Desde crianças aprendem-nos a maneira correta de falarmos. Nos mídia, nos filmes, na casa, na escola. Na escola. Na escola. Na escola. Nesse cárcere ao que seria injusto dizermos que as nossas mães nos enviam, pois seria injusto acharmos um ser tão cruel num pai ou numa mãe. O Estado. O Estado é o único cruel de avondo como para obrigar uma nena de apenas dous anos a assinar com cuspe e choros um contrato de como mínimo outros treze cujas cláusulas incluem trabalhos forçosos, reclusão diária a jornada completa, submissão absoluta às figuras de Poder (que, quando se é aluna, são todas) e, sobretudo, compromisso absoluto com o Pensamento único ou, como se deve chamar a partir da assinatura do contrato: o Pensamento.

O Pensamento é algo tão socializado, tão universal e tão diacrônico que não nos podemos culpar por obviarmos a sua fortíssima dimensão pessoal: o seu valor infindo. A omnipresença do mercado e a necessidade de consumo guiam-nos cara á proteção dos nossos carros, dos nossos aforros e mesmo das vidas das nossas filhas mediante seguros e fechos caríssimos. Defendemos as nossas casas e colocamos limites físicos aos nossos animais, mas nunca ninguém cerca o seu Pensamento. Nunca ninguém acha o Pensamento um bem digno de ser custodiado com o mimo que si merece uma sortelha nem nunca ninguém concede ao Pensamento a segurança de que si goça uma TV de ecrã plano. Nunca ninguém se amossa ciente do valor do seu Pensamento e por isso nunca ninguém o salvaguarda. Nunca, ninguém.

As nossas mentes são as nossas casas. Passamos longo tempo nelas, dispomos tudo ao nosso gosto e fazemos delas um lugar no que refugiar-nos do ruído que continuamente se transforma fora, um remanso para o auto-conhecimento. Mas tanto acreditamos nesta ideia que obviamos que a nossa casa, como a nossa mente, está construída dum material e sobre um chão que nós não escolhemos, e que todas aquelas cousas que podemos ordenar nos seus interiores são artigos que mercamos no IKEA por uma decisão que, por muito que teimemos em crermos que sim, também não é nossa. Temos as portas das casas abertas a toda uma rede de poderes chamada Capital capaz de nos assulagar na sua lei sem que a nossa sensação de liberdade se veja comprometida nem sequer minimamente; e igual as mentes: igual o Pensamento. Se com a chave posta o Poder é quem de entrar na nossa casa e decidir a cor das paredes, a ordem alfabética ou cronológica dos livros ou a marca do desodorizante, o que não fará com o Pensamento se, efetivamente, nos resignamos a lhe outorgar um mínimo de cuidado? Mais ainda: o que não fará com o Pensamento se este tem uma via de aceso direta que serve de entrada e saída e que fica aberta de jeito continuado ao longo da vida toda? O que não fará com o Pensamento se este tem na sua maior aliada também a sua verduga? Na sua máxima expressão a sua perdição e no seu espelho a sua delatora. Aquela companheira da que não se pode desprender pois é quem lhe concede o dom da existência, mas também aquela que transparenta e difunde os seus lindeiros imprecisos. A única com a que compartilha a intimidade que o carateriza e a única que o obriga a uma exposição permanente ao mundo exterior. O que não fará o Poder com o Pensamento se, para aceder a ele, dispõe da Linguagem?

A Linguagem é a (única!) acreditação que exigimos para algo entrar no nosso Pensamento. A Linguagem é, assemade, a que joga com o Pensamento e lhe diz como ser e a que dá conta do Pensamento de cara a fora. É a culpável de que eu assumisse como algo natural ter uma casa na que ordenar artigos de IKEA ou de que fizesse ostensão do privilégio de ter na minha mente um refúgio. A Linguagem é um castigo e uma bendição, uma fortuna. É a responsável de que não me poda referir a ela sem evocar tópicos religiosos, sendo ateu. É, já o disse, aquilo que de tão comunitário é íntimo: o mesmo que me permite reproduzir uma ideia doutro parágrafo sem me repetir. E é essa intimidade a que devemos preservar, a que devemos valorar como preciosa que é, pois em cada ato de fala estamos a entregar uma parte de nós, da qual não nos desprendemos mas que tampouco voltará. A cada sintagma, a cada som estamos a dizer cousas tão insospeitadas como “sou de Labanhou”, “o meu pai é espanholista”, “gosto do sexo oral”, “viva Galiza ceive” e isso é algo que não salvam os fechos mais caros: é uma obriga com a que temos de viver.

Por isso cumpre repararmos na dívida que temos com a Linguagem e, mais ainda, com os nossos idiomas. Porque o nosso Pensamento é a nossa intimidade e a intimidade dum povo é a sua identidade, o seu caráter como tribo e o reflexo das suas penas e as suas glórias: aquilo que lhe insufla a qualidade de povo. A língua é Roi Surdo assassinado polos Andrade e 1432 e Luís Seoane a abrir editoras em Buenos Aires; é um grupo de marinheiros a representarem por primeira vez A fiestra valdeira e é um estudante a pendurar uma estreleira no Governo Civil de Ourense num 27 de junho. A língua é um tesouro para um país como o ar para uma pessoa. Assim que falemos bem: falemos de intimidade. De cuidados, de repartirmos as tarefas diariamente na casa, de chorarmos em assembleias e de reconhecermos os erros; mas não de passada: de reconhecermos os erros com tino e pedirmos desculpas por falarmos mal a uma pessoa que nos quer e que queremos. Falemos de posturas sexuais, de chamadas telefônicas e de não chamadas telefônicas, dos livros que gostaríamos de ler, das canções que não amossamos por vergonha, das cartas às presas, de jornadas de formação e convívios com jogos populares e das escolas Semente e das crianças a brincarem em galego. Falemos de tudo isto mas não deixemos de falar das bombas, das precárias, das que servem copas até as 4 am para pagarem a carreira, das mulheres racializadas que não acham no 8 de março o seu dia, dos homens cis brancos que não calamos quando se nos assinalam privilégios, de FIES, das casas de apostas, das moças que emigram, dos governos que solucionam problemas da Galiza com leis estatais, de Espanha, da AP-9, de Espanha. Falemos também de Espanha. Falemos com as crianças para que elas falem com nós e nos aprendam como se bem-fala antes de irem à escola. Falemos, enfim, porque é a única maneira de lhe devolver à língua uma milésima parte do que lhe devemos como povo.