Já durante a guerra, mas sobretudo a partir de meados de janeiro, a guerrilha começou a se esforçar para romper as dificuldades geográficas e políticas para se comunicar com a chamada sociedade civil mexicana96. Apenas nos primeiros sete meses de 1994 foram 107 textos, o que equivale a cerca de um texto a cada dois dias, e dos quais 37 foram enviados em apenas um mês, entre meados de janeiro e o começo do diálogo com o governo na Catedral, o que revela um grande esforço inicial (EZLN, 1994). Não é pouca coisa, considerando-se ainda que os textos assinados pelo CCRI-CG tinham que ser discutidos e aprovados pelo Comitê. E havia ainda o problema da mediação entre as várias línguas e visões de mundo. O próprio EZLN se subdividia em várias etnias com suas respectivas línguas, como explicou Marcos durante o diálogo na Catedral, quando se referiu aos quatro “grupos de comitês clandestinos revolucionários indígenas, que controlam quatro etnias principalmente” (EZLN, 1994: 169). E havia a necessidade de um tradutor para o mundo ocidental. Este se tornou um dos mais importantes papéis de Marcos, redator dos comunicados assinados pelo CCRI-CG, e que também escrevia seus textos próprios para se comunicar com a sociedade civil. Segundo Marta Durán, em sua introdução a uma compilação de comentários de Marcos, “a palavra do sub é a palavra da comunidade índia, a ponte entre duas culturas, ou melhor dito, entre dois mundos: o indígena e o nosso” (Yo, Marcos, 1994: 10). Os comunicados zapatistas se tornaram célebres pelo senso de humor e o uso de recursos de estilo literário, que os distinguiam dos textos políticos típicos, sérios e pretensamente racionais, a que o público estava acostumado. E neles vinham a restauração do romantismo revolucionário, do radicalismo presente na disposição de morrer por uma causa e na recusa de aderir à política institucional, a generosidade cristã, e estes valores vinham conciliados, de certa forma, com os valores então hegemônicos na esquerda: a luta pela via pacífica e por valores democráticos. Finalmente, esses elementos ocidentais vinham mesclados com elementos estilísticos da tradição oral, a visão de mundo e valores da cultura dos índios maias, entre os quais vale destacar a dominância do caráter moral, uma linguagem geralmente simples, bastante concreta e emotiva. Em resumo, sem uma presença marcante da racionalidade moderna ocidental, porém saboroso para um público mais familiarizado ao cinema, por assim dizer, que ao debate político tradicional.

Embora o EZLN tivesse interesse na mais ampla cobertura jornalística possível, e procurasse abrir os seus territórios para todos ou quase todos os meios de comunicação, adotou a tática de elevar alguns meios a interlocutores privilegiados. Para ganhar maiores e mais favoráveis espaços na grande imprensa, e conseguir que seus comunicados fossem publicados, passou valorizar e a se dirigir diretamente a alguns meios: o jornal chiapaneco Tiempo, os jornais de circulação nacional La Jornada e El Financiero, e a revista semanal nacional Proceso. Os comunicados assinados pelo CCRI-CG do EZLN eram enviados e esses órgãos de imprensa de maneira personalizada, em pacotes acompanhados por cartas bem humoradas assinadas por Marcos. Além disso, para esses meios era facilitado o trânsito em território rebelde e o acesso a entrevistas com oficiais da guerrilha. Num comunicado de 11 de fevereiro assinado por Marcos e em resposta ao jornal El Sur, do estado de Oaxaca, que havia protestado pela eleição do EZLN pelos quatro outros órgãos, o líder zapatista explicitava os critérios adotados na seleção. O jornal chiapaneco havia sido escolhido a partir da experiência dos indígenas nas lutas das duas décadas anteriores. “Recordem os senhores que nossos companheiros não chegaram à luta armada assim sem mais nem menos, pelo afã de aventuras. Passaram já por um longo trecho de lutas políticas, legais, pacíficas e econômicas. Conhecem várias prisões e centros de tortura locais e estatais. Também sabem quem os escutou ontem e quem lhes fechou portas e ouvidos” (EZLN, 1994: 139). La Jornada, El Financiero e Proceso foram escolhidos por possuírem políticas editoriais plurais, com espaço para várias correntes ideológicas e interpretações da realidade, além de algumas outras características como o grande empenho dos jornalistas em ir buscar informações no local dos acontecimentos enfrentando “fogo e chumbo” (La Jornada), a profundidade analítica distante da arrogância intelectual do chamado “jornalismo de elite” (El Financiero) e a objetividade (Proceso). Marcos e o EZLN nunca economizaram nos elogios aos seus interlocutores e foi bastante exitosa esta aproximação personalizada com alguns meios. Mas ele terminava o comunicado ponderando que havia outros meios “de igual ou maior valia”, e anunciou que o EZLN iria ampliar o número de destinatários ou se dirigir à imprensa em geral. Mas as cartas assinadas por Marcos continuariam destinadas geralmente a estes quatro órgãos. Ofereceu também ao jornal El Sur a oportunidade de uma entrevista epistolar e o convite para ir ao território rebelde, “sem mais requisitos que vir a Chiapas e pegar, no escritório da Comissão Nacional de Intermediação, o credenciamento que como correspondentes de guerra lhe dá o EZLN”. A Igreja de Chiapas, ao lado de parte da imprensa, já começava a ter um papel importante para as conexões da guerrilha com os setores da sociedade civil (EZLN, 1994).

Embora o EZLN estivesse prestes a se sentar numa mesa de negociação com o governo, sua atenção estava voltada especialmente para a sociedade civil. Entre 18 de janeiro e 17 de fevereiro, de 37 mensagens, apenas 6 tinham o “enviado especial para a paz” Camacho Solís como destinatário, entre os quais em 4 seu nome secundava o do bispo de Chiapas (no último vinha também a imprensa, esta com o destaque e na frente dos demais). Os principais interlocutores eram o povo mexicano, os povos e governos do mundo, as organizações indígenas de Chiapas e do país, a imprensa nacional e internacional, ONGs, o movimento estudantil da UNAM, partidos políticos, órgãos de imprensa, e até mesmo algumas pessoas particulares e os meninos e meninas de Jalisco, em comunicados freqüentemente escritos em estilo personalizado e em resposta a cartas que a guerrilha havia recebido, mas visando atingir amplamente a opinião pública. Assinados pelo CCRI-CG do EZLN ou apenas por Marcos, serviam para oferecer visões da experiência, composição, idéias e demandas dos indígenas envolvidos com a luta armada, justificar a opção pela guerra e esclarecer posicionamentos táticos e estratégicos, o que era necessário já que se pretendia unir a nação na luta por “liberdade, democracia e justiça”.

Era fundamental a justificação da guerra e a afirmação do desejo de paz, pois tratava-se de ganhar aliados entre os grupos e indivíduos de uma sociedade civil predominantemente contrária à guerra. Desejo de paz, mas uma “paz com justiça e dignidade”. Numa carta em resposta aos meninos e meninas de Jalisco de 8/2/1994 e publicada dia 12, o CCRI-CG o fazia esplendidamente, apresentando o EZLN não como um grupo bruto e violento, mas capaz da sensibilidade de se dirigir a crianças e dar valor à sua expressão:

“(…) Assim vivem e morrem nossos meninos e meninas há 501 anos. Nós, seus pais, suas mães, seus irmãos e irmãs, não quisemos mais carregar a culpa de nada fazer por nossos meninos e meninas. Buscamos caminhos de paz para encontrar justiça e encontramos engano, e encontramos prisão, e encontramos golpes, e encontramos morte; encontramos sempre dor e pena. Já não pudemos mais, meninos e meninas de Jalisco, era tanta a dor e a pena. E então tivemos que chegar a encontrar o caminho da guerra, porque que pedimos com voz não foi escutado.

(…) (…)

Por isso, meninos e meninas de Jalisco, começamos nossa guerra. Por isso a paz que queremos não é a mesma que tínhamos antes, porque não era paz, era morte e desprezo, era pena e dor, era vergonha. Por isso lhes dizemos, com respeito e carinho, meninos e meninas de Jalisco, que levantem a bandeira da paz com justiça e dignidade e façam poemas de Plegaria para una vida digna, e que busquem, acima de tudo, a justiça que é para todos igual ou para ninguém é.”

Comunicado de resposta às meninas e meninos de Jalisco que escreveram ao EZLN. (CCRI-CG do EZLN, 8/2/94 em: EZLN, 1994: 135-136)

Um dos mais importantes comunicados desse período é a apresentação de Marcos a quatro comunicados a aqueles quatro órgãos de imprensa de 20 de janeiro, publicada em 25 de janeiro. Começava com uma acusação contra o Exército “federal” de estar “pressionando”, dificultando a aproximação com Camacho e o envio de comunicados à imprensa. A carta, o que é representativo dos comunicados zapatistas, marcada pelo tom poético: “os tempos se encurtam, os cercos se fecham”. Personifica os rebeldes como homens e mulheres indígenas que lutam para romper o isolamento, nesta carta apresentado como aquele imposto por um cerco militar que vai se estreitando, “aproveitando-se da trégua” com a finalidade de preparar “o golpe espetacular que torne opaco, ao fim, sua torpeza nos combates e seus atropelos à população civil”. Evoca a dramaticidade do perigo de morte que correm os novos e carismáticos personagens, em palavras comoventes: “Agora o horizonte começa a obscurecer e cada linha pode ser a última”. Por outro lado se apresenta como sensível aos sentimentos do público: “Por aqui me dou conta da angústia que provocam os pasamontañas e as ‘obscuras’ intenções da ‘dirigência’ zapatista”. Os comunicadossão para mostrar o que está além das máscaras, aliviar essas angústias de um e de outro lado, estreitar laços, gerar identificação. E uma das primeiras características do EZLN ‘reveladas’ na carta se refere a anunciação de um possível fracasso do Exército: mesmo que consiga ter sucesso em dar o “golpe espetacular” para matar ou prender os líderes, “nada mudará no fundamental, a sucessão de mandos e a onipresença dos Comitês Clandestinos Revolucionários Indígenas acabarão por levantar-se de qualquer golpe, por espetacular e contundente que pareça”. Marcos afirmava a existência de uma democracia interna do EZLN, razão da sua consistência, e que faria com que não fosse possível acabar com ele apenas cortando-se a cabeça. Com relação à nação, Marcos dizia que o EZLN não se colocava como uma vanguarda, mas que pretendia apenas se unir com outras forças no caminho da “justiça, liberdade e democracia”. Sobre a luta armada, a posição era ambígua. O desejo de paz combinado com a sempre possível necessidade da guerra. E no lugar do proletariado, ou talvez até do campesinato indígena, Marcos se referia a um novo agente de transformação fundamental: “a sociedade civil”. Neste comunicado se referia a ela como responsável pela realização do diálogo97 (EZLN, 1994: 95-98).

“(…)

Tenho a honra de ter como meus superiores os melhores homens e mulheres das etnias tzeltal, tzotzil, chol, tojolabal, mam e zoque. Com eles vivi por mais de 10 anos e me orgulho de obedecê-los e servi-los com minhas armas e minha alma. Têm me ensinado mais do que agora ensinam ao país e ao mundo inteiro. Eles são meus comandantes e os seguirei pelas rotas que elejam. Eles são a direção coletiva e democrática do EZLN, sua aceitação do diálogo é verdadeira como verdadeiro seu coração de luta e verdadeira sua desconfiança de serem enganados denovo.

O EZLN não tem nem o desejo nem a capacidade de aglutinar em torno ao seu projeto e seu caminho aos mexicanos todos. Mas tem a capacidade e o desejo de somar sua força à força nacional que anime o nosso país pelo caminho de justiça, democracia e liberdade que nós queremos.

Se tivermos que escolher entre caminhos, sempre escolheremos o da dignidade. Se encontramos uma paz digna, seguiremos o caminho da paz digna. Se encontrarmos a guerra digna, empunharemos as nossas armas para encontrá-la. Se encontrarmos uma vida digna, seguiremos vivendo. Se, pelo contrário, a dignidade significa morte então iremos, sem duvidá-lo, a encontrá-la.

O que o EZLN busca para os indígenas de Chiapas deve ser buscado por toda organização honesta em todo o país para todos os mexicanos. O que o EZLN busca com as armas deve ser buscado por toda organização honesta com diferentes formas de luta.

Não tomaremos o país como refém. Não queremos e nem podemos impor à sociedade civil mexicana nossa idéia pela força de nossas armas, como faz o atual governo que impõe com a força das suas armas seu projeto de país. Não impediremos o processo eleitoral vindouro.

(…)

Nós pensamos que a mudança revolucionária no México não será produto da ação em um único sentido. Quer dizer, não será, em sentido estrito, uma revolução armada ou uma revolução pacífica. Será, primordialmente, uma revolução que resulte da luta em várias frentes sociais, com muitos métodos, sob diferentes formas sociais, com graus diversos de compromisso e participação. E seu resultado será, não o de um partido, organização ou aliança de organizações triunfante com sua proposta social específica, senão uma sorte de espaço democrático de resolução da confrontação entre diversas propostas políticas. Este espaço democrático de resolução terá três premissas fundamentais que são inseparáveis, já, historicamente: a democracia para decidir a proposta social dominante, a liberdade para subscrever uma ou outra proposta e a justiça a que todas as propostas deverão cingir-se. A mudança revolucionária no México não seguirá um calendário estrito, poderá ser um furacão que estala depois de um tempo de acumulação, ou uma série de batalhas sociais que, paulatinamente, vão derrotando as forças que lhes contrapõem. A mudança revolucionária no México não será sob uma direção única com uma única agrupação homogênea e um caudilho que a guie, mas uma pluralidade com dominantes que mudam mas giram sobre um ponto comum: o tríptico de democracia, liberdade e justiça sobre o que será o novo México ou não será.

A paz social só será se é justa e digna para todos.

O processo de diálogo para a paz vem de uma determinante fundamental, não da vontade política do governo federal, não de nossa suposta força político-militar (que para a maioria segue sendo um mistério), senão da ação firme do que chamam sociedade civil mexicana. Desta mesma ação da sociedade civil mexicana, e não da vontade do governoou da força de nossos fuzis, sairá a possibilidade real de uma mudança democrática no México.

(…)”

(Marcos, 20/01/94 em: EZLN, 1994: 95-98).

O EZLN demonstrava seguir o princípio segundo o qual os meios determinam os fins (em contraposição ao famoso “os fins justificam os meios”), ao colocar a democracia como valor que orienta a sua própria organização política, bem como a ampla aliança que pretendia formar sem no entanto ambicionar o poder ou a vanguarda de um processo de transformações. Assim o EZLN se afinava com a diversidade ou fragmentação característica dos novos movimentos sociais independentes que amadureciam às margens do sistema corporativo em decomposição. E anunciava também a concepção de que as estratégias e formas de organização dependem dos diferentes contextos em que cada movimento surge e amadurece, como num comunicado do CCRI-CG dirigido ao povo mexicano, “às pessoas e organizações honestas e independentes”, e aos povos e governos do mundo também de 20 de janeiro e publicado no dia 25: “De fato, nós nos organizamos assim porque é a única forma que nos deixaram. O EZLN saúda o desenvolvimento honesto de todas as organizações independentes e progressistas que lutam pela liberdade, a democracia e a justiça para a pátria toda. Há e haverá outras organizações revolucionárias. Há e haverá outros exércitos populares. Nós não pretendemos ser a vanguarda histórica, una, única e verdadeira” (EZLN, 1994: 103). Os zapatistas procuravam, porém, unir esses movimentos num processo de transformação global da nação, propondo como plano universal aglutinador o tríptico da “democracia, liberdade e justiça”. Universal feito não de um projeto político, filosófico e/ou científico, mas de valores. Algo muito vagamente formulado, mas justamente por isso capaz de cumprir o papel simbólico de denominador comum gerador de coesão para os diferentes sujeitos da transformação.

No dia 30 de janeiro foi publicado outro belo comunicado, datado de 26 de janeiro de 1994 e dirigido a alguns órgãos e pessoas da imprensa, em que Marcos inaugurou o uso da crônica cotidiana em seus textos. Comentando de maneira bem humorada sobre as diversas reações que haviam suscitado entre os indígenas a revisão de alguns periódicos, enquanto se reunia o CCRI, apresentava um EZLN de carne e osso, e ligado às modernas causas das minorias, como o feminismo e a luta contra o racismo: Javier é um tzotzil que, indignado com o espancamento de militantes do PRD no estado do México, expressava o desejo de chamar os policiais responsáveis para ir a Chiapas brigar com eles “se são homens de verdade”. Ángel, um tzeltal, tecia comentários inconformados com as idéias de um editor que afirmava ser impossível que indígenas tivessem se preparado tão bem e que tivessem se levantado com um plano (EZLN, 1994: 106-110). Exercendo uma forte atração nas feministas, o EZLN já havia lançado as leis revolucionárias de mulheres no dia primeiro. Agora Marcos contava mais sobre isso:

“Suzana, tzotzil, está aborrecida. Há pouco zombavam dela porque, dizem os demais do CCRI, ela teve a culpa do primeiro levante do EZLN, em março de 1993. ‘Estou brava’, me diz. Eu, enquanto averiguo do que se trata, me protejo atrás de uma pedra. ‘Os companheiros dizem que por minha culpa se levantaram os zapatistas no ano passado’. Eu começo a me aproximar cauteloso. Depois de um momento descubro do que se trata: Em março de 1993 os companheiros discutiam o que depois seriam as ‘Leis Revolucionárias’. A Suzana coube percorrer dezenas de comunidades para falar com os grupos de mulheres e tirar assim, do seu pensamento, a ‘Lei de Mulheres’. Quando se reuniu o CCRI para votar as leis, foram passando uma a uma as comissões de justiça, lei agrária, impostos de guerra, direitos e obrigações dos povos em luta, e a das mulheres. A Suzana coube ler as propostas que havia juntado do pensamento de milhares de mulheres indígenas. Começou a ler e, conforme avançava na leitura, a assembléia do CCRI se notava cada vez mais e mais inquieta. Escutavam-se rumores e comentários. Em chol, tzeltal, tzotzil, tojolabal, mam, zoque e ‘castilla’ [castelhano], os comentários saltavam de um lado e outro. Suzana não se arredou e seguiu investindo contra tudo e contra todos: ‘Queremos que não nos obriguem a casar-nos com o que não queremos. Queremos ter os filhos que queiramos e possamos cuidar. Queremos o direito a ter cargo na comunidade. Queremos o direito a dizer a nossa palavra e que se respeite. Queremos o direito a estudar e até ser choferes’. Assim seguiu até que terminou. No final deixou um silêncio pesado. As ‘leis de mulheres’ que acabava de ler Suzana significavam, para as comunidades indígenas, uma verdadeira revolução. As responsáveis mulheres estavam todavía recebendo a tradução, em seus dialetos, do dito por Suzana. Os varões se olhavam uns a outros, nervosos, inquietos. Prontamente, quase simultaneamente, as tradutoras acabaram e, num movimento que se foi agregando, as companheiras começaram a aplaudir e a falar entre elas. Nem é preciso dizer que as ‘leis de mulheres’ foram aprovadas por unanimidade. Algum responsável tzeltal comentou: ‘o bom é que minha mulher não entende espanhol, que senão…’ Uma oficial insurgente, tzotzil, e com grau de major de infantaria, vai em cima dele: ‘Te chingaste [se fudeu] porque vamos traduzi-las em todos os dialetos’. O companheiro baixa os olhos. As responsáveis mulheres estão cantando, os varões coçam as cabeças. Eu, prudentemente, declaro um recesso. Essa é a história que, segundo me diz Suzana agora, saiu quando alguém do CCRI leu uma nota jornalística que assinalava que a prova de que o EZLN não era autenticamente indígena é que não podia ser que os indígenas tivessem se posto de acordo em começar seu levante no primeiro de janeiro. Alguém, gozando, disse que não foi o primeiro levante, que o primeiro foi em março de 1993. Gozaram da Suzana e esta se retirou com um contundente vayanse a la chingada [vão se foder] e algo mais em tzotzil que niguém se atreveu a traduzir. Essa é averdade: o primeiro levante do EZLN foi em março de 1993 e foi encabeçado pelas mulheres zapatistas. Não houve baixas e ganharam. Coisas dessas terras” (EZLN, 1994: 108-109).

Levantando as causas de minorias como os indígenas e as mulheres, articulavam essas causas na luta mais ampla por “democracia, liberdade e justiça”, tríptico que era repetido com insistência nos comunicados. Mas não havia, inicialmente, menções às causas dos homossexuais e dos militantes verdes. No caso dos homossexuais, isso se explica em parte pela ausência de homofobia entre os indígenas relatada por Marcos, e talvez também pelo fato de os homossexuais não terem sido um setor importante para a expansão do EZLN, como foram as mulheres. Praticamente não há dados disponíveis para confirmar a segunda hipótese. Quanto à primeira, temos as afirmações de Marcos em Yo, Marcos (1994: 36): “a homossexualidade não é penada [punida], o que eu sei é que riem dela, gozam. Mas que prendam, multem ou castrem, não”98. E também na entrevista a Le Bot (1997: 354), onde Marcos repetia sua afirmação anterior, completando que se havia gozação não havia perseguição, e que logo no começo os indígenas souberam que movimentos gays estavam mandando ajuda, e que assim que souberam do que se tratava (não eram movimentos conhecidos dos indígenas), o que repararam então foi nas semelhanças entre estes movimentos e o EZLN. Segundo Marcos os indígenas então disseram que “os tratam igual a nós, têm que se esconder para ser o que são. Que nem nós tínhamos que nos esconder para ser zapatistas”. Nos comunicados, a questão homossexual apareceu na carta aos órgãos de imprensa assinada por Marcos no dia 28 de maio, quando após o anúncio de várias supostas identidades ‘descobertas’ de Marcos, finalmente se disse que ele era um homossexual:

“PS: MAJORITÁRIO QUE SE DISFARÇA DE MINORIA INTOLERADA

A tudo isto de se Marcos é homossexual: Marcos é gay em San Francisco, negro na África do Sul, asiático na Europa, chicano em San Isidoro, anarquista na Espanha, palestino em Israel, indígena nas ruas de San Cristóbal, chavo banda99 em Neza, rockeiro na CU [campus da UNAM], judeu na Alemanha, ombudsman na Sedena [ministério da Defesa], feminista nos partidos políticos, comunista na pós guerra fria, preso em Cintalapa, pacifista na Bósnia, mapuche nos Andes, professor na CNTE, artista sem galeria nem portifólios, dona de casa num sábado à noite em qualquer bairro em qualquer cidade de qualquer México, guerrilheiro no México do fim do século XX, grevista na CTM, repórter de notas de relleno en interiores100, machista no movimento feminista, mulher sozinha no metrô às 10 p.m., aposentado durante um ato no Zócalo [praça central], camponês sem terra, editor marginal, trabalhador desempregado, médico sem praça, estudante inconformado, dissidente no neoliberalismo, escritor sem livro e nem leitores, e, seguramente, zapatista no sudoeste mexicano. Enfim, Marcos é um ser humano, qualquer, neste mundo. Marcos é todas as minorias intoleradas, oprimidas, resistindo, explodindo, dizendo já basta! Todas as minorias na hora de falar, e maiorias na hora de calar e agüentar. Todos os intolerados procurando uma palavra, sua palavra, o que devolva a maioria aos eternos fragmentados, nós. Tudo o que incomoda o poder e às boas consciências, isso é Marcos.

De nada senhores da PGR [Procuradoria Geral da República], estou para lhes servir… com chumbo” (EZLN, 1994: 243).

No comunicado do CCRI-CG (EZLN, 1994: 118-120) assinada no dia primeiro de fevereiro em resposta a uma carta enviada pelo Conselho Guerrerense 500 anos de Resistência Indígena, dos índios amusgoz, mixtecos, náhuatls e tlapanecos, vinha mais claramente à tona o estilo poético do discurso zapatista. Estilo que deita raízes nas formas de expressão e de visão de mundo indígenas que, segundo disseram líderes indígenas do movimento mazateco (pesquisa de campo, Mazatlán Villa de Flores, 1997) falam a “língua do coração”. Como sugere este comunicado, isto parece ser uma característica comum a várias etnias, que lembra os registros escritos das lendas e da tradição oral indígena. E, além disso, pela primeira vez o EZLN era apresentado como nascido da palavra dos mais velhos e sábios de seus povos, senão dos vivos ao menos dos já mortos. Palavra que renasce com o renascimento da esperança, e que renascendo religa todas as pessoas e as lança para além da natureza. Isso pode ser interpretado como uma forma bastante autêntica de inscrição do EZLN no marco das tradições indígenas, já que nelas são justamente os mais velhos e mais sábios os seus guardiões, os responsáveis pela sua transmissão e os detentores do poderes político e religioso. Como vimos em outro capítulo, estas prerrogativas vinham sendo corroídas há décadas pela penetração das comunidades indígenas pelo PRI. Além disso, vimos que militantes de origem urbana e jovens e mulheres indígenas tiveram um papel importante na formação do EZLN. Todavia, se expressando assim o EZLN criava o seu próprio mito de origem, filiando-se às tradições e renovando-as em um novo contexto101. E se pouco se sabia sobre as origens históricas do EZLN na época, isso apenas colaborava para dar mais força ao mito.

“Nosso coração se fortalece com as suas palavras que vêm de tão longe, que vêm toda a história de opressão, morte e miséria que os maus governantes têm ditado para nossos povos e nossas gentes. Nosso coração se faz grande com sua mensagem que chega até nós cruzando montes e rios, cidades e estradas, desconfianças e discriminações.

Em nosso nome, em nome dos senhores, em nome de todos os indígenas mexicanos, em nome de todos os homens bons e de bom caminho, recebemos nós as palavras dos senhores, irmãos, irmãos de ontem na exploração e na miséria, irmãos hoje e amanhã na luta digna e verdadeira.

Hoje completa-se um mês desde a primeira vez que a luz zapatista iluminou a noite das nossas gentes.

Em nosso coração havia tanta dor, tanta era nossa morte e pena, que já não cabia, irmãos, neste mundo que nossos avós nos deram para seguir vivendo e lutando. Tão grande era a dor e a pena que já não cabia no coração de uns quantos, e foi transbordando e foi enchendo outros corações de dor e de pena, e se encheram os corações dos mais velhos e sábios de nossos povos, e se encheram os corações de homens e mulheres jovens, valentes todos eles, e se encheram os corações das crianças, até dos más pequeños [mais novos], e se encheram de pena e dor os corações de animais e plantas, se encheu o coração das pedras, e todo nosso mundo se encheu de pena e dor, e tinham pena e dor o vento e o sol, e a terra tinha pena e dor. Tudo era pena e dor, tudo era silêncio.

Então esta dor que nos unia nos fez falar, e reconhecemos que em nossas palavras havia verdade, soubemos que não apenas pena e dor habitavam a nossa língua, descobrimos que há esperança todavia em nossos peitos. Falamos com nós mesmos, olhamos dentro de nós e olhamos nossa história: vimos nossos pais mais velhos com a fúria nas mãos, vimos que nem tudo nos havia sido tirado, que tínhamos o mais valioso, o que nos fazia viver, o que fazia com que nossos passos se levantassem sobre plantas e animais, o que fazia com que a pedra estivesse sob nossos pés, e vimos, irmãos, que era DIGNIDADE o que tínhamos, e vimos que era grande a vergonha de tê-la esquecido, e vimos que era boa a DIGNIDADE para que os homens fossem outra vez homens, e voltou a dignidade a habitar em nossos corações, e estávamos novos todavia, e os mortos, nossos mortos, viram que éramos novos todavia e nos chamaram outra vez, à dignidade, à luta.

E então nosso coração já não era só pena e dor, chegou a coragem, a valentia veio a nós pela boca dos nossos mais velhos já mortos, mas vivos outra vez em nossa dignidade que eles nos davam. E vimos assim que é ruim morrer de pena e dor, vimos que é ruim morrer sem ter lutado, vimos que tínhamos que ganhar uma morte digna para que todos vivessem, um dia, com bem e razão. Então nossas mãos buscaram a liberdade e a justiça, então nossas mãos vazias de esperanças se encheram de fogo para pedir e gritar nossas ânsias, nossa luta, então nos levantamos a caminhar denovo, nosso passo se fez firme outra vez, nossas mãos e corações estavam armados. ‘Por todos!’, diz nosso coração, não para uns apenas, não para os menos [a minoria]. ‘Por todos!’, diz nosso passo. Por todos!, grita nosso sangue derramado, florescendo nas ruas das cidades onde governam a mentira e o despojo.

Deixamos para trás nossas terras, nossas casas estão longe, deixamos tudo e todos, nos tiramos a pele para nos vestir de guerra e morte, para viver morremos. Nada para nós, para todos tudo, o que é nosso mesmo e de nossos filhos. Tudo deixamos todos nós.

Agora nos querem deixar sós irmãos, querem que nossa morte seja inútil, querem que o nosso sangue seja esquecido entre as pedras e o esterco, querem que a nossa voz se apague, querem que o nosso passo volte a ser distante.

Não nos abandonem irmãos, tomem o nosso sangue de alimento, encham o coração dos senhores e de todos os homens bons dessas terras, indígenas ou não indígenas, homens e mulheres, anciãos e crianças. Não nos deixem sós. Que nem tudo seja em vão.

Que a voz do sangue que nos uniu quando a terra e os céus não eram propriedade dos grandes senhores nos chame outra vez, que nossos corações juntem seus passos, que os poderosos tremam, que se alegre o coração do pequeno e miserável, que tenham vida os mortos de sempre.

Não nos abandonem, não nos deixem morrer sós, não deixem nossa luta no vazio dos grandes senhores.

Irmãos, que nosso caminho seja o mesmo para todos: liberdade, democracia,

justiça” (EZLN, 1994: 118-120).

A forma mística de apresentação do EZLN não deixava de mesclar elementos ocidentais, em particular da tradição revolucionária. Palavras como liberdade e democracia são de origem ocidental. Mas a liberdade na tradição iluminista é o livre-arbítrio que, tornando possível a razão, permite a ruptura com o passado e com a natureza. E aqui a emancipação humana, conceito ocidental, começa a ser apresentada como um renascer dos antepassados. O tempo linear ocidental se mescla com o tempo cíclico atribuído à essas culturas indígenas. A liberdade zapatista não é ruptura, mas ressignificação. Dor, morte, esquecimento e silêncio, dão lugar à esperança, à vida, à memória e à palavra. E o fio que liga passado e futuro, iniciando um novo ciclo de revolta, é a dignidade, através da qual os mortos vivem. Os mortos de sempre. Os mortos do passado revivem quando os mortos de hoje, os mortos vivos (expressão que aparece em outros textos), vivem ao recomeçar a caminhada de lutas. E assim se dá a emancipação humana. Não através da razão, mas através da dignidade que se expressa através da luta.

Neste, como em todos os comunicados, são sublinhados atributos morais aos que lutam: são bons, são honestos, se expressam através da palavra verdadeira, ao contrário do governo e os grandes senhores que são maus, e mentem. Se na vida política comunitária a política não se separa da ética e da religião, isso também acontece, em parte, nos discursos zapatistas, o que resultava atraente diante das demandas contemporâneas da sociedade por novas formas de se fazer política, sem corrupção, com ética, sem manipulação, com democracia, no contexto de um regime em crise de legitimidade. Sobre o caráter predominantemente moral dos comunicados vale destacar a passagem em que Marcos, em uma carta de treze de janeiro, afirma que o que distingue os homens das coisas e dos animais é a dignidade, quando na versão clássica ocidental essa distinção se faz pela posse da razão: “(…) Esqueceram que a dignidade humana não é só patrimônio dos que têm resolvidas suas condições elementares de vida, também os que nada têm de material possuem o que nos faz diferentes de coisas e animais: a dignidade. (…)” (EZLN, 1994: 71).

Como se pode notar também, há em parte continuidade em relação ao animismo dessas culturas indígenas e em parte uma nova concepção de emancipação do homem, em que este é separado dos animais e das coisas não pela posse da razão, mas graças à dignidade, aos valores, à parte resgatada dos valores tradicionais indígenas, e também dos valores tradicionais da nação mexicana, como revela por exemplo a Primeira Declaração. Esta mescla de continuidade e ruptura, de elementos tradicionais indígenas e ocidentais, vale também para o conceito de democracia. Esta palavra, como afirma um comunicado do CCRI (em: EZLN, 1994: 175-177) assinado em 26 de fevereiro, “veio de longe para que este governo fosse nomeado, e esta palavra nomeou ‘democracia’ este caminho nosso que andava antes que caminhassem as palavras”. O CCRI se referia ao princípio do “mandar obedecendo”, que já vimos em outro capítulo, segundo o qual a autoridade política se constitui com legitimidade apenas enquanto o chefe ‘obedece’ a aqueles que o nomearam. Na versão tradicional, a autoridade dependia não apenas da idade, mas também do prestígio que era ganho na comunidade mediante a prestação de serviços, o que era ritualizado nos serviços religiosos. Este princípio, combinado não apenas com a palavra ocidental ‘democracia’, estava também ressignificado. Não se tratava de restaurar a política comunitária tradicional, mas resgatar dela a valorização da coletividade, da vontade majoritária, e iniciar a formulação de projetos políticos para as comunidades indígenas e para o país. No mesmo comunicado o CCRI atribuía aos anciãos as seguintes palavras:

“’É razão e vontade dos homens e mulheres bons buscar e encontrar a maneira melhor de governar e governar-se, o que é bom para a maioria para todos é bom. Mas que não se calem as vozes da minoria, senão que sigam em seu lugar, esperando que o pensamento e o coração se façam comum no que é a vontade da maioria e parecer [opinião] da minoria, assim os povos dos homens dos homens e mulheres verdadeiros crescem para dentro e se fazem grandes e não há força de fora que os rompa ou leve seus passos a outro caminho.

Foi nosso caminho sempre que a vontade da maioria se fizesse comum no coração de homens e mulheres de mando. Era essa vontade majoritária em que devia andar o passo do que mandava. Se se apartava seu andar do que era razão da gente, o coração que mandava devia caminhar por outro que obedecesse. Assim nasceu nossa força na montanha, o que manda obedece se é verdadeiro, o que obedece manda pelo coração comum dos homens e mulheres verdadeiros (…)’” (EZLN, 1994: 175-176).

E este comunicado continua com a palavra “dos que de noite andam”, “os sem rosto”, “os que são montanha”, os zapatistas, que então disseram que nas terras mexicanas manda a minoria sobre a maioria. Por isso, diziam, chegaram ao “Já Basta!” do dia primeiro, para levar a democracia ao país. Demandavam então, e este comunicado assinado no período em que já estava ocorrendo o diálogo na Catedral, a convocação de “eleições verdadeiramente livres e democráticas”. A renúncia dos executivos federal e estaduais, sem legitimidade e eleitos através de fraudes, e a formação de um governo de transição pelos respectivos poderes legislativos, sem o que não seria possível ocorrerem eleições livres e democráticas. E, finalmente, a fiscalização do processo eleitoral por cidadãos e grupos de cidadãos sem militância partidária.

Para os seus próprios territórios, o EZLN tinha também um projeto político híbrido de influências tradicionais indígenas e ocidentais, e que estaria na raiz da sua demanda por autonomia, anos depois convertida em ponto nodal das disputas com o governo. Num comunicado ao Frente Cívico de Mastepec (Chiapas), assinado pelo CCRI (EZLN, 1994: 131) em 8 de fevereiro, dizia-se que todos os prefeitos deveriam renunciar, e em seu lugar assumiriam conselhos municipais eleitos democraticamente. “O governo coletivo é melhor que o governo unipessoal, mas deve ser democrático. Se o governo estatal substitui o prefeito imposto por um conselho igualmente imposto, então o conselho antidemocrático deve cair também”.

A garantia de processos eleitorais, da liberdade de escolha, de direitos iguais, a garantia de voz às minorias, remetem à tradição democrática ocidental. Até porque a política comunitária tradicional não combinava as noções de individualidade com coletivismo, diversidade com universalismo, o privado com o público, como ocorre no debate democrático contemporâneo. Mais bem prevalecia o coletivo sobre o indivíduo, a maioria sobre a minoria, o que ajuda a explicar que dissidências políticas e religiosas levem freqüentemente à divisão das comunidades indígenas em novas unidades políticas e sociais. Mesmo assim, o EZLN entrava no debate democrático contemporâneo trazendo a contribuição das culturas indígenas, ressignificando aquelas tensões entre diversidade e universalismo.

Mas como pode o EZLN falar em democracia e ao mesmo tempo falar em bons e maus, como pode valorizar a diversidade e ao mesmo tempo se dizer portador da palavra verdadeira? No contexto dos grandes centros urbanos são idéias que remetem à valorização romântica da sinceridade, ou da recuperação de valores éticos para a política. O significado dessas expressões, todavia, pode ser buscado também no contexto das culturas indígenas. Lenkersdorf (1996: 13, 22-23), que buscou compreender a cosmovisão indígena através do estudo da língua, procura demonstrar certas predisposições culturais que reforçam a dimensão pluralista da política zapatista. Ele focou a língua tojolabal. “Tojol” pode ser traduzido por “palavra,

em outro capítulo, segundo o qual a autoridade política se constitui com legitimidade apenas enquanto o chefe ‘obedece’ a aqueles que o nomearam. Na versão tradicional, a autoridade dependia não apenas da idade, mas também do prestígio que era ganho na comunidade mediante a prestação de serviços, o que era ritualizado nos serviços religiosos. Este princípio, combinado não apenas com a palavra ocidental ‘democracia’, estava também ressignificado. Não se tratava de restaurar a política comunitária tradicional, mas resgatar dela a valorização da coletividade, da vontade majoritária, e iniciar a formulação de projetos políticos para as comunidades indígenas e para o país. No mesmo comunicado o CCRI atribuía aos anciãos as seguintes palavras:

“’É razão e vontade dos homens e mulheres bons buscar e encontrar a maneira melhor de governar e governar-se, o que é bom para a maioria para todos é bom. Mas que não se calem as vozes da minoria, senão que sigam em seu lugar, esperando que o pensamento e o coração se façam comum no que é a vontade da maioria e parecer [opinião] da minoria, assim os povos dos homens dos homens e mulheres verdadeiros crescem para dentro e se fazem grandes e não há força de fora que os rompa ou leve seus passos a outro caminho.

Foi nosso caminho sempre que a vontade da maioria se fizesse comum no coração de homens e mulheres de mando. Era essa vontade majoritária em que devia andar o passo do que mandava. Se se apartava seu andar do que era razão da gente, o coração que mandava devia caminhar por outro que obedecesse. Assim nasceu nossa força na montanha, o que manda obedece se é verdadeiro, o que obedece manda pelo coração comum dos homens e mulheres verdadeiros (…)’” (EZLN, 1994: 175-176).

E este comunicado continua com a palavra “dos que de noite andam”, “os sem rosto”, “os que são montanha”, os zapatistas, que então disseram que nas terras mexicanas manda a minoria sobre a maioria. Por isso, diziam, chegaram ao “Já Basta!” do dia primeiro, para levar a democracia ao país. Demandavam então, e este comunicado assinado no período em que já estava ocorrendo o diálogo na Catedral, a convocação de “eleições verdadeiramente livres e democráticas”. A renúncia dos executivos federal e estaduais, sem legitimidade e eleitos através de fraudes, e a formação de um governo de transição pelos respectivos poderes legislativos, sem o que não seria possível ocorrerem eleições livres e democráticas. E, finalmente, a fiscalização do processo eleitoral por cidadãos e grupos de cidadãos sem militância partidária.

Para os seus próprios territórios, o EZLN tinha também um projeto político híbrido de influências tradicionais indígenas e ocidentais, e que estaria na raiz da sua demanda por autonomia, anos depois convertida em ponto nodal das disputas com o governo. Num comunicado ao Frente Cívico de Mastepec (Chiapas), assinado pelo CCRI (EZLN, 1994: 131) em 8 de fevereiro, dizia-se que todos os prefeitos deveriam renunciar, e em seu lugar assumiriam conselhos municipais eleitos democraticamente. “O governo coletivo é melhor que o governo unipessoal, mas deve ser democrático. Se o governo estatal substitui o prefeito imposto por um conselho igualmente imposto, então o conselho antidemocrático deve cair também”.

A garantia de processos eleitorais, da liberdade de escolha, de direitos iguais, a garantia de voz às minorias, remetem à tradição democrática ocidental. Até porque a política comunitária tradicional não combinava as noções de individualidade com coletivismo, diversidade com universalismo, o privado com o público, como ocorre no debate democrático contemporâneo. Mais bem prevalecia o coletivo sobre o indivíduo, a maioria sobre a minoria, o que ajuda a explicar que dissidências políticas e religiosas levem freqüentemente à divisão das comunidades indígenas em novas unidades políticas e sociais. Mesmo assim, o EZLN entrava no debate democrático contemporâneo trazendo a contribuição das culturas indígenas, ressignificando aquelas tensões entre diversidade e universalismo.

Mas como pode o EZLN falar em democracia e ao mesmo tempo falar em bons e maus, como pode valorizar a diversidade e ao mesmo tempo se dizer portador da palavra verdadeira? No contexto dos grandes centros urbanos são idéias que remetem à valorização romântica da sinceridade, ou da recuperação de valores éticos para a política. O significado dessas expressões, todavia, pode ser buscado também no contexto das culturas indígenas. Lenkersdorf (1996: 13, 22-23), que buscou compreender a cosmovisão indígena através do estudo da língua, procura demonstrar certas predisposições culturais que reforçam a dimensão pluralista da política zapatista. Ele focou a língua tojolabal. “Tojol” pode ser traduzido por “palavra, língua, idioma”, e “`ab’al” por “verdadeira, autêntica, genuína”. Mas a palavra “verdadeira” não tem o mesmo sentido que nas línguas ocidentais. Uma tojol tortilla (pão a base de milho típico do México), por exemplo, é aquela que acabou de sair do comal (disco de metal onde elas são feitas), é “uma tortilla como deve ser: suave,saborosa, apetitosa, cheirosa”. Aqueles que se designam tojol winik são os homens verdadeiros. Mas isso não implica num fechamento a outras culturas, pois tojol não é uma propriedade disponível ou estática. Aquilo que é tojol não o é o tempo todo, mas apenas no momento em que cumpre a sua “vocação”, quando o cumpre. No caso dos homens verdadeiros, “tojol assinala um desafio em um tempo determinado”. Não se nasce tojol, torna-se tojol cada vez que o desafio é percebido e há um comportamento em conseqüência disso. “É o comportamento de retidão que se pode conseguir e que se pode perder. (…) Tojol representa um caminho, e não uma possessão ou propriedade. Oferece-se a todos a condição de excluir a soberba que implica no fechamento aos outros.” Outro aspecto que vale ressaltar é o caráter “intersubjetivo” da língua tojolabal. Lenkersdorf (1996) sustenta que, enquanto no espanhol, por exemplo, se diz “eu falo a vocês”, no tojolabal se diz “eu falo, vocês escutam”. Ou seja, é uma língua cuja gramática não possui objetos, ela é intersubjetiva, em que os interlocutores se reconhecem sempre como sujeitos.

As armas e a clandestinidade dos zapatistas eram a expressão mais vivaz do autoritarismo e das injustiças que pretendiam combater. E guardavam um potencial poético que Marcos soube explorar de maneira original e eloqüente. Em suas tintas os zapatistas eram “os menores de todos os mexicanos”, “os sem rosto”, “os que são montanha”, “homens e mulheres sombra”, “os sem nome”, “os que para se fazerem escutar têm que morrer”, “os sempre esquecidos das idéias revolucionárias e dos partidos políticos”, “os ausentes da história”, “os presentes sempre na miséria”, “os mudos”, “os eternos infantes”, “os receptores do desprezo”, “os incapacitados”, “os abandonados”, “os mortos sem cifras”, “os instigadores da ternura”, “os profissionais da esperança”, “os do digno rosto negado”, “os pura raiva”, “os puro fogo”, “os da madrugada”, “os para todos tudo, nada para nós”, “os sem rosto como as nuvens” (EZLN, 1994). Numa carta para outra criança eles eram “os que deixam tudo. Até a vida mesma, para que outros (crianças como você e que não são como você) possam levantar-se a cada manhã sem palavras que calar e sem máscaras para enfrentar o mundo” (EZLN, 1994: 191). Belausteguigoitia (1996: 402-406), da Universidade de Berkeley, ao procurar entender “o caleidoscópio de discursos produzidos na rebelião de Chiapas”102, afirma que “mais que palavras me encontro com imagens (…) ressalta a diversidade, não há sobreentendidos, não há palavras, só imagens”. Para ela o EZLN passou a fazer “uso das mais modernas tecnologias e das estratégias mais sofisticadas da performance”. Para ventilar a realidade indígena foram necessárias duas violências: a guerra e montar uma encenação. Ela cita Carlos Monsiváis, que diz que a rebelião tem tido o caráter de espetáculo. Como as mulheres dos anos sessenta e setenta, diz a autora, que idealizaram o espetáculo por falta de palavras, “não por não as encontrarem, mas porque elas não existiam”, pois o feminino vinha colado a códigos em que ele é invisível e inaudível. Para Monsiváis o sentido cênico deslocou a crítica. Para a autora não houve deslocamento da crítica, e sim a inauguração de um tipo novo de crítica. “Quando as mulheres ficaram sem palavras, quando era extraordinariamente difícil explicar e definir a diferença, a textura interna de nossos vazios, a dimensão do nosso silêncio, a performance deu possibilidades de representação, de exibição do que dificilmente podia, por um lado, ser articulado, e por outro ser verdadeiramente ouvido. O espetáculo se converte assim em estratégia onde a palavra está expropriada ou não dá o espaço.” O EZLN e Marcos tinham adotado uma estratégia feminina, embora as mulheres indígenas permanecessem nos bastidores, ainda invisíveis, segundo a autora. Ela escrevia em 1996, época em que justamente as mulheres zapatistas começavam a aparecer mais por conta própria, como veremos nos próximos capítulos.

Para desenvolver sua análise, Belausteguigoitia elege duas características da cena zapatista: Os post scripts103 dos comunicados e a questão das máscaras, ligada ao pasamontañas. O post script é um dos recursos estilísticos usados por Marcos para elaborar com irreverência as suas cartas, chegando algumas vezes a sobrepujar em tamanho e importância o corpo principal das mensagens. Podemos interpretar nisso a evocação das virtudes infantis da ingenuidade e da irreverência, que começa pelaprópria brincadeira comum aos jovens e às crianças de repetir os PSs ad infinitum. Interesse de Marcos no universo infantil e jovem que remete à inclusão das faixas etárias mais baixas das comunidades nos processos decisórios comunitários e na hierarquia militar do EZLN, e também à presença marcante de jovens e crianças entre os personagens e destinatários de suas cartas. Não por acaso, a primeira vez que Marcos escreveu um PS mais chamativo e irreverente foi em resposta aos estudantes da cidade do México, junto a um comunicado do CCRI a eles e assinado no dia 6 de fevereiro. Belausteguigoitia (1996: 412-415) ajuda a completar essa interpretação, seguindo por um outro caminho. Para ela os posts scripts são exemplares da estratégia espetacular e feminina do EZLN. A autora afirma que a escrita feminina começou a ser valorizada quando houve o resgate das cartas e diários que começou nos anos sessenta. “As cartas não necessitam de passaporte para circular, tão pouco fazem evidente, à primeira vista, o gênero. Ambas características permitiram que a correspondência, o gênero epistolar, florescesse entre as mulheres.” A carta permite a expressão, o literário, a travessia, o conhecimento, a fantasia, a narração de suas histórias sem o risco da expropriação ou de serem silenciadas. E pode ser dividida em um corpo central e o post script: “o post script é uma performance, uma exibição do que não cabe, não pode ser acomodado, mais que abaixo no cajón104 dos restos, dos desperdícios”. É o post data, post facto, o que vem depois do dado, depois do concreto. “São traiçoeiros, exibidores, encenadores do limite da razão”. A autora ainda ressalta que são espontâneos, frescos, “o imprescindível expresso como prescindível”, o quase esquecido, o começo de uma história que começa de baixo, ou que começa ao contrário, “sempre imprudentes”. São o que escapa à força centrípeta que concentra uma idéia e procura formar a coerência do corpo central da carta, os restos expulsos, de baixo, “como os textos e a escrita das mulheres, são fragmentos marginais”. Vejamos o post script da carta enviada aos estudantes em fevereiro, que tem a peculiaridade de ser também um meta post script quando afirma que o P.S. é um disfarce para a carta:

“P.S.: sessão do sup. ‘O post script recorrente’.

P.S. ao P.S. do CEU que dizia: Para o Sup Marcos: não se preocupe, nós tomaremos o Zócalo por vocês’: eu de por sí tenho dito ao CCRI-CG que o DF [Distrito Federal] está no outro lado do mundo e os cajucos não nos dão abastos e além disso, como disse não-me-lembro-quem, os guerrilheiros que tomam zócalos tarde ou cedo se hamburguesam. (Por certo e aproveitando a viagem, revirem dois sem cebola e sem molho de tomate. Obrigado.)

P.S. ao P.S. anterior: Já que em posts scripts estamos, qual de todos os CEUs é o que nos escreve? Porque quando eu era um enfeitado jovem de 25 anos (órales! Avisa o computador da PGR para que faça as contas!) havia, no mínimo, 3 CEUs. Por fim se uniram?

P.S. ao P.S. do P.S.: No caso de que, ufa!, tomem o Zócalo, não sejam ojeras e separem um lugarzinho para ao menos vender artesanatos, porque logo posso me converter em um ‘profissional da violência’ desempregado e sempre é melhor ser um ‘profissional da violência’ subempregado (por aquilo do TLC, you know).

P.S. à ‘n’ potência: Na realidade estes posts scripts são uma carta que se disfarça de post script (por aquilo da PGR e etecéteras de lentes escuras e robustos) e, but of course, não requer resposta, nem remetente, nem destinatário (vantagens inobjetáveis dascartas disfarçadas de posts scripts).

P.S. nostálgico: Quando eu era jovem (Bueno? PGR? Aí vão mais dados) havia um espaço ligeiramente arborizado localizado, aproximadamente, entre a Biblioteca Central, a Faculdade de Ciências e Letras, a Torre de Humanidades, a avenida Insurgentes e o circuito interior da CU. Esse espaço chamávamos, por razões compreendidas pelos (as) iniciados (as), o ‘vale das paixões’, e era visitado assiduamente por elementos diversos da fauna que povoava a CU a partir das 7pm (hora em que as boas consciências tomam chocolate e as más se colocam como água para idem) procedentes das áreas de humanidades, ciências e outras (há outras?). Nessa época um cubano (Bueno? Embaixador Jones? Anote mais provas de pró-castrismo) que proferia conferências em frente ao teclado de um piano da cor da sua pele e se fazia chamar bola de neve repetia:

‘Não se pode ter consciência e coração…’

P.S. de finale fortissimo: Notaram o ar esquisitamente culto e delicado destes posts scripts? Não são dignos da nossa entrada no primeiro mundo? Não chama a atençãoque estes ‘transgressores’ se preparem também para ser competitivos no TLC?

P.S. of happy end: Ya, ya, ya vou indo… mas é que esse avião já me tem de sete meses, e a guarda, para variar, dormiu e alguém se cansa de repetir: quem vive? e eu me digo que a pátria… e vocês?

(EZLN, 1994: 129-131).

Para completar a análise das características mais marcantes que apareceram nos comunicados zapatistas deste período, vale destacar o sentido ambíguo e figurado de afirmações do EZLN que originalmente deviam ter um sentido mais literal. É o caso da declaração de que o EZ iria avançar até a capital do país. Um dos jogos interpretativos com esta afirmação é a que apareceu no P.S. que acabamos de ver, quando se comenta sobre a tomada do Zócalo, praça central das cidades, neste caso a praça mais importante da Cidade do México. Outro já tinha aparecido na carta em estilo crônica que vimos anteriormente, assinada por Marcos em 26 de janeiro, em que aparece interpretação da ida à capital como correspondente da necessidade de fazer da luta zapatista uma luta nacional. Ele conta de Pedro, um indígena chol que se aproxima dele e diz: “temos que ir ao México”. Enquanto Marcos – diz de brincadeira – começava a pensar nos preparativos de um avanço militar, Pedro começou a dizer: “Os mexicanos dizem que Chiapas é diferente das outras partes, que aqui estamos mal, mas que o resto do México está bem”, e mostrou a Marcos um artigo que dizia que a luta zapatista estava destinada ao fracasso por não ser nacional, e que não o era por ter demandas locais, indígenas (EZLN, 1994: 109-110).

“’É pobre o seu pensamento’ diz Pedro. ‘Mais pobre que nós porque nós queremos justiça, mas também liberdade e democracia. E este senhor pensa que não é pobre ainda que não possa eleger o seu governo com verdade. Têm pena de nós. Pobrezinhos.’ A ocote105 flameja entre os dois. Pedro entende, eu entendo, a noite entende… ‘Os mexicanos não entendem, temos que ir ao México’ diz Pedro (…)” (EZLN, 1994: 110).

Para além das palavras ditas e escritas, a expressão espetacular do EZLN envolvia também o florescimento de imagens e ações simbólicas e a ritualização de atos políticos. A própria indumentária dos zapatistas já suscitava a aura de mistério que nunca deixou de ser uma característica deles, despertando a curiosidade e a imaginação. Como afirma Tello (1996: 189), desde o primeiro de janeiro a maioria tinha os rostos cobertos por paliacates vermelhos (lenços cobrindo o rosto) e pasamontañas (gorros geralmente negros que cobrem todo o rosto e têm orifíciospara os olhos e boca). “A razão era clara. O EZLN, ao estalar no país, não deixou por isso a clandestinidade.” Huchim (1994: 13, 23-24) relata que no primeiro dia do ano um guerrilheiro, ao ser interrogado sobre o pasamontanãs, apenas respondeu que o usava por causa do frio que fazia. Mas esta máscara rapidamente iria se converter num dos principais símbolos do EZLN, amalgamando inúmeras interpretações. Quando colocaram a questão ao subcomandante Marcos durante a tomada de San Cristóbal, este deu já uma mostra do seu senso de humor, que iria se tornar uma das suas características públicas mais marcantes: “os que somos mais bonitos cobrimos os rostos para nos protegermos”. Depois já esboçou uma primeira interpretação política. Era para evitar personalismos, vaidades, para que ninguém fosse promovido demais. “Nós sabemos que a nossa direção é coletiva e temos que nos ater a ela”. Numa entrevista a Gianni Minà (Avilés & Minà, 1998: 182-183), anos depois, Marcos relata que a necessidade de se cobrir os rostos se deve ao fato que são um “exército que luta, mas é também civil ao mesmo tempo, porque é muito grande”. Assim “podem sair ao combate, e depois voltar às comunidades” dependendo de como caminhassem as coisas. Mas eles não imaginavam que o pasamontañas se converteria num símbolo. Achavam que o paliacate se tornaria um símbolo, pois era vermelho. Mas foi o pasamontañas, usado pelo frio que fazia, que se tornou um símbolo “que se impôs sobre nós”106. “Mais tarde ele se vinculou com o sentido indígena do uso da máscara”. Outra interpretação, colocada por Marcos em algum momento ao longo de 1994, foi a do espelho.

“O espelho em que está se vendo a nação é um espelho novo, que mais que resolver-lhe uma pergunta, lhe propõem mais perguntas que tem que resolver. O espelho do país agora é um pasamontañas, o país se pergunta o que há por trás, por que este pasamontañas. O que os leva à conclusão de que o problema não é o pasamontañas, quefinalmente nós vamos desaparecer como aparecemos, que repentinamente vamos virar fumaça e que o país vai se dar conta de que seus problemas são outros, são maiores, que tem a possibilidade de os resolver de muitas maneiras, com muitas lutas.

O que talvez agora não entenda o país, é que esse pasamontañas não quer ser o poder hegemônico. Isso o leva a desconfiar de nós (…)” (Yo, Marcos, 1994: 55).

O pasamontañas fez um enorme sucesso. Remete aos bandidos e heróis da cultura pop, e sintetiza o sentimento de exclusão política gerada pelo autoritarismo, em que o medo da perseguição política torna o anonimato atraente para os que nutrem opiniões dissidentes. Exclusão política que caminha ao lado da exclusão econômica e cultural. Para Belausteguigoitia (1996: 412-415), é mais um exemplo da apropriação zapatista de uma estratégia feminina do espetáculo, que neste caso partia de um elemento tradicional indígena, a máscara que estava presente nas culturas “pré-hispânicas” desde as suas origens, mas dando-lhe novos sentidos, “neste caso literalmente opostos aos tradicionais”. Se na tradição tinha um uso ligado ao controle através do terror, do perverso, do maldito, os zapatistas usam as máscaras para resistir a um controle de mais de 500 anos. E não o fazem através do terror, mas da ironia e da repetição, “a representação de um olhar, uma prática, um costume dos mexicanos: todos os indígenas são iguais”. Se as máscaras tradicionais são variadas, expressando a diversidade e a individualidade, a zapatista quase sempre é igual, ironizando o preconceito e a cegueira mexicana sobre a diversidade obrigada a esconder-se por trás dos pasamontañas para se fazer visível. Na tradição as máscaras eram usadas também como mediadoras entre os homens e o sobrenatural, do contato e desvelação do divino. Os zapatistas invertem esta relação, pois atrás das máscaras são eles mesmos os invisíveis, os que estão para ser desvelados. Além disso, o invisível é humano, nativo, e não sobre-humano ou cósmico. “A estratégia feminina se desdobra neste caso ao serem as mulheres indígenas o cúmulo da invisibilidade. Se atua, se re-presenta a invisibilidade em seu limite.” Se na tradição as máscaras são as que acompanham os mortos em sua travessia ao inframundo, no zapatismo “não são os vivos que morrem e assim descansam, repousam em paz. São os mortos em vida, sem repouso, sem paz, que viajam para viver. São os mortos de sempre em seu recorrido à vida, com dignidade”. Finalmente, a tradicional função da máscara de camuflagem, de vigilância do centro sobre às margens, é invertida em olhar das margens para o centro, que desnuda as próprias formas de controle exercidas a partir do centro. “As máscaras escondem os rostos dos zapatistas, mas não para protegê-los. Qualquer indígena, apenas por sê-lo, pode ser acusado de zapatista. Nenhuma máscara pode ocultar o seu ser índio. As máscaras sublinham o feito de que os zapatistas são os sem rosto, os des-carados, os que perderam a vergonha original, talvez a de La Malinche, talvez a da desobediência de Eva, talvez a de ser os mais pobres. Os des-carados interrompem, falam, se negam, não aceitam, reclamam, demandam. Deixaram de pedir perdão”.

Se olharmos para outras guerrilhas, veremos que geralmente não se utilizavam máscaras. Se elas são amplamente utilizadas pelo EZLN, isso é indicativo da estratégia de ser um exército capaz de aparecer e voltar a desaparecer nas sombras. Capaz de grandes ações para então voltar a um cotidiano civil, de resistência civil, atrás de outras máscaras e/ou fachadas como as organizações indígenas independentes. Notadamente, com o passar do tempo as bases do EZLN começariam a se auto-referir como sociedade civil, bases de apoio zapatistas. Ora, até o levante foram anos de preparação clandestina para a guerra combinada com a atuação política legal nos movimentos independentes. Por fim, haviam se tornado um exército muito mais preparado para a continuidade da luta política do que para uma guinada a alguma estratégia clássica de guerra. Dada a conjuntura que se abriu em 1994 para o EZLN, a guerra pôde prevalecer em sua dimensão espetacular, meramente auxiliar da política, mas de grande valia na sua capacidade de abrir espaços de comunicação, diálogo e projeção do zapatismo para além de Chiapas. E prevalecendo no EZLN, desde os seus primórdios, uma disposição política, de abertura e persuasão, a opinião pública tinha mesmo que ser o alvo principal da guerra de janeiro. Isso ajuda a entender a forte preocupação, nem sempre exitosa, mas demonstrada pelo EZLN em seus discursos e em sua prática, em fazer uma guerra fiel à Convenção de Genebra e de respeitar a população civil. Os soldados aprisionados pelos zapatistas, talvez até por problemas logísticos, eram libertados rapidamente. E as famílias abastadas de Chiapas tomadas como reféns, foram soltas logo que se abriu a possibilidade de um cessar fogo e o início dos diálogos. No entanto, um homem foi mantido preso. Ele seria o personagem da primeira performance pública com conotação simbólica explícita dos zapatistas.

A tomada das cidades por um exército indígena já traz uma forte expressividade simbólica. Aqueles que foram conquistados, empurrados de suas terras cada vez mais para as margens de uma sociedade que lhes reservou um lugar apenas em seus subterrâneos (geralmente nas zonas rurais), agora avançavam sobre as cidades, sobre a “civilização”. Não para queimar, matar e destruir, a não ser aqueles símbolos do poder que os oprime. Numa performance que a conjuntura permitiu que fosse rápida, acentuando o seu caráter cênico, uma exibição com começo, meio e fim, esse Exército indígena começava a se tornar visível, memorável, tornava-se ao menos digno da reflexão dos outros mexicanos. Mas esta exibição era também uma guerra na prática, com seus mortos, feridos e refugiados. Quem a acompanhava não necessariamente fazia interpretações para além desta dimensão prática. Entre o cessar fogo e o início do diálogo com o governo na Catedral, porém, o EZLN armou uma performance no sentido mais estrito do termo. Foi o julgamento e a posterior entrega de Absalón Castellanos Domingues às autoridades. O general reformado, latifundiário e governador de Chiapas entre 1982 e 1988, havia sido capturado no segundo dia do levante. No dia 20 de janeiro, o CCRI assinou o comunicado em que eram expostas as conclusões do julgamento popular de Castellanos. Ele foi declarado culpado, juntamente com o governo federal e com a cumplicidade dos governadores que o sucederam (Patrocinio Gonzáles e Elmar Setzer), de haver levado os indígenas ao levante armado, ao fechar os caminhos legais e pacíficos para a solução das suas demandas. Foi declarado culpado, com a cumplicidade do governo federal, da repressão contra a população indígena que lutava legal e pacificamente, e do despojo das terras indígenas, tornando-se assim um dos proprietários de terra mais poderosos do estado, e ainda por roubo, assassinato, seqüestro, corrupção e violação dos direitos humanos. Sua pena era a prisão perpétua em alguma comunidade indígena, devendo realizar trabalhos manuais para ganhar assim alimentos e outros meios para sua subsistência:

“Como mensagem ao povo do México e aos povos e governos do mundo, o Tribunal de Justiça Zapatista do EZLN comuta a pena de cadeia perpétua ao senhor general de divisão Absalón Castellanos Domíngues, o deixa livre fisicamente e, no seu lugar, o condena a viver até o último dos seus dias com a pena e a vergonha de ter recebido o perdão e a bondade daqueles a quem por tanto tempo humilhou, seqüestrou, despojou, roubou e assassinou” (EZLN, 1994: 106).

Reyes e Zebadúa (1995: 41-46) relatam que por mais de duas semanas não se sabia o paradeiro do ex-governador, até que se soube do seu julgamento na Selva. Sua libertação era uma das condições para se começar o diálogo com o governo, bem como a libertação dos zapatistas presos. O bispo Samuel Ruiz empreendeu um grande esforço para o êxito desta aproximação, e era o canal de troca de mensagens entre o EZLN e Camacho, negociador governamental. Camacho anunciou o estabelecimento de duas zonas francas: San Miguel no município de Ocosingo e Guadalupe Tepeyac, em Las Margaritas. Foi nesta comunidade que Castellanos foi entregue a Camacho no dia 16 de fevereiro, com a presença da população local, do bispo, cerca de 300 jornalistas e a transmissão ao vivo pela televisão, embora a notícia tenha sido cuidadosamente suprimida dos noticiários noturnos. No ato da entrega um indígena (EZLN, 1994: 150-153) leu uma declaração preparada pela comunidade de Guadalupe Tepeyac, que aproveitou a oportunidade para falar da sua realidade social, da falta de democracia e espaços para a voz indígena. Tratava-se, para os olhos urbanos, de um grande espetáculo, em que se tinha o cuidado de responsabilizar o regime por gerar a guerra. Evocava o valor cristão do perdão, ao mesmo tempo em que resolvia questões práticas relativas às condições para a realização do diálogo.

O espetáculo zapatista tinha ainda um elemento fundamental: o seu personagem principal, o subcomandante Marcos. Na crítica de Belausteguigoitia (1996: 406-407), deplora-se que tivesse ele que ser um homem para ser capaz de se fazer escutar. Se entre os mitos fundantes da nacionalidade mexicana foram estatizadas como orgulho nacional as imagens de Cuahtémoc e Netzahualcáyoti, foi repudiada a imagem de Malinche, a indígena amante de Cortês, indígena tradutora do mundo asteca que ajudou o conquistador a compreender suas vítimas. A ela foi reservado o lugar de tradutora – conselheira tática – traidora. Marcos, em contrapartida, se tornou o “amante dos sonhos, tradutor – salvador e estrategista militar”. Mas se a autora reprova neste contraste a discriminação feminina, podemos ressaltar o outro lado: a valorização, enfim, da tradução, da comunicação entre os diferentes. Ainda mais se tratando de um país tão racista e onde a tradução estava tão amaldiçoada na figura de Malinche. Por outro lado ele era também de origem urbana, não era um indígena. Talvez, porém, se o porta-voz mais importante do EZLN fosse um indígena, tivesse que se adaptar muito mais aos valores e estilos urbanos para se fazer aceitar do que Marcos. Este, já possuindo qualidades deste tipo, podia realçar a irreverência do EZLN e sublinhar elementos da cultura indígena em suas práticas e discursos.

Que Marcos seja homem, mestiço-branco, com dotes intelectuais (como exibir conhecimentos de línguas européias nos comunicados e entrevistas logo nos primeiros dias do levante), de origem misteriosa e que teria passado 10 anos vivendo entre os indígenas, é quase como se fosse um príncipe misterioso lançado nas águas de um rio quando criança e que ressurge adulto ao lado do povo e portador de mensagens salvadoras, um novo Moisés. Mesmo após a revelação de sua identidade em 1995, permaneceu a sua origem na elite e seus dotes literários e intelectuais. Nada mais apropriado para uma estratégia do espetáculo. Voltemos às origens das reflexões sobre a poética. Na poética de Aristóteles (1979), classificava-se a tragédia e a epopéia como a “imitação de homens superiores”. Os heróis eram membros da elite, alcançando assim gerar a simpatia do público. Passavam depois por toda a sorte de dificuldades em sua ação, até chegar-se a um desenlace catártico. Embora essas características necessárias ao teatro grego se referissem à sensibilidade de uma época bem diferente, vale a comparação para afirmar que o zapatismo oferecia um espetáculo completo, com um herói capaz de gerar a simpatia no público e provocar-lhe fortes emoções diante de todas as dificuldades e riscos, até de morte, enfrentadas. Pode-se objetar que na literatura moderna passou-se a admitir heróis de origem social popular, o que se tornou possível graças às mudanças na cultura ocidental após a emergência da burguesia, as primeiras revoluções e as democracias do século XIX.

Mas se esses heróis de origem popular da literatura são examinados, pode-se notar que eram elaborados com atributos morais da elite, para que pudessem gerar a identificação no público. No caso de Marcos, temos um herói originário da elite e, feita esta concessão, o EZLN podia expressar com mais força através da sua voz elementos de uma moral e de uma política indígena.

Se uma das coisas que distingue a arte da ciência é que a primeira admite a incoerência, a ambigüidade do EZLN em suas práticas e discursos contribuiu para tornar o zapatismo um movimento predominantemente plástico, poético e até místico, colocando os símbolos no primeiro plano. A racionalidade implícita na política moderna parece tomar uma posição meramente auxiliar e instrumental nas posições do EZLN, o que coloca dificuldades para a análise sociológica da sua política. É por isso que esta não é possível sem que se proceda a uma reconstituição minuciosa dos acontecimentos, entrevistas e comunicados. Já podemos observar, porém, que se trata de uma política que não se prende a esquemas teóricos ou diretrizes claras. Sustenta-se antes por símbolos passíveis de interpretações que admitem uma grande variação e, sobretudo, graças à capilaridade do EZLN em relação às suas bases indígenas e, após o levante, em relação à chamada sociedade civil. É portando uma política plástica, flexível, adaptável. É também uma política acessível, que não exige dos que participam dela grandes aptidões intelectuais nos moldes ocidentais.

*Fragmento do livro “A Guerra é o Espetáculo. Origens e Transformações da Estratégia do EZLN”