As doenças ou os malestares mentais moderados, noutrora grande tabu, acadam nestes tempos enorme publicidade, e mesmo consideraçom de problema global. Com a persistência da pandemia e todos os seus efeitos associados -normalmente, incerteza, soidade e precarizaçom- a própria OMS tem acunhado já termos que reconhecem a entidade do que acontece: com a expressom ‘fadiga pandémica’, este organismo internacional refere-se aos sofrimentos íntimos que se intensificam com a consciência de vivermos tempos extraordinariamente exigentes e confusos. No mundo de expressom galego-portuguesa, o termo na moda é ‘definhamento‘, e recolhe o índice à alça de processos ansiosos e depressivos.

Especialistas em psiquiatria e psicologia da OMS associam esta particular pandemia de sofrimento espiritual como a dificuldade para o planejamento: isto é, os obstáculos que topamos as pessoas para desenhar o nosso futuro. Toques de queda, estados de calamidade, limitaçons à vida quotidiana, medo pola nossa saúde ou a dos nossos seres queridos, incerteza laboral e afectiva…fam cada vez mais difícil pensarmos em passado amanhá e nos anos vindouros. Nas pessoas com mais consciência da nova jeira em que se introduz o mundo, e que analisávamos neste portal, a sensaçom intensifica-se, desde que se sabe que este surto de crise sanitária é apenas o pórtico para sucessivas crises climáticas, económicas e geopolíticas.

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Nas mais das pacientes que acodem a maos de profissionais, e em qualquer latitude do mundo dito desenvolvido, os sintomas mais frequentes som ansiedade, depressom e insônia. Afundando mais nesta sintomatologia, o psicólogo inglês Adam Grant acunhou o termo ‘languishing‘, que em traduçom livre ao galego poderíamos interpretar como ‘esmorecimento’: umha mestura de sensaçom de estagnaçom nos propósitos e falta de motivaçom para acometer as tarefas essenciais, que iria derivar em grandes dificuldades de concentraçom.

E embora as exigências económicas que traz a pandemia, com perda de milhares de postos de trabalho, puido revalorizar de algum modo o papel da instituiçom familiar (paralisando em etapas de corentena, por exemplo, as taxas à alça de divórcio), qualquer vista de olhos ao nosso arredor pode confirmar que se agudizam também as velhas tendências ao enfrentamento interpessoal, o cisma e a ruptura de grupos.

Dados incontestáveis

O malestar mental está nas conversas quotidianas, muito longe do manto de silêncio que o cobria, a modo de tabu, há apenas uns lustros. Mas se além da pura intuiçom queremos ratificaçom numérica, toparemo-la facilmente. Fontes oficiais reconhecem que Segundo a prestigiosa revista británica ‘The Lancet’, nestes tempos pandémicos temos registado no mundo 53 milhons de processos depressivos e 76 milhons de processos de ansiedade, atingindo mormente mulheres e mocidade. De facto, tem-se popularizado nos últimos anos o termo ‘geraçom de cristal’ para se referir às geraçons mais novas, criadas num dos panoramas mais voláteis dos tempos recentes e, paradoxalmente, com uns níveis de toleráncia ao sofrimento muito mais baixos que o das promoçons anteriores.Antes de nos debruçarmos no panorama galego, um dos mais complexos da Europa neste ámbito, pode ser ilustrativo acometer umha visom panorámica do sul da Europa, um conjunto de países marcados por viverem já de maneira muito intensa os efeitos da passada crise das finanças, e ao mesmo tempo por terem um dos sistemas públicos de assistência à doença mental mais fracos do Continente. Grécia, Itália, Estado espanhol e Portugal encabeçam este ranking de carências; quanto às cifras que nos dam um nível mais alto de padecimento, Portugal e a Irlanda do Norte batem todos os registos da UE.

O caso do vizinho do sul nom admite demasiadas dúvidas: nas passadas semanas, o diário Público noticiava que Portugal padece um verdadeiro ‘Tsunami na área de saúde mental’. Se bem que Miguel Ricou, o Presidente do Conselho de Especialidade da Orde dos Psicólogos, precisava que se ia tratar de ‘afecçons leves’, também reconhecia à mídia que faltavam recursos, e que os e as portuguesas careciam de umha educaçom psicológica deliberada ‘a modo de prevençom.’ Isto conduzia em muitas ocasions à saturaçom do sistema de atençom público, ou à cronificaçom de processos aditivos e obsessivo-compulsivos ligados a usos desaforados da tecnologia.

O caso galego

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Tentando respostar à deslegitimaçom social que o PP sofre na sua política sanitária, mandos da direita espanhola organizavam no passado outubro um pequeno fasto com motivo do Dia Mundial da Saúde Mental. Responsáveis da Conselharia de Sanidade apresentavam o chamado ‘Plano de Saúde Mental Poscovid’, ao que iriam destinados 83 milhons de euros entre os anos 2020 e 2024, com a promessa de incorporaçom de novas 241 profissionais. A legenda era ‘Atençom de Saúde Mental para Todos: fagamo-la realidade’, e esta mesma fazia evidente que existem enormes ocos num serviço alegadamente universal.

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Na realidade, a Galiza, junto com Astúries, é o território do Reino de Espanha com mais casos diagnosticados de depressom e ansiedade, e ocupa o primeiro posto em consumo de antidepressivos; o aumento é sostido desde o ano de 2008, data na que, nom por acaso, começou a crise das finanças que fijo abalar a Europa. Os dados som do espanhol Instituto Nacional de Estadística, e batem com outras cifras, também oficiais: a Galiza (território CAG) conta com 4 psicólogas clínicas por cada 100000 habitantes, e tam só Andaluzia apresenta piores cifras. Rosa Cerqueiro, vozeira do Movemento Galego de Saúde Mental, esclarecia recentemente em Praza Pública que isso supom que o SERGAS ‘só conta nesta área com o 60% do pessoal que a própria Junta recomenda’. Tenhamos em conta que as recomendaçons da OMS apontam a um rátio de entre 12 e 20 profissionais de atençom psicológica, e que países como a Dinamarca ou a Suécia contam com 60 médicas especializadas para esse volume de populaçom.

Penúrias e contrapontos

As consequências desta atitude demissionária dos poderes estatais som, como nom pode ser de outra maneira, o reforçamento dos serviços privados. Deste portal falamos com M., umha jovem galega que nom quer dar o seu nome; universitária e participante de vários movimentos sociais, reconhece padecimentos crónicos leves, como processos ansiosos-depressivos, e a sua dependência da psicologia privada: ‘falamos de sessons que oscilam entre 50 e 100 euros a hora. Que economia se pode permitir isso? E desde que entramos na segunda fase do Covid, as clínicas estám tam saturadas, que se calhar cumpre aguardar cinco ou seis meses para umha cita.’ M. reconhece que nom é um caso isolado. ‘Hoje todo o mundo fala deste tipo de doenças, nom vou dizer que é umha moda, seria banalizar algo doloroso, mas rachou o tabu, e em grupos de amigos é habitual tocar este tema, e falar por exemplo da medicaçom que consumimos.’

Eis um outro dos problemas associados a esta grande vaga de malestar: a sobremedicalizaçom. Comentava-o no passado ano a psicóloga Iria Veiga, em entrevista a jornalistas do Colectivo Amanhecer: ‘quando nom há capacidade de atender todas as pessoas que saturam umha clínica pública, por falta de meios, é habitual atender superficialmente e receitar medicamentos demais’.

Nessa mesma reportagem, as entrevistadas sugeriam importantes contrapontos que deitavam certa luz na obscuridade. A própria Veiga dizia que os mais dos casos que se recebem nas clínicas nom som exactamente doenças, ‘mas malestares’, isto é, padecimentos mentais polos que todas as pessoas passamos ao longo da vida, num momento ou em outro. Aliás, apontava esta profissional, ‘na Galiza existe ainda umha boa rede social familiar’ que poderia amortiguar os efeitos mais duros do andaço, e palpáveis em sociedades mais individualistas.

O psiquiatra Guillermo Rendueles apostava numha linha argumental semelhante, salientando que durante os primeiros momentos da pandemia ‘se reduziam notavelmente os casos de crises mentais severas’, enquanto aumentavam os ‘padecimentos médios’. E assinalava que a volta ‘aos grupos humanos mais cercanos, a menor mobilidade e maior sociabilidade próxima’ puido amortecer os problemas.

Rosa Cerqueiro, por seu turno, vinculava as doenças a processos de retrocesso em direitos e condiçons de vida, e por isso recordava que a saúde mental recuperaria-se sempre que avançássemos ’em termos de solidariedade, coesom social e justiça.’