Como a pandemia de covid-19 escancarou as contradiçons patriarcais do capitalismo

Por / Aline Rossi

Com a pandemia de coronavírus e a nova crise capitalista a se instaurar, as contradiçons duma economia que rege a vida humana mas que é baseada nom na vida e sim no lucro e na acumulaçom de capital se tornam transparentes.

O sistema capitalista, como tal, é um modelo económico e sócio-político muito jovem (pouco mais de 200 anos) e estruturou-se aprofundando a cova da divisom sexual do trabalho, isso é, aquela primeira divisom de tarefas que forneceram a base para os papéis sociais de sexo (o gênero).

Para esse sistema funcionar, foi necessário hierarquizar as mulheres, colocando umas na posiçom de “princesa indefesa”: feita para o casamento, frágil e submissa incapaz e incapacitada de trabalhar, criada para ser propriedade do marido e confinada no lar, para procriar herdeiros masculinos, mas privadas de controlar sua própria sexualidade e reproduçom; e outras na posiçom de trabalhadoras braçais: exploradas, propriedades do colonizador, feitas para parir mais mao-de-obra e para cuidar dos herdeiros masculinos do escravagista, enquanto era privada de cuidar dos seus próprios filhos, privadas de decidir sobre a sua própria sexualidade e reproduçom.

Ambas com a sua subjetividade, vida, pessoalidade, criatividade, autonomia e liberdade negadas e postas a serviço dos homens e para reforço de seu status dominante.

Mulheres brancas tiveram de luitar para poderem trabalhar e terem autonomia financeira que nom as figessem depender inteiramente, inclusive a sua existência e a dos seus filhos, dos seus donos legais, os maridos. Mulheres negras tiveram de luitar para poderem conseguir trabalhos significativos – nom escravo, nom desigual – para poderem garantir a sua autonomia financeira, poder prover a sua família, já que a violência policial e racial em geral nom permitia que pudessem contar com os seus companheiros sequer. Mulheres indígenas foram cada vez mais empurradas para os trabalhos da “civilizaçom” imposta pelo colonizador, uma vez que a sua terra, a sua cultura e o seu povo sofriam ataques genocidas constantes e poucas alternativas restavam.

A divisom sexual do trabalho que colocava mulheres para cuidar da reproduçom, do lar, dos filhos nom era nova. Novos eram os moldes em que isso era agora feito. Nova era a hierarquia racial criada para alavancar e solidificar esse sistema. E que assegurou que mulheres e homens da classe trabalhadora fossem de tal forma hierarquizados sob uma relaçom de dominaçom e subordinaçom que tornou tam difícil a nossa uniom na luita.

Hoje, com a ideologia neoliberal arraigada e o sistema capitalista estabelecido — com tudo que isso implica, incluindo as suas crises cíclicas por ser um modelo e político insustentável para a natureza e as pessoas – essa divisom sexual do trabalho agora também nivelada também pola hierarquia racial continua a se fazer valer, praticamente intocada. As mulheres foram progressivamente integradas na força de trabalho produtiva, embora nom sem entraves, nom igualmente e nom em boas condiçons. Contudo, o trabalho doméstico e reprodutivo continua sobre as costas das mulheres e para benefício de homens. E mesmo na força de trabalho fora de casa, a maioria dos empregos em que estám as mulheres nom som mais que uma extensom do trabalho reprodutivo, de cuidados e emocional feito em casa: som secretárias, mas na maioria nom som chefes; som cozinheiras, mas na maioria nom donas de restaurantes; som enfermeiras, mas na maioria nom som médicas; som professoras, som cuidadoras, som babás, som profissionais de limpeza, som auxiliares, som psicólogas, som pedagogas…

As mulheres continuam a parir e cuidar, pagas ou nom, da sociedade. A divisom sexual do trabalho continua pouco alterada, apesar das experiências comunistas e das investidas do movimento feminista. As profissons mais mal pagas som aquelas que se entendem como extensom do trabalho doméstico: limpar, cozinhar, educar, cuidar. É onde as mulheres estám. É onde somos a maioria.

E o coronavírus?

Com a pandemia global, o isolamento e o cessar de atividades se fijo necessário para conter a velocidade de contágio e, assim, tentar reduzir número de mortes. Mas nem todos os setores podiam parar. A manutençom de determinados serviços eram essenciais, precisavam de continuar mesmo expondo a vida daquelas pessoas trabalhadoras ao risco.

Que serviços som esses? Quais serviços som essenciais? O que é percebemos, afinal, como essencial para a sobrevivência da sociedade?

Nom era a venda de carros. Nom era a venda de sapatos. Nom era a venda de bolsas. Nom era a fabricaçom de cerveja. Nom era o McDonalds.

Eram os cuidados.

Os lares de idosos, com todas as cuidadoras. Os centros de saúde e hospitais com a enfermagem, as suas cantinas, a recepçom, toda a equipa de auxiliares. Os mercados e as farmácias, também setores altamente femininizados. A educaçom, que fechou estabelecimentos, mas continuou mostrando a dimensom do caos que se instala quando nom há escola, quando nom há quem cuide das crianças e adolescentes para que o trabalho funcione e produza.

E entom… o Rei está nu! A contradiçom transparece por todos os lados.

O sistema capitalista estruturou-se desvalorizando o trabalho que a dominaçom masculina definiu como o “trabalho das mulheres”, dizendo que os cuidados e o trabalho reprodutivo nom eram trabalho, eram amor e “responsabilidade individual de cada um”. Esta organizaçom económica, política e social empurrou para o ombro das mulheres esse trabalho que permitia que a economia girasse ao cuidar de toda a sociedade e educar as geraçons de trabalhadores, pesquisadores e cientistas do mundo, e depois o invisibilizou. E agora, em meio a mais uma das suas crises, obriga a sociedade a encarar as suas veias abertas: essencial, de fato, é o trabalho reprodutivo, os cuidados, o educar, o criar. Essa é a base das comunidades humanas, a base da sociedade e a base da nossa natureza de grupo.

A crise provocada pola nova pandemia mostrou que nom é mais possível ignorar o trabalho reprodutivo. Que é preciso partilhar os cuidados. Que é preciso um sistema público de saúde e educaçom robusto e estruturado que atenda a todos universalmente. Muitos trabalhadores e trabalhadoras estám hoje fazendo o seu serviço em casa com os filhos no colo, nos pés. Têm de produzir, cozinhar, educar, fazer 3 papéis ao mesmo tempo: o de educador, o de cuidador dos mais velhos e doentes crónicos, o de pai/mãe e de trabalhador comum. A maioria a aguentar esse peso, é claro, som as mulheres. Mas nós já sabíamos dessa realidade sem pandemia. E já sabíamos que isso nom era, obviamente, possível — daí as altas taxas de abandono do trabalho formal ou da universidade ou escola entre o sexo feminino por causa da maternidade ou para cuidar de doentes na família.

O trabalho produtivo só é possível se o trabalho reprodutivo for assegurado. Mas o bem-estar e diria até — por que nom? — a felicidade das pessoas, nas suas vidas pessoais, nas suas relaçons, na estabilidade da comunidade só é possível se os cuidados forem socializados.

A questom é: o que nós, como movimento feminista pola libertaçom das mulheres, faremos com isso? Pagaremos a crise, submissas e atoladas em trabalho reprodutivo?

Articularemo-nos num movimento de massas para exigir a socializaçom dos cuidados na criaçom de cantinas públicas e escolas, exigir mais centros de saúde, exigir mais assistência à infância e à família, exigir menos tempo de trabalho para podermos efetivamente viver vidas autónomas? Nom apenas como parte da massa de mao-de-obra, mas como pessoas – sim, seres humanos com direito à liberdade, ao lazer, à cultura, muito além da circunscriçom do trabalho?

E o que os homens nos seus movimentos farám com essa realidade escancarada? Continuarám a delegar o trabalho doméstico e reprodutivo nas costas de suas companheiras? Juntaram-se a nós nessa luita pola autonomia reprodutiva, contra a precariedade da vida? Ou continuarám assegurando os seus interesses como classe masculina que sobrevive às custas da liberdade e vida das mulheres?

Essencial é a autonomia reprodutiva, a soberania alimentar e a socializaçom dos cuidados.