Um dos nossos grandes pensadores esquecidos, Joám Vicente Biqueira, viu na saudade o elemento reitor do carácter galego. Umha disposiçom de ánimo expressada como disconforto íntimo que, porém, poderia ser fulcral para a acçom: ’em saudosos e morrinhentos milheiros de grandes e pequenos dramas vê cada dia a nossa gente essa cobiça do longe.’ Para Biqueira, nada mais estimulante para a ‘criaçom de cousas’, dado que ‘no home o mais nobre é desejar algo formoso e amado que, sendo nosso, nom é nosso.’ Anos mais tarde, também Plácido Castro quijo vindicar a saudade como vector de utopia, vencelhando-a neste caso com o mundo céltico, e desmentindo que tal atitude tenha que conduzir-nos à passividade e o fatalismo.

No seu limiar ao livro Nacionalismo e anarquismo na Galiza (1840-1940), de Dionísio Pereira e Eliseo Fernández, o historiador catalám Xavier Diez comenta que precisamente isso, saudade, na sua intraduzível acepçom galego-portuguesa, é o que lhe suscita a leitura da obra: ‘esse tipo de nostálgia por um futuro que nom tivemos, polas amizades que nom fixemos, polos amores que nom conhecemos, por um país que nom puido ser’.

A pergunta polo país que nom tivemos, e polas razons desse projecto gorado, leva desacougando dous séculos as melhores cabeças do galeguismo. E a sensaçom que a acompanha, umha mestura de tristura e ensonhaçom polo que ainda poderia ser realizável, moldeou os nossos melhores patriotas. Por isso Antolim Faraldo, que volcou os seus talentos no ‘movimento literário’ a um projecto de criaçom de consciência e vontade insurreccional, representa muito acaídamente esta saudade que vira para a acçom. Para Murguia, foi ‘o primeiro e o melhor dos precursores’. Para Benito Vicetto, ‘na independência da Galiza, topava a sua mente os únicos raios de luz para apostrofar abjecçom e servidume (…) No seu periódico ‘El Porvenir’, foi o primeiro talento do território que ergueu a bandeira, modernamente, do Rexurdimento nacional da Galiza’. Fernández del Riego, que reconhece no seu ideário algo de ‘frágil, ainda que chamativo e espectacular’, salienta porém a sua capacidade de liderado e a sua inclinaçom polas realizaçons práticas. Pereira e Fernández, no livro citado acima, trouxérom à tona o grau de abertura que o betanceiro e a sua geraçom político-literária tivérom ante as ideias socialmente avançadas, beirando com o anarquismo em algumha das suas proclamaçons mais genéricas.

Moço de apenas vinte anos, filho de pai absolutista com o que estava seriamente enfrentado, orfao de mae e em apuros económicos, Faraldo conta-nos em ‘El Recreo Compostelano’, o desacougo que sofreu ao conhecer pola vez primeira a nossa postraçom colectiva: ‘fundas e profundas matinaçons embargam o pensamento e a imaginaçom do que alampado por um relumbre de virtude que loze na sua alma, mira a Galiza como a sua mae e a sua pátria. (…) Triste, muito triste, abate-se o ánimo observando um presente de desgraças que enloita a alma e fai cair a melancolia pinga a pinga sobre a frente.’ Ainda, Faraldo nom se detém demasiado na lamentaçom, e esta é apenas o pórtico da toma de partida pola prática, possivelmente estimulado pola combinaçom de personalidades, geografias e leituras que possibilitava, onte como hoje, a experiência compostelana. Chama a atençom, visto com o conhecimento que temos neste 2022 dos rumos da causa galega, esta consciência mui premonitória dum destino elevado: ‘(somos) mestres da verdade que vam levedar no médio das massas, e directores do novo movimento ao que lhe dam pulo, os moços galegos som os fadados para ornar a sua cabeça com essa coroa de triunfo regada dalgumhas bágoas e dalgum sangue.’ A inspiraçom messiánica aparece também com frases tam rotundas como estas: ‘sem se agochar entre sartegos como os reformadores de há dezanove séculos, vam como eles difundir a sublime verdade que aginha mudará num sentimento geral. A mocidade galega, pois é para a sua pátria a coluna de fogo que alumava à noite aquele povo virtuoso que procurava a liberdade entre as colunas de Arábia.’ Que havia em Faraldo muito de urgência de acçom sabemo-lo polo curso posterior dos acontecimentos: polo prolífico da sua escrita naquela década, polo seu papel na Junta Revolucionária de 1846, e pola sua presença -segundo agora sabemos- na escaramuça de Ponte Sigüeiro com as armas na mao. Também o exílio, o abrupto fim da carreira política e a sua morte temperá longe da Terra parecem falar dumha vida vivida mui às pressas, tam comum ao espírito romántico e àquela fusom indistinguível entre vida, literatura e política. Nalgumha ocasiom, porém, transparece-se um sentido mui maduro do longo prazo, e a crença de que as ideias sementadas na letra impressa nascerám a nova vida à margem de conjunturas e dos imperativos imediatos.

Quando lemos o seu assombro polo esquecimento do Antigo Reino damos com preocupaçons que ainda ocupam o pensamento de qualquer galeguista; quando nos detemos nas suas reflexons sobre a paralisia económica e mental de amplas porçons do nosso território estamos a ver problemas que som os nossos. O mesmo quando vinca na necessidade da ‘unidade galega’ para superar as disensons tribais que ainda hoje nos consomem. Noutras ocasions, batemos com umha linguagem que nos sona mui arcaica, ou damos com ausências curiosas à nossa mentalidade actual, como o total desinteresse com a língua; há nele anacronismos, como o seu canto à urbanizaçom acelerada e o seu desejo de ter umha metrópole galega que for umha ‘segunda Lisboa’. Em aspectos como estes decatamo-nos do abismo temporal que nos separa, e congratulamo-nos de que a Galiza tenha conservado, apesar de todas as carências, umha rede de assentamentos rurais e urbanos de tamanho médio melhor harmonizados com a terra.

Seja como for, os clássicos som para entender, suscrever e rebater, como fonte de controvérsia e novas ideias. Aiinda resta muito por fazer e vindicar arredor deste betanceiro. Em 2022 cumprirám-se douscentos anos do seu nascimento. Em 2004 foi nomeado filho adoptivo de Betanços, e desde 2010 tem um busto na sua vila natal. Porém, a sua tumba num cemitério granadino segue sem estar localizada, e o movimento galego -que nós saibamos- ainda nom lhe tem tributado umha homenagem nacional ampla e sostida no tempo, com todas as condiçons necessárias para espalhar os seus contributos e o justo orgulho do que se alimentam as melhores luitas. ‘Para anunciar o que podemos ser, tencionamos dizer o que temos sido’, escreveu Faraldo. Eis um mandato que nos chega desde há dous séculos com total actualidade.