Por Aníbal Quijano (traduçom do galizalivre) /

Toda naçom é filha do poder ainda que se expresse nos seus habitantes como umha identidade. A naçom moderna nom existe mais que como Estado-naçom, até há pouco a instituiçom pública central do poder no mundo do capitalismo.

O Estado-naçom moderno foi-se constituindo na Europa no mesmo rego, no mesmo movimento histórico do mundo que o capitalismo e como parte do padrom eurocêntrico de poder. Grosso modo, podem ser diferenciadas duas grandes etapas: entre fins do século XV até fins do século XVIII; desde aquela até hoje.

A primeira etapa corresponde com o processo de enfrentamento dos dominadores dos novos interesses sociais com o Sacro Império Romano-Germânico (ou a sua existência virtual) e o Papado, mais a luita pola definiçom dos espaços particulares de dominaçom. A segunda, com a maduraçom e depuraçom do padrom de poder, com a constituiçom da cidadania e da democracia, com a luita pola definiçom final mais a estabilizaçom dos espaços de dominaçom frente aos impérios europeus em crise, em particular desde fins do século XIX e as primeiras décadas do XX.

Fôrom muitos -ainda som- os grupos dominantes, ou pretendentes a sê-lo, que tentárom a “construçom” (termo de Bendix) de Estados-naçom, dentro e fora de Europa. Mui poucos deles, ou melhor mui poucos dos respectivos processos, dérom reunido todas as condiçons e as mantivérom tempo avondo para culminar. Mas em todos os casos, sem excepçom histórica conhecida, os processos com sucesso em maior ou menor medida fôrom, precisamente, aqueles em que foi possível umha durável articulaçom entre os dous conflitivos complexos de ideias e de interesses -individualismo/racionalidade instrumental Vs igualdade social/racionalidade histórica- baixo a necessária hegemonia do primeiro. Que fijo possível o sucesso nesses casos?

A explicaçom fundamental, isto é restrita ao seu núcleo central, é que em todos esses casos foi levada a cabo umha distribuiçom ou redistribuiçom democrática -com toda a relatividade do conceito numha sociedade cujos membros tenhem desigual posiçom nas relaçons de poder- do controlo de recursos de produçom e das instituiçons e mecanismos de poder político.

Noutros termos, a nacionalizaçom de sociedades e Estados consistiu em processos de democratizaçom do controlo de recursos de produçom, na área privada, e de mecanismos institucionais na área pública. Desse jeito, sem deixar de ser desiguais as posiçons e os roles da gente nas relaçons de poder, pudo ser mais ou menos democrática a distribuiçom entre elas do controlo do poder, privado e público. Sem distribuiçom democrática na área privada, na área pública essa distribuiçom nom seria democrática, ou somente formal e inestável. Pola mesma, os processos de nacionalizaçom social/estatal pudérom ter mais sucesso e durar mais quanto mais fundamente democrática pudo ser essa distribuiçom de controlo do poder, e tanto mais estável e duradoiro foi o processo. Em nengum caso se poderia afirmar que o processo é total e definitivo. Os casos de França, na Europa, e de Estados Unidos, em América, som até o de agora os exemplos mais ilustrativos.

Por que tivérom sucesso na Europa e nom no mundo colonizado? A história amostra que umha condiçom para que genuinos processos de nacionalizaçom-democratizaçom atingissem sucesso nas sociedades e nos seus Estados, foi sempre umha grande homogeneidade “racial”. E é aqui onde se revela em todo o seu porte histórico a importância crucial da classificaçom mundial da gente em “raças”, desde América em diante, em todo o mundo do capitalismo. Porque essa classificaçom nom parte do lugar que a gente ocupa no poder, cambiante historicamente, senom do contrário: as diferenças de lugar no poder determinam-se e explicam-se pola diferente natureza da gente.

Foi isso, justamente, o que Tocqueville percebeu no nascente Estado-naçom de Estados Unidos. Viu, abraiado, a rapidez e a facilidade com que gente chegada de lugares, línguas, histórias e culturas diferentes, se integrava no processo e adquiria a nova “identidade nacional”. E, já ora, a distribuiçom do principal recurso de produçom no período nom era quase um problema com a largacia terra arrapanhada aos “índios”. E nessas condiçons a participaçom política era realmente mui ampla. Porém, Tocqueville nom deixou ver, nem agachou, que os únicos com a integraçom proibida eram, precisamente, “negros” e “índios”. Como um século mais tarde há perceber de novo outro europeu, Myrdall. Os limites da cidanizaçom, democratizaçom da gente, ergo da nacionalizaçom da sociedade e do seu Estado, era e é a “raça”.

América Latina foi até o de agora, sem dúvida, o exemplo mais completo da actuaçom das diferenças “raciais” na questom nacional. Porém, desde há pouco, o problema parece deslocar-se até a própria Europa e as suas relaçons com os migrantes das sociedades coloniais e a classificaçom “racial” imposta nelas.

De todos os jeitos, nos processos com sucesso de formaçom de naçons-Estado modernos, pudo ser preservada a hegemonia dos interesses do capital, através da instituiçom da cidadania, expressom cingida da associaçom do individualismo e da razom instrumental, graças a que se pudo alojar também nessa mesma associaçom a ideia básica da igualdade social dos indivíduos e dessa maneira e sobre essa base de realidade, a imagem virtual dumha sociedade de iguais, é verdade que sobre todo como meta histórica, como utopia, mas também decote como exigência social real. Já que foi essa cidadania a base mesma dessas exigências dumha distribuiçom dos recursos de produçom cada vez mais ampla e realmente democrática, de acesso a bens e serviços, de controlo dos mecanismos e decisons da sociedade. A cidadania nom esgota a democracia, abofé. Mas implica umha. E, sobre todo, funda as exigências para umha mais ampla e mais profunda.

A naçom Estado virou-se por isso, ante todo, nom somente como imitaçom dos atributos do dominador, a aspiraçom universal da gente em todo o mundo do capital. O padrom eurocêntrico de poder converteu-se em modelo para todas as populaçons. O eurocentrismo da perspectiva cognitiva dominante turrou pola implantaçom das mesmas instituiçons em todas as partes, a mesma homogeneidade. Porém, foi até aqui, o mesmo padrom eurocêntrico de poder, a sua radical colonialidade, o que bulrou quase em todas as partes do mundo colonizado essa esperança, e o eurocentrismo do conhecimento empeceu perceber o limitado, e em muitos casos cego, final desse caminho para a democratizaçom das relaçons entre a gente do mundo. Quase dous séculos após a “emancipaçom”, o processo fica ainda pendente na América Latina, com um ou dous casos um chisco mais avançados porque, justamente, levárom longe a “homogeneizaçom” da sua populaçom pola via do extermínio dos “índios”.

Capital e Estado-naçom

De nengum jeito está esgotada a pesquisa sobre o que levou o capitalismo à formaçom de Estados-naçom, cidadania, nom sempre democracia, na Europa, enquanto colonizava o resto do mundo. E por que mesmo alojou, ou deixou alojar, a mesma perspectiva no mundo ex colonial, na América Latina desde começos do século XIX e no resto do mundo, sobre todo após a Segunda Guerra Mundial. A literatura desse debate é ampla e ainda se prolonga nos nossos dias.

Se calhar, cumpre lembrar que se tratava ao começo, quando se ergue a “questom nacional”, do capitalismo competitivo, cujos dominadores (ou “funcionários” como dizia Marx) requeriam, decerto necessariamente, o controlo estável dum bem delimitado espaço de dominaçom, de onde dar competido, defender os seus interesses e avançar sobre os dos seus competidores ou negociarem com eles. Para isso cumpria ganharem a lealdade da populaçom fechada, com o seu consentimento ou sem ele, dentro desse espaço, reduzirem os conflitos inevitáveis. A democracia no controlo dos bens privados, e no controlo dos mecanismos públicos, até onde cumprisse segundo a força do conflito, foi sem dúvida o caminho que esses mesmos conflitos definírom.

O “mercado interno” obsessom teórica e política do “materialismo histórico” pos-Marx, seica nom foi a condiçom, mas o resultado desse processo. Mais que um fenómeno “económico” o seu carácter é político-social. Porém, de qualquer jeito, nas condiçons do capitalismo, o mercado interno era o mais importante mecanismo dessa distribuiçom de recursos e de bens, quando os mecanismos políticos já se podiam evitar.

Por isso, ainda que era avondo perceptível o esgotamento das relaçons Estado-naçom e capital desde pouco depois da Segunda Guerra Mundial, na ideologia dominante a escala mundial, a “questom nacional” consistia, antes de mais, em como atingir umha “construçom” com sucesso dum Estado-naçom moderno. Desde fins do século passado, porém, em especial no mundo ex colonial ou colonial, esse debate virou-se num vertedeiro do “nacionalismo”. Isso explica, decerto, por quê em todos os casos em que um processo de “construçom” nacional se pujo em marcha, nom se tratou quase nunca dumha distribuiçom ou redistribuiçom democrática de recursos, bens e poder político, como durante os séculos XVIII e XIX na Europa, senom da concentraçom do seu controlo em maos dos funcionários do Estado. A única redistribuiçom admitida como legítima foi a “redistribuiçom de ingressos” máxima panaceia democrática dos regimes chamados “populistas” no “Terceiro Mundo”. E nessas condiçons a cidadania só podia ser formal e limitada, ou às vezes simplesmente bloqueada, de todas as maneiras distorcida, e a democracia um discurso, jamais umha prática quotidiana. México, Argélia, Peru (do “velasquismo”), som bons exemplos.