Por Nelson Maldonado-Torres (traduçom do galizalivre) /

Já estamos afeitos na academia a escuitar diferentes tipos de viragens. Colham-se de exemplo as viragens lingüísticas e pragmáticas em que tanto posmodernos como neo-kantianos baseiam o seu trabalho. Estas viragens proponhem que quer o universo do sentido em geral quer o dos actos da fala fornecem as chaves fundamentais para entender as formas em que o nosso mundo, é dizer, o mundo prenhe de significado, age. A viragem des-colonial refere-se mais bem à percepçom de que as formas de poder modernas produzírom e agachárom a criaçom de tecnologias da morte que lhes afectam de jeito diferencial às diferentes comunidades e sujeitos. Esta também se refere ao reconhecimento de que as formas de poder coloniais som múltiplas, e que tanto os conhecimentos como a experiência vivida dos sujeitos que mais estivérom marcados polo projecto de morte e desumanizaçom modernos resultam altamente relevantes para compreendermos as formas modernas de poder e achegar alternativas a elas. Neste sentido, nom se trata dumha única gramática da descolonizaçom, nem dum único ideal de mundo descolonizado. O conceito viragem des-colonial na sua expressom mais básica procura situar no centro do debate a questom da colonizaçom como componente constitutivo da modernidade, e a descolonizaçom como umha infinidade de estrategias e formas contestatárias que proponhem umha mudança radical nas formas hegemónicas actuais de poder, ser e conhecer.

Um terceiro elemento da viragem de-colonial trata dumha diferenciaçom entre a ideia e o sentir por umha banda, e o projecto de descolonizaçom por outra. A ideia de descolonizaçom é tam velha como a mesma colonizaçom moderna. Trata-se em primeiro termo nom dumha ideia como tal, mas dum sentimento e sentido de horror perante o despregamento das formas coloniais de poder na modernidade, formas que se encarregárom de dividir o mundo entre hierarquias de senhorio e diferentes jeitos de escravitude alicerçadas, já nom em diferenças étnicas ou religiosas, senom mais propriamente em diferenças supostamente naturais, quer dizer, ancoradas na corporalidade mesma de sujeitos vistos como nom inteiramente humanos. Referimo-nos ao que se pode considerar como um berro de arrepio por parte dum sujeito vivente e doador de sentido diante da apariçom do mundo moderno/colonial que propom a dispensabilidade de certos sujeitos humanos como elemento constitutivo do avanço da sua civilizaçom e expansom global. A ideia de descolonizaçom também compreende o primeiro momento da viragem des-colonial propriamente falando. Trata-se dumha mudança radical de atitude do sujeito que enfrenta ou é testemunha do espalhamento deste mundo de amos e escravos. A atitude des-colonial nasce quando o berro de arrepio perante o horror da colonialidade se traduz numha postura crítica diante do mundo da morte colonial e numha procura da afirmaçom da vida por parte daqueles aos que mais lhe afecta esse mundo. Estamos a falar logo dumha transiçom do horror para o que se poderia chamar, seguindo o ronsel da teórica chicana Chela Sandoval, como amor des-colonial (2000). O surgimento da atitude des-colonial envolve daquela um estado afectivo que lhes resulta fundamental, ao tempo que se pode achar, com a claridade com a que o fai o afro-caribenho Frantz Fanon no seu “Pele preta, máscaras brancas” (1973), em princípio dum tipo particular de filosofia e produçom teórica.

Para entendermos a dimensom filosófica e teórica da atitude des-colonial cumpriria consultar recontos sobre a origem do indagar filosófico. Um dos clássicos mais influentes é o reconto do fenomenólogo alemám Edmun Hursserl, quem, seguindo a Aristóteles, assinalava o “abraio” do filósofo perante o mundo como ponto de saída para o pensar filosófico (Hursserl, 1981). A filosofia surge deste jeito quando o mundo quotidiano adquire um carácter nom familiar, resultado dumha suspensom das crenças usuais que temos sobre ele. O “abraio” ocorre logo quando o familiar se vira estranho, o que aponta a limitaçons no mundo mítico ou tradicional dumha sociedade em questom para entender o mundo. De aí nasce umha indagaçom sobre a verdade oculta que explica aquilo que abraia. O surgimento da atitude des-colonial está relacionada de certa maneira mas é diferente desta atitude filosófica. Diferente da atitude teórica do filósofo na sua concepçom tradicional, a atitude des-colonial nasce nom a partir do “abraio” perante a natureza ou o usual, senom a partir do “horror” ou arrepio diante da natureza. O pensador neste caso nom procura simplesmente achar a verdade sobre um mundo que lhe aparece como estranho, mas determinar os problemas dum mundo que se lhe aparece como perverso e de encontrar as vias possíveis para a sua superaçom. A procura da verdade aqui está inspirada nom polo desinteresse teórico, mas pola nom-indiferença diante do Outro, expressado na urgência de contra-arrestar o mundo da morte e de acabar com a relaçom naturalizada entre amo e escravo em todas as suas formas. A teoria surge neste caso com um telos ou finalidade definida: a restauraçom do humano ou a construçom do mundo do Tu, tal e como Fanon o propom (1973:192). A pergunta do que e para que conhecer fica respondida aqui em termos da oposiçom à morte do Outro e a possibilidade da generosidade e o amor como superaçom de divisons hierárquicas naturalizadas.

A mudança de atitude natural racista ou individualista da modernidade para a atitude des-colonial de cooperaçom na ruptura com o mundo da morte colonial é o momento mais fundamental da viragem des-colonial. A descolonizaçom nom se pode levar a cabo sem umha mudança no sujeito. Este assunto está ligado com o que outros denominárom descolonizaçom da mente ou do imaginário histórico e a memória (Pérez, 1999; Ngugi, 1986). Também está ligado a umha ética e umha política da libertaçom e ao surgimento de viragens subjectivas descolonizadoras particulares de diferentes comunidades mas com relevância além delas, como a atitude quilombola ou cimarrona sobre a que alguns estám a trabalhar hoje. Tal e como já se afirmou, a viragem des-colonial em termos dumha mudança de atitude fundamental no sujeito que confronta ou é testemunha radical do colonialismo nalgumha das suas formas ou se calhar tam velho como o próprio mundo colonial. Este inspirou diferentes projectos des-coloniais em diferentes momentos da modernidade. Nom foi, porém, até entrado o século XX que estes projectos des-coloniais começárom a encontrar-se entre si e dérom criado umha consciência global sobre a relevância do projecto inacabado da descolonizaçom. Aqui podemos incluir como actores principais o movimento pan-africanista e as diferentes gestas explícitas da descolonizaçom por parte de indígenas nas Américas, africanos, asiáticos e mesmo alguns mestiços nos séculos XIX e XX. Isto amostra que embora for certo que nom existe mudança des-colonial do mundo sem mudança na atitude de sujeitos, também é certo que as mudanças no mundo abrem novas possibilidades em termos de conhecimento e atitude. Mudanças no tempo ou no espaço podem facilitar ou fanar as possibilidades na toma de consciência des-colonial e do projecto mesmo de descolonizaçom.

Um incidente a grande escala que favoreceu a propagaçom da noçom dum projecto inacabado da descolonizaçom forjado, a nível global, por todos aqueles que se oponhem à colonialidade em todas as suas formas foi o avougo da Europa na II Guerra Mundial. Europa representou por muito tempo o lugar privilegiado de produçom de modelos de convivência e de controlo da natureza que mais afim era para o progresso humano. Por isso durante as revoluçons de independência dos séculos XVIII e XIX nas Américas, as novas naçons rejeitavam a hegemonia dum poder europeu, por exemplo o espanhol ou português, mas só para seguir o modelo provisto por outro país europeu -França, o caso mais salientável. Destarte, o século XIX destacou por diferentes posturas de anti-imperialismo eurocéntrico. Rechaçava-se a empresa imperial europeia para justificar umha empresa nacional ou imperial local ainda inspirada por ideais de naçom ou império formados na Europa que ainda continuavam a colonialidade do poder em diferentes formas. Algo diferente ocorreu em polo menos alguns dos processos de independência no século XX após a II Guerra Mundial. Nesse momento Europa inteira foi desprestigiada e diferentes comunidades arredor do mundo já perdiam a sua fascinaçom por ela. O intelectual, poeta, e político martinicano Aimé Césaire (2006) expressou-no de jeito singelo: “Europa é indefendível”. No momento que escreve, já nom resultava possível para sujeitos coma ele rejeitar umha parte da Europa para reclamar outra, Europa inteira e o seu projecto de civilizaçom estavam em questom. A situaçom era diferente tanto existencial como intelectualmente em relaçom às revoluçons anti-imperialistas anteriores. Já nom se podia confiar em modelos hegemónicos no passado, senom que cumpria construir novos modelos ou pôr em funcionamento modelos prévios nom totalmente europeus de convivência e interacçom com a natureza.

Na sua visom da Europa, Césaire respondia-lhes às posiçons que tentavam justificar o colonialismo e por tanto opor-se aos novos processos de descolonizaçom no século XX mediante o emprego dumha suposta ligaçom entre colonizaçom e civilizaçom. Propunha-se que a gesta colonial quando menos lhes trouxera a civilizaçom aos colonizados, que lhes levara a “luz” da civilizaçom e os tirara das trevas do primitivismo -embora, agregássemos hoje, os conduzisse à realidade patética da pobreza extrema e o subdesenvolvimento. Por tanto, com toda a sua xenreira os colonizados também teriam que estar agradecidos e respeitar aqueles que lhes trouxérom a civilizaçom. A resposta de Césaire nom pudo ser mais visceral. Primeiro adverte da hipocrissia do colonizador na sua última tentativa por lhe mentir ao colonizado.

E como hoje se me pede que fale da colonizaçom e da civilizaçom, vamos ao fundo da mentira principal desde a que agromam todas as demais. Colonizaçom e civilizaçom? A maldiçom mais comum neste assunto é ser a vítima a boa fé dumha hipocrisia colectiva, hábil em propor mal os problemas para legitimar melhor as odiosas soluçons que se lhes oferecem. Isso significa que o essencial aqui é ver claro e pensar claro, entender atrevidamente, responder-lhe claro à inocente pergunta inicial: que é, no seu começo, a colonizaçom? (Césaire, 2006:16)

Césaire propom de jeito resumido aqui novas dimensons da atitude des-colonial no momento histórico global da viragem des-colonial. Trata-se para Césaire de “ver claro” e de “entender atrevidamente”, posturas que se proponhem como antídotos a umha hipocrisia colectiva que teima em lhe dar continuidade ao mundo colonizado da morte. O Discurso sobre o colonialismo de Césaire apresenta-se, tal como argumentei noutro lugar, como um novo “discurso do método” para o bem razoar (Descartes) após o fracasso europeu (Maldonado-Torres, 2006). Trata-se da articulaçom precisa da razom des-colonial cuja finalidade primordial nom é unicamente a mudança em métodos de conhecimento, senom também a mudança social. Vou-me cingir aqui a comentar sobre esta forma de razom e vou deixar para outra ocasiom a articulaçom doutros dous tipos de razons: a razom imperial e a razom colonial -umha tem a ver com a produçom da “mentira” e hipocrisia imperial e a outra com formas de conhecer e investigar que se esbroam diante delas ou som seduzidas por elas.

Tal e como propom Césaire, a razom des-colonial pode-se vincular à percepçom como mentireiros que os escravos racializados tivérom dos seus amos moderno/coloniais, mas que agora diante da queda moral e espiritual da Europa, se fai mais evidente:

Pode-se matar na Indochina, torturar em Madagascar, encarcerar na África preta, causar estragueiras nas Antilhas. Os colonizados sabem que, desde agora, possuem umha vantagem sobre os colonialistas. Sabem que os seus “amos” provisórios mentem (Césaire 2006:13)

A viragem des-colonial refere-se logo ao momento em que a suspeita do escravo fica ratificada e altera a consciência do escravo de jeito global. À razom do colonizador investida de mentira, opom-se neste caso umha razom des-colonizadora (razom des-colonial) que se opom à mentira e à hipocrisia moderna/colonial. É a partir desta forma de razom que Césaire realiza as suas propostas e juízos. O primeiro, que “a distância da colonizaçom à civilizaçom é infinita, que todas as expediçons coloniais acumuladas, de todos os estatutos coloniais elaborados, de todas as circulares ministeriais expedidas, nom se poderia resgatar um só valor humano” (Césaire, 2006:14). Depois Césaire propom que a colonizaçom nom só nom civiliza o colonizado senom que desciviliza o colonizador. É desde esta ideia que Césaire propom umha relaçom íntima entre colonialismo e o surgimento do fascismo nazista na Europa. Aos campos de concentraçom precedem-nos as colónias. O selvagismo da colonizaçom volta como boomerang para o colonizador. Por isso se proponhem tarefas descolonizadoras nom só para o colonizado, mas também para o colonizador. A última oportunidade que tem Europa consiste para Césaire nom tanto em criar umha Uniom Europeia, senom em se unir aos processos de descolonizaçom no mundo, que som múltiplos e diversos (Césaire, 2006:43). Com isto tornamos aos temas tocados na primeira parte na que se discutia a vigência de discursos sobre a descolonizaçom. Agora teríamos-lhe que acrescentar a relevância da atitude e a razom des-colonial.

Em conclusom, a viragem des-colonial trata logo dumha revoluçom no jeito em que variados sujeitos colonizados percebiam a sua realidade e as suas possibilidades após a queda da Europa na II Guerra Mundial. Já as bases da viragem des-colonial estavam propostas de ante-mao no trabalho de intelectuais racializados, em tradiçons orais, em histórias, cançons, etc.. porém, graças a eventos históricos particulares, globaliza-se na metade do século XX. De ai para diante pode-se dizer que se propujo umha viragem, já nom só a nível da atitude de sujeitos ou de comunidades específicas, mas ao nível do pensamento mundial . O tema da descolonizaçom adquiriu vigência para diferentes grupos que agora se viam mais seriamente entre si, no canto de buscar na Europa as chaves únicas para elaborar o seu futuro. A viragem des-colonial que fai ver a descolonizaçom como projecto inacabado a nível mundial está acompanhado de viragens des-coloniais em diferentes partes com características locais mas em relaçom e diálogo com essas outras viragens. Acho que é esta angueira na que cumpre afundar nos nossos dias, mais ainda quando escuitamos berros de revoluçons culturais que promovem precisamente a descolonizaçom, por exemplo, Bolívia. Sujeitos normativos na América Latina, quer dizer, comunidades mestiças, mas também outros sujeitos comprometidos com visons nacionais tradicionais, incluindo pretos e indigenistas mesmos, estivérom ancorados nos anti-imperialismos eurocentristas ou neo-coloniais dos séculos XIX e XX. Podemos todos juntos entrar no projecto variado e múltiplo da descolonizaçom? Em que havia consistir esse projecto hoje? Cuido que esse é o repto que temos hoje diante nossa.