Como exercício de fortalecimento anímico, os movimentos rupturistas recorremos frequentemente à apologia. A nossa literatura está inçada de glosas de pessoas significadas que, beirando o heroísmo, ou adentrando-se nele, conseguírom cousas incríveis para as causas mais nobres. Entregas imensas, descobrimentos teóricos, capacidades inauditas para inverter situaçons adversas. Trata-se dum exercício necessário, e penso que nenhuma pessoa embarcada nos compromissos colectivos poderia sobreviver muito tempo sem esta inspiraçom.
Ora, nesta aprendizagem podemos -e cremos que devemos- ampliar o campo. Escolher biografias com as que nom nos identificamos tanto, esculcar projectos com os que discordamos, escuitar ideias que nos rebatem. Esse é também um exercício saudável. Pode vigorizar os nossos posicionamentos, que se fam mais fortes quando contrastados; e também aumentar a nossa toleráncia e empatia, pois é bom reconhecer as dotes dos alheios e nom crermo-nos, de maneira pretenciosa, os monopolizadores da razom e da virtude.
Esta perspectiva pode ser-nos muito proveitosa no ano que se achega, quando o homenageado no vindouro Dia das Letras é Fernández del Riego. Salvador Lorenzana na sua mocidade arredista, as glosas oficiais cuidarám-se muito de citar a sua prosa acendida nos anos do ‘Guieiro’; em companhia de outros ‘nacionalistas integrais’ (na terminologia da época) como Celso Emílio e Pepe Velo, introduzírom no galeguismo um discurso beligerante e decidido que hoje levaria qualquer a diante dos tribunais especiais de Espanha. Mas se esses textos vam ser ocultos ou ensombrecidos, quiçá isto nom incomodasse em absoluto ao veterano galeguista de Lourençá. Abandonado o vieiro da luita política após a infrutuosa reorganizaçom do Partido Galeguista, escolheu-se o monocultivo da alta cultura e a alta divulgaçom; associou-se a galeguidade com as letras, evitou-se chamar polo seu nome as elites que sempre procurárom o nosso extermínio, e quando a legalidade permitiu (teoricamente) a defesa de qualquer ideia, mesmo a da independência da Galiza, profundizou-se no discurso nevoento que dissocia a existência do país da exigência de soberania.
Independentismo e pinheirismo som, como é sabido, antitéticos desde há setenta anos, mas bom seria olhar com a devida atençom e o devido respeito um dos grandes valedores do segundo, pois pode dar-nos enormes liçons.
Com motivo das homenagens oficiais que já se argalham, um artigo na imprensa oficial reflectia oportunamente que o sucesso da primeira Galáxia apoiava em três piares: a criatividade e a capacidade de ideaçom de Ilha Couto; a rede social artelhada por Ramom Pinheiro; a eficácia organizativa de Del Riego. Sobre o potencial criativo da Galiza tem-se dito tanto, e tem-se comprovado em tantos casos a nossa capacidade para produzir talentos literários, musicais ou ensaísticos, que nom nos demoramos. O nosso país viviu a sua afirmaçom contemporánea com um superávit de criaçom, umha capacidade imaginativa tam potente que contrastava com a pobreza das suas realizaçons práticas; quanto aos entornos informais que fam possível a acçom social e política, nom daremos com nenhum exemplo de iniciativa bem sucedida na nossa história (partidária, sindical, associativa) que nom tenha por trás um entramado de relaçons humanas sólidas, saudáveis e sostidas no longo prazo. Nesse sentido, o labor de tecido e retecido desenvolvido por Pinheiro, e que com efeito explica parcialmente o sucesso de Galáxia, tivo o seu correlato em outras empresas colectivas da Galiza contemporánea. Mas que dizer dos talentos organizativos de Del Riego?
Num artigo recente de M. Villanueva, salientava-se a rara combinaçom de virtudes do galeguista: era um optimista, num país em que os hábitos de derrotismo e vitimismo extendem em toda parte um ambiente paralisante; era um erudito de valor contrastável; mas ao mesmo tempo, era um homem prático, dotado para múltiplas tarefas, e capaz de executá-las guiado pola ‘mania da orde e a pontualidade.’
Vincar em termos como ‘formalidade’, ‘cumprimento da palavra’, ‘responsabilidade’ semelha, por umha parte, pouco político, e por isso na nossa prosa tendemos a situá-los num segundo plano, ensombrecidos por conceitos mais ideológicos e aparente potência; por outra banda, semelha plano e quase óbvio, como dizer que as pessoas temos que ser boas, atentas ou educadas. E porém, se umha e outra vez os seres humanos temos que insistir no evidente, é porque por trás de tal evidência se ocultam assuntos difíceis e cruciais.
As virtudes pragmáticas que fixérom de Del Riego um exemplo sobranceiro do movimento galego nom adoitam estar nos manuais da militáncia nem servem para tracejar as divisórias ideológicas que tanto nos atraem; som, nesse sentido, parcas e grises. Mas a um tempo, som capitais, tam capitais como as óbvias e raras virtudes de falar o justo, de escuitar o contrário com paciência, de esculcar-nos a nós mesmos com a lupa da humildade. Falam-nos de aquelas atitudes a um tempo singelas, e a um tempo dificilíssimas, que fam possíveis os logros colectivos.
Derrochamos historicamente imaginaçom e criatividade literária e política, e temos construído entramados humanos perduráveis, capazes de se soster no tempo e transmitir culturas; temos sido bem mais ineficazes -como o país no seu conjunto- em construir umha cultura da eficácia, da resoluçom, dos funcionamentos colectivos engraxados e harmónicos, elementos todos eles que som chaves para fortalecer a autoestima nacional e alimentar a sensaçom de potência galega. Sem desterrar para sempre a ladainha de ‘nós nom podemos’, ninguém fará longos percursos. Para tal fim, cumpre repetir as obviedades com que hoje lembramos a Del Riego. Reconhecer que nenhuma inflaçom ideológica nos vai eximir de ser pontuais, rigorosos, ordenados; conduzidos por um perfeccionismo tam grande como o que exige a altura da tarefa na que decidimos embarcar-nos.