Os avanços recentes da neurobiologia revelam-nos a importáncia dos processos cerebrais que tenhem lugar durante o sono. O que acontece nessas horas de aparente inactividade é vital para ser quem somos. Sem tais ferramentas científicas, os antigos eram cientes do fenómeno, e explicárom-no através dos mitos.

Na cultura grega, o sono tinha a sua própria divindade Hipnos, e emparentado como ele aparece Morfeu, o deus dos sonhos. Um velava polo nosso sopor e repouso, enquanto o outro, tomando as formas que lhe prazia, representava todas as personagens reais e imaginárias que povoam as nossas noites.

O sono é, literalmente, reparaçom, um potente regenerador cerebral que nos permite encarar o dia; da escuridade passamos à luz, que é como dizer, das formas vagas e dos processos confusos que se nos aparecem na noite, nascemos à lucidez de pensamento que exige a jornada, inçada de desafios práticos. Mas como toda medicina pode tornar veneno em doses desmedidas, também a reparaçom pode virar em estrago. Por isso o sono funciona como umha poderosa metáfora política; temos um hino que chama o fogar de Breogám a ‘despertar do seu sono’. O sono é inconsciência, passividade, mesmo preguiça, que impede acometer as grandes empresas. Trata-se só dumha metáfora? Qualquer militante -especialmente jovem- que sentisse algumha vez o patriotismo a ferver no seu peito poderá recordar o jarro de água fria que sentiu ao cruzar-se no caminho com a passividade adorminhada dos cépticos, autêntica maioria silenciosa do galeguismo. Os adversários políticos, que nos rebatem e desafiam, tensam os nossos músculos e obrigam a aguçar o nosso engenho para dar respostas atinadas; os passivos e letárgicos, pola contra, desconcertam-nos. Parecem envolver-nos com a pesadez dos seus argumentos pobres, mais anímicos do que políticos: ‘nom creo que poida’; ‘nom sei se sairá’; ‘se calhar no futuro, hoje nom’. Estamos tentados a fazer umha crítica moral desta somnolência, como se se tratasse do pecado bíblico da nugalha. E porém, como é sabido, o excesso de sopor é um dos traços da depressom, e a recomendaçom das doutoras a quem padecem esta doença, ou os seus primeiros sintomas de alerta, é sair da cama, expor-se à luz do sol, adoptar umha vida activa. Nunca se estabeleceu umha associaçom entre certa passividade política galega e os traços depressivos: nula disposiçom ao gasto de energia, ausência de alegria e criatividade, hostilidade ante qualquer enunciaçom da esperança. ‘A tristura é aquilo que diminui a potência de obrar’, dixera Espinoza. À sua maneira, também Pondal sabia que a Galiza estava dormida porque estava excessivamente triste.

Mas Hipnos nom era Morfeu. Toda a crueldade do mundo, toda a adversidade que nos cerca, nom impede que às noites o nosso espírito experimente milhares de vivências fantasiosas como se fossem a realidade mesma; podem ser terríveis como os pesadelos, mas também consoladoras e, em certo sentido, esperançosas. Falam dum mundo que nom é, mas quiçá poderia ser. Por isso o sonho emparenta com a ilusom, e a utopia política sempre foi sonhadora. Ora, como o sono, o sonho é umha faca de dous gumes, e para compreendê-lo, nada melhor que a palavra galega ‘ilusom’: nela acha-se a alegria contida num futuro prometedor, que resulta tam básica para a vida saudável como a comida e o abrigo; mas a ilusom é também a miragem, a fantasia perigosa que nos seduz com os seus encantos para consumar a nossa ruína. A história da esquerda está cheia de ‘ilusionados’, pessoas que nom soubérom distinguir o sonho do espelhismo e naufragárom da pior maneira nas exigências da realidade. Por isso os realistas extremos, sobre-adaptados, em geral mediocres e covardes que interiorizárom desde mui novinhos o código da servidume, se alegram com alvoroço quando das nossas fileiras saem pessoas mentalmente mutiladas, delatores, arrependidos ou em geral traumados: ‘que che dizia eu?!’, exclamam, querendo provar que a sua escolha, ainda que ruim, rende bem mais frutos que a utopia.

Em muitas tradiçons religiosas, o sonho tinha valor premonitório, e nesse sentido, conlevava maior cárrega de realidade que de auto-sugestom; nada mais longe do pensamento cartesiano da esquerda, que sempre desconfiou do que nom se submete ao contraste e o dado; há, porém, excepçons. O artista, artesao, literato e rebelde William Blake, insubmisso aos poderes políticos e religiosos da Inglaterra do seu tempo, confessou levar adiante parte dos seus trabalhos criativos inspirado por visons, e um dos seus afamados poemas intitula-se, de feito, ‘A Dream’. Para os amedonhados da irracionalidade e os amantes dos feitos exactos, cumpriria salientar um paradoxo: alguns dos cientistas mais reputados da modernidade fixérom as suas descobertas baixo o relampo dos sonhos. Descartes, pai do racionalismo occidental, dixo ter descoberto fórmulas matemáticas enquanto sonhava. O químico alemao Friedich August Kekulé propujo a fórmula hexagonal do Benzeno após cair exausto no seu laboratório em 1865 e ter umha estranha visom mentres dormia; o também químico Dimitri Mendeleyev afirmou que a sua tabela periódica dos elementos foi concebida num sonho que tivo enquanto viajava de trem polas estepas russas. E o croata Nicola Tesla, considerado o pai intelectual do fenómeno da telefonia móbel, reconhecia conceber as suas inúmeras invençons num estado de transe inclassificável entre o sonho e a vigília, em que era capaz de visionar fisicamente os objectos que sairiam do seu caletre; “o dia que soubermos controlar os campos electromagnéticos, toda a humanidade funcionará como um grande cérebro colectivo”, afirmara o cientista em estado de visom, antecipando a revoluçom tecnológica e a rede de redes a inícios do século XX.

Outro verbo do nosso idioma permite quiçá captar melhor o estado intelectual ao que chegárom essas grandes cabeças. ‘Alviscar’, que pode referir-se a um tempo ao ver de maneira nebulosa e ao detectar algo, ao longe, de suma importáncia. Nom podemos dizer que a política seja umha experiência científica; mas si que o é -sem nenhuma dúvida- intelectual. Junto com a extrema concreçom da prática terrena, os braços, o suor e o sangue, as ferramentas e o dinheiro, precisou sempre os altos voos das fórmulas atrevidas e imprevistas. E nestes tempos em que absolutamente todas e todos -também os independentistas galegos- estamos situados na grande encruzilhada civilizatória da crise ambiental, devêssemos estar abertos sem nenhum medo a novas formas de pensamento. É nesse lugar entre o sonho e a razom onde nascem as ideias que salvam da barbárie.