A literatura revolucionária e vários relatos simbólicos e religiosos partilham -entre outras muitas cousas- semelhantes imagens para ilustrar a adversidade e a aventura: a viagem, a odisseia, a ascensom à montanha, a longa marcha, a travessia no deserto. ‘Ides nadar na areia’, dizia-se há já bastantes anos a umha nova geraçom adolescente que se incorporava à luita independentista, e os velhos fatigados queriam advertir-la assim dumha rota árida, dilatada no tempo, e sem apoios; na sua versom dantesca, a aposta por umha grande empresa colectiva seria ‘umha descida aos infernos’, e eis tantos relatos de veteranos revolucionários (muitas vezes arrependidos) que narram sonhos utópicos que logo viram pesadelos.

Servem estas imagens para os rebeldes de hoje? Na tarefa da transformaçom colectiva -ou, visto do ángulo complementar, na tarefa de conservaçom de aquilo que ainda permite umha vida digna-, a adversidade está tam presente como sempre o estivo, e nesse sentido, podemos imaginar a nossa aposta com todas as imagens que nos remitem a terrenos costentos e árduos. Porém, neste capitalismo seródio de 2022, há outro elemento, ainda mais inquietante, que se apresenta com muita força na disposiçom de ánimo: junto à dureza, a incerteza; acarom da dificuldade, a confusom; e acompanhando contraditoriamente os plantejamentos firmes e cristalinos, permanentes sinais de desorientaçom e inúmeros cantos de sereia.

Há um símbolo milenário que regista melhor que qualquer outro tal estado do espírito: o labirinto. Na literatura foi enormemente recorrido, pois é sabido que a esta lhe corresponde formular os problemas, mas em nenhum caso oferecer soluçons; e a política, que é a arte do possível, leva-se mal com os enigmas. Mas o labirinto nom é em qualquer caso algo totalmente alheio à política, pois a política é parte da experiência humana; e esta seria incompreensível sem os seus pontos cegos e momentos de impotência.

A guerra que vem de estoupar na Europa intensifica esta sensaçom, nomeadamente em sectores politizados: com umha certa saudade, lamentam-se os tempos em que se enfrentavam dous blocos claros – capitalismo e socialismo real- , e a adesom ou rechaço da esquerda às novas súper-potências levanta umha poeira de polémicas, desqualificaçons e amargura. O Estado que nega a nossa naçom, antes omnipotente e com os sócios planetários mais poderosos e despóticos, agora tem poderosos inimigos. Como devemos comportar-nos com eles? Som aliados ou novas tiranias? Dá a impressom de que antes estava todo claro, e de facto todos os polemistas concorrentes fam alusons a um passado mais comprensível e choram por antigas trajectórias consequentes, agora perdidas.

Mas certamente -e velaqui topamos umha das utilidades da história- as cousas non fôrom tam claras como nos parece em perspectiva, tempo depois de acontecerem os feitos e de consumarem-se os dramas. Se as luitas sociais tivérom sempre um espaço de ambiguidade, esta nunca se evidenciou com mais força que nas guerras, que som o terreno por excelência da divisom, os ánimos alporiçados, e um estrês psicossocial que se extende, além da frente de combate, ao uso da linguagem e a todas as relaçons humanas. ‘Os bárbaros destruem-se os uns aos outros; horroriza o furor das proscriçons’, escrevia o ilustrado Jovellanos, o mais avançado do pensamento espanhol da altura, ao receber notícias da Revoluçom francesa na sua fase mais incontrolável; na sua correspondência, criticava os seus correligionários do norte, as ‘seitas de freethinkers’ que levam às naçons ‘mais bem do que estas querem receber’ e os que fam apologia da ‘guerra civil’ para o progresso social; mas poucos anos mais tarde, o mesmo homem, com as mesmas ideias e com o coraçom partido, apoiava a resistência armada contra a ocupaçom francesa a um tempo denunciava os borbons espanhóis aos que servira: a monarquia que o tivera como assessor ilustrado, desterrara-o e ameaçara com assassiná-lo; as tropas napoleónicas consideravam-no um traidor à Ilustraçom; e os resistentes espanhóis com os que luitava, côvado com côvado, riscavam-no de potencial quinta colunista, pois o seu ideário liberal nom casava com a apologia do absolutismo católico que guiava boa parte do povo armado contra o francês. Muitas vezes a integridade casa mal com as paixons de massas, e o pensador asturiano, mesmo sendo activo e combativo, malviveu baixo o assédio de quatro fogos diferentes.

Quiçá a guerra do francês e a revoluçom burguesa nos pareçam capítulos remotos aos que mui pouco devemos, e recorremos ao acobilho de processos mais cercanos e aparentemente mais transparentes. No relato dominante da esquerda real, por exemplo, fica claro que a I Grande Guerra foi um conflito entre impérios que sacrificou, por possessons e por prestígio, a vida de milhons e milhons de jovens europeus. Mas percebêrom-no de maneira tam clara os seus coetáneos? O mais combativo da política institucional da altura, o socialismo, aderiu entusiasta aos planos de guerra dos seus respectivos estados (com a honrosa excepçom dos partidos socialistas de Sérvia e Rússia), e a consigna bolchevique do ‘derrotismo revolucionário’, a favor da deserçom massiva e da guerra civil contra as próprias elites, entendeu-se como um desatino, o que levou a cissionismos generalizados e a rupturas de camaradagem e amizades; o próprio Karl Liebtnecht, opositor ao conflito, tivo que votar a favor dos créditos de guerra alemá por disciplina do seu grupo parlamentar, o que lhe mereceu a oposiçom aceda da sua amiga e camarada Rosa Luxemburgo.

A fascinaçom da guerra justa nom arrastou apenas as grandes burocracias partidárias e sindicais do socialismo, nas que podemos suspeitar tentaçons do poder polo poder. Um socialista cristao como Charles Peguy, aborrecedor da política profissional, nom só apoiou a guerra, senom que participou dela e morreu nas trincheiras. Os aliados seduzírom aliás parte do movimento libertário, e milhares de anarquistas sinceras ficárom comocionados pola adesom do seu grande referente ideológico, Piotr Kropotkin, à causa aliada na Guerra Mundial. Kropotkin nom era só um pensador de altura excepcional e um erudito especialista no estudo da ajuda mútua, senom um exemplo vivo de moral anarquista que, porém, entendia que o apoio a França e a Inglaterra era ‘o mal menor’ para derrotar o autoritarismo prussiano. Na sua biografia, Enma Goldman narrou como foi difícil ‘voltarmos contra o homem que durante tanto tempo fora a nossa inspiraçom’ e reconheceu que os opositores à barbárie eram ‘só alguns contra os milhons ébrios de guerra.’ No Reino Unido, por exemplo, tal ebriedade chegou a afectar parte das próprias sufragistas: aquelas mulheres íntegras que eram capazes de imolar-se em greves de fome na prisom, e que abraçaram mesmo a sabotagem e acçom directa para ganhar o direito ao voto, decidiam suspender a sua campanha de protesto e abraçavam o dever de ‘trabalhar polo seu país’, contribuindo para cobrir os postos de trabalho que deixavam vazios os homens que marchavam para a frente, e facilitando assim a vitória británica. Enquanto a sua líder, Emmeline Pankhurst, se alinhava com os interesses do Estado, um socialista moderado como Bertrand Russell perdia a Cátedra de Lógica e era enviado a prisom por se opor à guerra. Nas suas memórias, reconheceu como, rodeado de moços entusiastas com a aventura bélica e totalmente isolado, chegou a duvidar da sua saúde mental por manter os princípios antimilitaristas no médio daquela maré de fúria.

A confusom e a violência, que durante as décadas mais recentes espalhou sobretodo o imperialismo norteamericano longe do nosso território, achegam-se agora a nós, e exigem, tanto ou mais que em qualquer outra dimensom importante da vida, umha conduta clara. O temor que nos produzem massas irracionais alentadas ao belicismo pro-OTAN pola mídia, junto com umha certa frustraçom larvada pola fraqueza internacional galega dos últimos séculos, podem levar-nos a julgar as novas potências com benevolência. A necessidade extrema distorce o juízo, e quando procuramos ajuda na desesperança, é mui habitual começar a adornar de virtudes o nosso suposto auxiliador. Por isso hoje cabeças que podem ser tam lúcidas como as do velho socialismo, de libertários como Kropotkin ou de sufragistas como Pankhurst, e milhares de pessoas animadas por propósitos igualmente nobres, podem caer facilmente na miragem dos novos impérios bons que vam equilibrar o mundo.

A imagem ou o mito do labirinto tem muito de claustrofóbico e sinistro, como a realidade que vivemos, mas como todo mito, deita também umha raiola de luz. O herói grego Teseu evitou o extravio no labirinto, e matou o Minotauro, ajudado apenas polo fio de Ariadna, que lhe permitiu voltar sobre os seus passos e sair de novo ao espaço aberto. Teseu era um guerreiro valente, nom cabe dúvida, mas no labirinto nom abondava nem o seu valor nem as suas armas; precisou de algo tam delicado como um fio, que nos fala de cooperaçom, inteligência, e orientaçom. Todo o que ponhamos em claro nestes dias escuros, mesmo ao calor da mobilizaçom e da denúncia, será falando com fondura e livremente, mui longe da balbúrdia irracional das redes sociais, e começando -obviamente- por defender a plena liberdade de expressom e os direitos de quem pensa o contrário do que nós.