permite meter-nos a todos os dissidentes na prisom sem juízo. Em definitiva, antes de nos laiar da crueldade do poder, e repetir mecanicamente as suas maldades, seria saudável, e reparador, conhecer o que este está em condiçons de fazer ou nom fazer.
Certamente que a nossa literatura nom se recria apenas na oligarquia e o seu Estado. Por vezes, a crítica desce aos entornos sociais amplos, e entom analisamos –mais ou menos cientificamente, mais ou menos acusatoriamente– as classes populares que nom se sindicam, as votantes que reproduzem discursos xenófobos, as multidons que saem à rua para celebrar sucessos desportivos e porém repregam-se ante os curtes de direitos, as administradas que consentem ou exercem pequenas corrupçons. A complexidade de fenómenos sociais assim deve, obviamente, ser abordada com as armas da crítica, e daria para várias teses doutorais. Mas além da multiplicidade de factores que se acham por trás da involuçom social, um factor salienta, inegável: nom existe, com a suficiente força técnica, nem logística, nem económica, nem pedagógica um campo popular organizado que contrabalance as ideias dominantes sobre o progresso, a identidade galega ou a sociedade de consumo.
Na nossa história, a razom instrumental soubo porém invertir as relaçons de forças desproporcionadas. As máquinas simples –a panca, a poleia, o plano inclinado, a roda… – som esses pequenos engenhos que contribuírom para o decolar tecnológico da humanidade, pois constituem pequenos dispositivos, singelíssimos, capazes de alterar forças enormes, ou de mudar a sua direcçom e sentido, para interesse de quem as utiliza. A máquina simples mais habitual na dinámica das luitas sociais é a organizaçom, que fai de pequenos indivíduos fracos, impotentes e dispersos pequenas unidades móbeis dotadas de eco, alcanço, efectividade e eficácia.
Para existirem máquinas simples, organizaçons, os indivíduos convertem a conviçom em acçom individual, e logo essa acçom individual ensambla-se em acçons colectivas organizadas. O neofalante Luke Bishop detectou agudamente o abismo entre conviçom e acçom, e sem dizê-lo, visualizou o dramático abismo galego entre o que podemos e o que queremos. Pensamos que existe umha importantíssima minoria relativa que ama a língua, sem defendê-la activamente, como existem importantes minorias relativas convencidas da lógica suicida do capitalismo e defensoras dumha outra sociedade, ou simpatizantes com o projeto dumha República galega (todas estas minorias, aliás, entrecruzam-se e confundem-se num terreno potencialmente muito fértil). Mas todas elas vegetam no silêncio.
Analisamos e denunciamos umha e outra vez o poder; analisamos e denunciamos com teimosia a passividade ‘alienada’; analisamos e intervimos mui escassamente contra a desorganizaçom desses círculos cercanos que vivem na dissociaçom. Claro que é incómodo. Nas sociedades de raiz católica –e particularmente na cultura espanhola, da que estamos enchoupados– nada mais contracorrente que examinar-se à luz da exigência da responsabilidade individual; e no mundo da esquerda radical, do que procedemos, nada mais estranho que ser atento e praticar a escuita sincera com quem nom adere ao cem por cem ao nosso ritmo e quem nom digere inteiro o nosso menu programático-político. De maneira que o indivíduo isolado e passivo culpa sempre da sua abulia as dificuldades do contexto, e o militante orgulhoso e hiperactivo acusa com ar evangelista os que ‘dim e nom fam’. Eis o diálogo de surdos, o círculo vicioso da terra de ningures.
De se conseguir esse desbloqueio, o primeiro passo será pequeno, quase imperceptível; nom vai derrubar o Regime, nem tam sequer vai fazer abanar uns inimigos gigantescos. Mas abrirá umha porta que vai revelar as muitas possibilidades que se abrem ante nós nestes tempos de emergência.