Falamos com Xico Paradelo, um dos roteiristas da BD Carvalho, coraçom de terra. Xico iniciou a sua trajetória no coletivo Frente Comixário, com o qual organizou as Xornadas de BD de Ourense, a sua terra natal, e participou no I Encontro de Debuxantes Galegos. É um dos fundadores da Associação Cultural BD Banda e do Coletivo PESTINHO, um dos autores da História da Língua em Banda Desenhada, membro fundador da Academia Galega da Língua Portuguesa e colaborador no Portal Galego da Língua. Aliás, para além de militante da cultura e ativista do humor gráfico, é professor de Primário num centro rural de Ourense.
Carvalho, coraçom de terra é uma BD sobre este autor. Porque este título e porque Carvalho Calero em BD?
O título da obra é uma reelaboração de um verso do músico e poeta Vicente Araguas, citado pola professora Aurora Marco no seu livro “Foula e ronsel. Os anos xuvenís de Carvalho Calero (1910-1941)”. O poema leva por título “RICARDO CARBALLO NA ILLA DE ARAN”. Gostamos desse jogo poético feito entre a figura do rei Ricardo “coração de leão” e o nosso Ricardo “coraçom de Terra”. É muito evocador. Para além disso, nesse contexto, a palavra “Terra” tem diferentes significados. Pode ser a matéria, o solo, a pátria…
A iniciativa de fazer uma BD sobre Ricardo Carvalho Calero surgiu da AGAL, como uma das muitas propostas para celebrar o “ano Carvalho”. Valentim Fagim, da Através editora, contactou com o Germám Ermida, a Irene Veiga e comigo. Gostamos imediatamente da iniciativa e decidimos falar com o Manel Cráneo (Demo Editorial) para ver se gostaria de participar no projeto. O Manel mostrou-se entusiasmado com a ideia e assim começamos a trabalhar.
A ideia era criar uma boa história de BD. Uma “novela gráfica” na qual mostrarmos certos momentos que achamos fulcrais da história recente da Galiza, utilizando a vida do professor Carvalho como fio condutor. Ele foi, querendo ou sem querer, protagonista de exceção de muitos destes momentos, polo que a sua vida era um material perfeito para elaborar uma obra que não pretende ser uma “biografia rigorosa”, mas que sim foi elaborada depois da leitura atenta de dúzias de livros e trabalhos sobre ele e a sua obra.
A quem está dirigida a BD, a todos os públicos ou está pensada mais para adultos?
A intenção inicial da equipa criativa era fazer uma BD que pudesse servir como material de trabalho nos centros de ensino secundário, mas sem que por isso tivéssemos de “puerilizar” ou simplificar os conteúdos. Queríamos também criar um material que servisse para divulgar a figura e a obra deste gigante da cultura que sofreu um despiedado apagamento, polo qual hoje mui poucas galegas/os o conhecem. Para nós era também importante que a obra refletisse os debates e conflitos que se deram (e continuam a se dar) e nos quais Carvalho participou e foi principal protagonista. Foi um desafio complicado harmonizar todos estes objetivos. Serão os leitores/as os que digam a última palavra.
Ainda que a obra é biográfica, inicia-se numa realidade alternativa com Carvalho Calero em Lisboa representando a Galiza na fundação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Por que este começo?
Queríamos mostrar a nossa ideia de como seriam as cousas se o professor Carvalho e as suas propostas em matéria de língua e cultura não tivessem sido banidas radicalmente depois do famoso “golpe linguístico” do “decreto Filgueira”. A nossa conclusão é que se perderam quarenta anos fulcrais. Mas também queremos transmitir que o reintegracionismo, continuador das teses do professor Carvalho Calero, não ficou imóvel; não se rendeu. E como dizia o próprio professor “Há que esperar contra toda esperança. Porque mentres não decidamos suicidar-nos como povo temos que confiar na possibilidade de rectificar a história e a história, por suposto, tem que ser rectificada.”
Para elaborar a BD teve de se documentar profundamente sobre o autor. Se tivesse de destacar só um facto da vida de Carvalho Calero, qual seria?
Mais do que um facto, eu destacaria uma atitude que manteve ao longo de toda a vida: a sua total honestidade e integridade. Tanto a nível humano como a nível intelectual ou político. Carvalho Calero foi sempre fiel ao seu pensamento. Nunca se submeteu. E pagou um alto preço por manter essa atitude de independência: pagou com cadeia, com repressão, com a traição de pessoas queridas, com a maledicência sobre a sua figura e a manipulação brutal do seu pensamento. Foi marginalizado, apagado… Sofreu o que os romanos chamavam damnatio memoriae. Mas hoje a sua figura incontornável ergue-se com mais força do que nunca sobre o horizonte da cultura galega. Ele marca-nos o caminho.
Levou-se a cabo um projeto de crowfunding e ultrapassou a quantidade de dinheiro solicitada, pelo que a iniciativa contava com bastante apoio. Na atualidade, estão a apresentar o livro em diversas livrarias do país. Como está a ser a acolhida por parte dos leitores?
O crowfuding funcionou tão bem que realmente ficamos ultrapassados nas nossas expectativas. Isso encheu-nos de energia e boas vibrações, porque sentimos um apoio incondicional à obra e à pessoa do professor Carvalho.
Realmente, a campanha de apresentações começará com força nos próximos meses. A pandemia e o confinamento obrigaram-nos a modificar o nosso plano de promoção da obra. Fizemos há uns dias um par de apresentações que já tínhamos marcadas antes da chegada da COVID. Na Arca da Noe (Vilar de Santos) e na Fundação Vicente Risco (Alhariz). As duas foram maravilhosas, rodeados de amigos/as. Na primeira contamos com a participação do professor Estraviz e na segunda com a de Mª Victoria Carballo-Calero Ramos. Foi um privilégio contar com eles. No caso da professora Carballo-Calero (filha mais nova de D. Ricardo), foi muito emocionante escutar da sua voz que gostou da obra e que se sentia dignamente representada nela, porque para nós era muito importante a opinião da família, dado que numa obra de tipo biográfico, tratam-se sempre temas e circunstâncias que atingem o íntimo das pessoas relacionadas com o protagonista e os factos narrados.
Por último, que lhe diria aos leitores desta entrevista que estejam a pensar em ler a BD?
Em primeiro lugar, como já comentei antes, esta não é uma biografia de Ricardo Carvalho Calero; é uma novela gráfica com Carvalho Calero como fio condutor. É uma viagem no tempo que começa no ano 1923. Queremos que os/as leitores/as vivenciem esses momentos tão potentes da história recente da Galiza: a ditadura de Primo de Rivera, a segunda república, a guerra civil, o franquismo, a “transição”… Achamos que podem gostar ao se deparar nas páginas da obra com figuras como Francisco Franco, Xaime Quintanilla, Ánxel Fole, Álvaro Cunqueiro, Ánxel Casal, Maria Miramontes, Ramón Piñeiro, Constantino García, Francisco F. del Riego, Gonzalo Torrente Ballester…
O trabalho gráfico de Iván Suárez é magnífico. Tem um branco e negro contundente e o seu acertado tratamento de cenários e personagens permite-nos mergulhar na história sem dificuldade, facilitando-nos a leitura e fazendo-nos desfrutar de páginas da mais elevada qualidade artística.
Por último, dizer que procuramos construir uma obra variada, com momentos para a tristura, a dor e o sofrimento e outros cheios de vitalidade, alegria e esperança. Tudo feito em função do objetivo principal deste projeto: servir como introdução à vida e obra de um dos mais importantes pensadores da Galiza. Se conseguimos suscitar o interesse polo legado e as ideias de Carvalho Calero, teremos logrado a nossa meta.