Umha das grandes figuras mediáticas mundiais da nova direita intelectual chama-se Jordan Peterson: com umha retórica paixonal, certa habilidade argumentativa e disposiçom a se revoltar contra o politicamente correcto, tem-se batido em inúmeras palestras a denunciar os efeitos do feminismo e o multiculturalismo, e a tentar a equiparaçom entre as ditaduras de extrema direita e os regimes do socialismo real. Atrai umha audiência massiva de homens jovens de mediana idade desejosos de aderir a teses fortes e condutas aventureiras. Numha linha já manifestamente militar, e também nessa ágora que som as redes, captou a atençom mundial de adolescentes e moços (mais que moças) o almirante William McRaven; trata-se dum oficial dos Navy SEAL, o corpo de elite do exército norteamericano, reciclado agora em conferenciante de sucesso no género da motivaçom. A sua arenga de fim de curso na Universidade de Austin, na que equipara o trajecto vital dos recém graduados com a preparaçom para a guerra, acumula dúzias de milhons de visitas em youtube. Se sintetizarmos ambos os ideários numha frase, poderia ser esta: ‘o teu futuro nom está em fazer-te a vítima, senom em converter a tua própria vida na viagem do heroe.’

Quiçá por acaso, quiçá por conhecimento mútuo, ambos recorrem a um exemplo quase idêntico para encetar as suas acendidas intervençons: ‘para começar o dia com bom pé, um bom soldado sabe que o primeiro que deve fazer é deixar a sua cama perfeitamente feita’, diz Mc Raven na enunciaçom dos seus ‘seis conselhos básicos’. Peterson, por seu turno, caricaturizando o estudantado canadiano esquerdista que tem boicotado algumha das suas intervençons, afirma: ‘muitos estám preocupados com arranjar o sitema financeiro mas nom som quem nem de fazer a cama, nem de ter o seu quarto arrumado’.

Se caíssemos nos hábitos do debate polarizado que domina os nossos tempos, poderíamos desqualificar estas afirmaçons (e as pessoas que as formulam) dizendo que alimentam movimentos violentos e falazes, que nom som nem de longe tam amantes da liberdade como predicam, e que catalisam umha espécie de xenreira de milhons de homens polo espaço de poder que estamos a perder no nosso dia a dia. Todo isso é absolutamente certo. Mas como polaridade é simplismo, e nom dialéctica, ficar preso da pura deslegitimaçom ad hominem fai o nosso pensamento um bocado mais pobre. E se o pensamento se empobrece, a prática logo se gora. Para compreendermos o recuar da esquerda, nada melhor que levar em conta esses baleiros discursivos que a extrema direita aproveita com muita inteligência.

Em certo tempo e em certas latitudes a esquerda – especialmente a libertária, mas nom só- abandeirava um programa de melhora moral que começava polo próprio indivíduo, pola autoridade interior da consciência. A assunçom de ser oprimido nom equivalia à assunçom de ser vítima, e por isso a um primeiro momento, o da queixa e da denúncia, seguia-lhe indefectivelmente o momento decisivo: o da afirmaçom, o da implicaçom e construçom. O psiquiatra Viktor Frankl, supervivinte dos campos de extermínio, enunciara-o muito bem ao assinalar que a outra cara desse bem tam prezado, a liberdade, chama-se responsabilidade; com outras palavras e idêntica lucidez, a filósofa Simone Weil expugera que se um exerce os seus direitos é porque existe um outro que tem o dever de reconhecê-los.

A distinçom entre oprimida e vítima muda de raiz a nossa atitude vital, e diferencia a militante (auto-exigente, rigorosa, cumpridora, reflexiva) do opinador de redes sociais, consumido na roda inacabável das queixas e das acusaçons morais contra um mundo que agride; do mesmo modo, a diferença entre a culpabilidade e a responsabilidade esclarece muitas cousas no nosso mundo confuso. Nem que dizer tem que é nas altas hierarquias políticas, militares e económicas onde há que apontar para sabermos dos grandes culpáveis que nos conduzem para um mundo inabitável; mas isso nom obvia que as grandes e pequenas engrenagens funcionam pola nossa corresponsabilidade no curso das cousas: desleixo, inibiçom, vagáncia, covardia, e mesmo incompetência, fam-nos corresponsáveis das piores fasquias desta sociedade em que vivemos. Até um homem moderado e mesmo conservador como o jornalista Lamas Carvajal tinha a valentia de dizer há mais de século e médio, por boca do Tio Marcos da Portela: ‘os galegos somos responsáveis dos males que nos aqueixam.’

Si, Jordan Peterson é um sofista habilidoso que defende um modelo social enormemente violento, e desconfia aliás da que quiçá seja a revoluçom mais importante do mundo ocidental (a das mulheres); e obviamente, o militar McRaven está directamente envolvido em agressons brutais contra populaçons do mundo que nom se quigérom pregar aos interesses norteamericanos. Mas ambos, na sua inteligência e provável má intençom, acertárom no exemplo das camas arrumadas. Com este atrevido exemplo, captam a atençom dum perfil de personalidade que em nada se sente atraído pola vida pusilánime e a atitude adolescente do descontentamento contra todo e da queixa contra todos.

Que quer dizer, nesta controvérsia, fazer a cama? Que antes de pedirmos qualquer responsabilidade a outros, temo-no-la que pedir a nós mesmos; que antes de luitar contra inimigos impiedosos, corruptos, mesmo sanguinários, temos que luitar contra um inimigo doméstico e muito forte, a nossa própria tendência à autocomiseraçom e à relaxaçom moral; e que se queremos propor grandes soluçons, cumpre demonstrar antes do mais a nossa solvência naqueles assuntos aparentemente só domésticos, quer nas causas individuais quer colectivas. Os pequenos gestos, como as pequenas palavras ou a quase imperceptível linguagem corporal, som os que mostram como nenhum a verdadeira madeira dos homens e mulheres.

‘O demo está nos detalhes’, diz o refrám; a superaçom de qualquer problema enorme como o que carrega os nossos ombros começa pola atençom às minúcias; a melhor vista longa combina sempre com os passos curtos.