Desde há um mês ando de novo pola terra, pola nossa terra. Na minha aldeia, Cortellas, desde o ano 2017 em que sofremos um ataque de um incêndio florestal de uma intensidade e virulência nunca antes experimentado, o processo de expansão e colonização territorial do eucalipto em nossas terras está sendo rápido e acelerado.

Faz um ano e médio que não volto à minha aldeia que fica num lindo vale banhado pelo regato Borbén, afluente do Tea. Isolados da parroquia por uns centenares de metros de uma estrada que atravessa montes de um lado e do outro, comuns e particulares, vivemos juntos em 70 casas espalhadas umas das outras.

A estrada de recente abertura e asfaltado é hoje um marcador da nossa mobilidade. No entanto, meus pais, tios e avós trabalharam na abertura dela ainda na década de 60 e começos dos 70. Foi asfaltada em 1972 e antes dessa data, a estrada somente chegava até um lugar por eles conhecidos como “ponta da carretera”. Do lado esquerdo desse ponto social e geográficamente marcado se localiza até hoje um galpão, conhecido como garagem do Reginha, dono do primeiro Taxi.

Penso no processo de ocupação massiva de terras por parte do eucalipto e na naturalização da nossa mobilidade com carros, como similares, pois ambos trazem consigo marcas da colonização do país“.

Uns 25 metros mais acima da atual estrada passa o caminho velho, que tem como um dos pontos neurálgicos duas cruzes: a cruz de pau e a cruz de pedra. Esse caminho é fundo, as terras estão mais altas e está parcialmente empedrado, e, comunicava a nossa aldeia das Cortellas com a aldeia da Portela. Nessas terras aprendi algumas das lavouras da casa como roçar, cortar giestas, tojos e fentos. Também foi esse caminho o palco das minhas primeiras caminhadas só, ou por onde nos aventurávamos em bicicleta. Tenho lembranças dessa zona também, de quando entrei na universidade e comecei a me interessar pelos cogumelos. Essas terras sempre foram lugares de aprendizagem para mim, e com os fungos não poderia ser diferente. Lembro a grande variedade, o (re)descobrimento de um território conhecido, dessa vez, e, mais uma vez sob uma nova lente. As diferentes formas de se conhecer o território são, pois, possibilidades de aprofundar na relação profunda e sensível que temos com a terra. Assim a chuva, a temperatura e o sol ganharam novos matizes em função da época do ano.

Aglutinava magharin – assim é conhecida essa zona por nos – pinheiros e carvalhos numa medida tão certa que, desde o mês de setembro apareciam as primeiras cantarelas, alguns niscalos mais adiante e sempre finalizava o ano com as tubescens e línguas de gato. Esse era mais um dos motivos para percorrer todo ano aquel caminho fundo, velho e parcialmente empedrado.

O geógrafo brasileiro Rogério Haesbaert em sua obra “O mito da desterritorialização – do fim dos territórios à multiterritorialidade” (Bertrand Brasil,2004) nos anima a pensar a noção de território sob o impacto da modernidade, ajudado pelas achegas de Deleuze e Guatari. Para tal fim o autor apresenta uma série de condicionantes sob os quais foram pensados os territórios, sendo estes de forma resumida: territórios-zona, território rede e a multiterritorialidade. Seriam os territórios-zona os que conhecemos de forma contínua, dando passos e incluindo dessa forma os horizontes, sendo acumulativos também. Os territórios rede seriam territórios articulados através das multiplas noções que podemos pensar de rede, descontínuos e acionados através de relações. E, por fim, a multiterritorialidade, se sustenta na noção de territorialidade, entendida como o processo de construção do território, que decorrente das formas de vida atuais, são também conectados, sem que haja necessidade de conhecimento.

Já quando foi o incêndio de 2017 que arrasou a serra do Galheiro, fiquei preocupado, pois nunca antes tinha vivenciado que chegassem as chamas à estrada que nos enlaça com a paróquia. Nunca antes tínhamos sentido tão perto as chamas, que dessa vez rodearam casas e obrigaram a evacuação dos mais idosos. Quase 3 anos depois dessa batalha que travamos os vizinhos e vizinhas, com os meios profisionais, sistematicamente mau-tratados por parte da administração galega, a paisagem daquele caminho mudou. Na atualidade a catástrofe é constatável, está alí presente. A escuridão típica dos nossos montes, mudou por uma claridade ácida da espécie invasora. O que era um passeio plácido de múltiplas lembranças, é na atualidade um caminhar no escuro, quase sem saber aonde estou, num caminho percorrido e ancorado na memória. As arvores antes nasciam nas propriedades, hoje não respeitam os caminhos. As cruzes estão cada dia mais ocultas.

A forma em que lemos a paisagem, os signos que procuramos e as mensagens que tiramos dessa relação intersubjetiva, marcam a experiência e a vivência.

As arvores antes nasciam nas propriedades, hoje não respeitam os caminhos.Penso no conhecimento territorial como um processo em que o tempo, as experiências pessoais e coletivas incidem de forma crucial neste. Assim não podemos tratar de colocar juntos o conhecimento que detêm um pastor da serra, do que um afeccionado às corridas, ou um caçador. A forma em que lemos a paisagem, os signos que procuramos e as mensagens que tiramos dessa relação intersubjetiva, marcam a experiência e a vivência.

Porque penso que o eucalipto é uma boa metáfora para pensar a colonização?

Não ele enquanto indivíduo, se não o que ele é enquanto espécie é, a meu ver, um bom eixo de reflexão. O eucalipto é hoje uma das famílias arbóreas que mais mercados diferentes abastece, e que vão desde as papeleiras, ao setor da construção civil seja para madeira estrutural ou madeira de acabamento, ou mobiliário. Presente em vários continentes, o problema não é a espécie em si, se não o uso que os humanos do capitaloceno lhe demos, como foram sendo desenhados os sistemas produtivos tanto de plantas quanto de terras, e desde essa ótica utilitarista, proceder para uma nova leva de colonização e espropriação territorial. Eis o cenário que encontramos à volta do mundo, e, na Galiza não poderia ser diferente.

Encontramos também outros rendimentos analíticos em base dessa colonização e que diz sentido com a naturalização da opressão que a colonização produz, não em todos. Desde essa ótica parece que a estrada antes comentada será uma marca indelével no nosso território, defendida e assumida por todos como boa. Espero e desejo que a do eucalipto não seja assim. Ele é um signo do avanço incontrolável dos interesses capitalistas encima de nossos territórios, e assim atua tanto ele com suas aptidões naturais, quanto o estado com suas ampliações ad infinitum de licenças de ocupação das plantas papeleiras ao lado da ria de Pontevedra, por exemplo. Se formos aqui explicitar as tentativas do Estado de controle efetivo das terras de uso comum, precisaríamos de nos estender muito mais. Mas como bem define Scott, as formas de resistência cotidiana não são grandiloquentes, mas, feitas no aconchego e fraternidade da vida comum, nas aldeias.

Apesar das novas tentativas de apropriação do futuro que estão sendo articuladas pelas diferentes administrações, a esperança vem dessas estratégias que surgem em muitos lugares do pais.

Apesar das novas tentativas de apropriação do futuro que estão sendo articuladas pelas diferentes administrações, a esperança vem dessas estratégias que surgem em muitos lugares do pais. Penso aqui nas brigadas deseucaliptizadoras, nas comunidades de montes que estão trabalhando pra que exista outro monte, ou nas famílias que dia após dia abandonam o mundo urbano para tentar a vida no rural.

Tendo em mente esses atores políticos da nossa vida social como centrais, não posso deixar de pensar nas contribuições de Anna Tsing, no seu livro “Viver nas ruinas” (IEB Mil Folhas,2019). Traz a autora uma reflexão acerca dos modos de vida dos fungos nas florestas de pinheiros, chamadas Satoyama, em que conceitos como assembleia, colaboração e vida interespecífica ajudam a autora a nos descrever e imaginar mundos que estão sendo construídos para além da colonização, para além do humano. Pensando a terra, as simbioses e a cooperação entre espécies e isso inclui os humanos, podemos nos recolocar na equação da colonização, e refletir acerca da nossa ação.

Temos de fato ao nosso alcance formas de vida que leem a paisagem de formas diferentes, eu mesmo o tentei plasmar aqui, como os pastores e os praticantes de corridas. Pra mim se perdeu aquele caminho fundo, parcialmente empedrado, ao estar totalmente recoberto dessa espécie invasora. Isso não quer dizer que chegue alguém que consiga vislumbrar nesse cenário elementos que desde seu olhar vislumbre ações articuladoras.

Penso que a reflexão acerca do território-rede pode ser uma chave, se ganhar relevância e centralidade na nossa dinâmica comunicativa e educativa. A imensa rede de pessoas que estão pensando outros mundos, pode ser nutrida, também de vivências que acontecem à nossa volta, desde os nossos territórios-zona. Territórios que desde o conhecimento sensível e profundo que temos e que estamos construíndo com o nosso olhar, com o nosso viver, com o nosso refletir, possam ser inspiradores, assim como nossas experiências e ações também ser modificadas pelas dos outros.

Eu não sei que memória ficará na minha mente depois do choque de realidade que foi ver aquele ambiente drasticamente alterado, tampouco sei como lhe explicarei aos meus sobrinhos que aquilo era outro mundo, que eu o habitei doutra forma.

A colonização dessa espécie é infelizmente rápida e silenciosa, da mesma forma que perdemos direitos que antes considerávamos conquistados, as possibilidades de articulação continuam sendo reinventadas cada dia. É preciso saber dos demais territórios-zona, construirmos um território-rede em que possamos habitar e construir cada um de nos a territorialidade desejada e comum, como projeto político.