A meados de noventa do século passado, a vida social em Arteixo estava condicionada pola presença intimidadora da refinaria de petróleo, o polígono industrial, e umha indústria têxtil que, se bem já acusava os efeitos da deslocaçom da produçom em plena éxtase do capitalismo global, ainda mantinha um exército bem numeroso de mulheres prisioneiras às máquinas de costura sob um ritmo de produçom infernal durante extensas jornadas laborais, encerradas em garagens que mal dissimulavam o aspeto dumha oficina de trabalho e cobrando salários ridículos sem segurança social; quando nom era a própria morada das trabalhadoras convertida em atelier onde se armazenavam dezenas de sacos de roupa distribuídos entre os quartos, à espera de que maos ágeis e hábeis, destinadas a padecer artrose de por vida, coseram e descoseram milhares de botons como máquinas autómatas.
Nessa altura, nós começávamos a nossa andadura no liceu onde se nos ensinava, nas aulas de história, o “domestic system” como sistema primitivo de produçom capitalista, assim como as outras cousas que se ensinam lá e perante as quais reagíamos com a indiferença e o desdém próprios da idade; se algum de nós fomos passando os cursos até finalizar o instituto, foi porque pesava mais a ameaça de irmos engrossar a lista de candidatos para fazer parte do batalhom de empregados das indústrias concentradas no polígono, que qualquer expectativa num futuro sobre o qual nom albergávamos qualquer ilusom. A nossa percepçom de Arteixo era a dum deserto cultural, um terreno baldio cuja única virtude era albergar suficientes descampados entre os prédios feios e pobres em que poder fumar charros passando desapercebidos. Nas terras que vírom nascer a Murguia nom existia tradiçom própria, por isso, tivemos de inventá-la na altura certa onde se alicerçam os cimentos da identidade pessoal. Deste modo, tivemos de tirar as nossas referências de modelos alheios, pondo grande empenho em apropriarmo-nos de significados importados para interpretar as nossas realidades. Na música, no cinema, na política procuramos o alimento para nutrir a nossa desafeiçom, a nossa condiçom de inadaptados e é, nesse preciso momento, que tivo lugar um magnífico acontecimento que foi mudar as nossas vidas.
Nem lembro o como nem o porquê, mas nalgum momento foi parar às nossas maos um exemplar da Gralha, um boletim cultural em formato de jornal, escrito num galego que empregava umha norma proscrita polos nossos professores de língua, polícias da ortodoxia autonómica e oficialista. Parecia-nos que aquele jornal falava diretamente para nós: “Longe de vermos nas gralhas o que outros pobres de espírito, aves feias e agoirentas, vemos uns pássaros sóbrios e livres que no seu grasnar manifestam, como o afamado corvo de Poe:-Nunca, nunca mais. Nunca mais. Nunca mais Galiza desunida, nunca mais a Língua deturpada, nunca mais…”.
A Gralha atingia desta forma os objetivos originais que alumbrárom o nascimento da imprensa ao calor das luitas nacionais e sociais entre os séculos XVIII e XIX, antes do seu desenvolvimento industrial e de se tornar disciplina académica e científica, erigindo-se como elemento indispensável para a vertebraçom de comunidades humanas e criando um espaço para a participaçom dessa mesma comunidade na esfera pública. Para nós, a Gralha, nom era apenas fornecedora de informaçom e formaçom, aliás, inseriu-nos num universo que rachava os estreitos moldes que fomos construindo como autodefesa dumha realidade agressiva, violenta e feia; impeliu-nos para, em palavras de Vicente Risco: “passar dumha atitude contemplativa a umha mais ativa, conformar o mundo à nossa visom, salvar os nossos valores”.
A mudança de século apanhou-me como estudante universitário em Compostela e já com plena consciência de pertença a umha comunidade nacional que aspira à soberania plena. Lá fui testemunho do nascimento do Novas da Galiza, projeto que tomava o relevo da Gralha dumha perspetiva mais ambiciosa, mas levantada com o mesmo ánimo militante e compromisso coletivo. Sem estar nunca integrado nos seus órgaos executivos, e à margem de colaboraçons esporádicas mais ou menos afortunadas, lembro ter-me involucrado no intenso trabalho de divulgaçom e promoçom do jornal entre os círculos que frequentava fora do ámbito estritamente militante; o Novas nascia com umha vocaçom nitidamente popular, o sentido da responsabilidade coletiva para com o jornal ia para além do envolvimento orgánico no projeto, um sentia-se parte dumha aventura comunitária que oferecia múltiplas possibilidades para participar.
Fôrom passando os anos e com eles as distintas etapas do Novas; novas direçons, novas colaboraçons, novas imagens corporativas, novas focagens que acompanhárom, muitas vezes como o seu reflexo, as vicissitudes do movimento de libertaçom nacional, com os seus erros e os seus acertos, estes últimos muitas vezes subestimados. Nom mudou porém, o compromisso militante e a generosidade desinteressada de quem se responsabilizárom por construir umha alternativa mediática que alcançou, com este último número que pom fim a outra etapa do Novas, as 223 ediçons em 22 anos de existência.
Hoje, contemplamos com vertigem as mais de duas décadas de transformaçons globais vertiginosas que acompanhárom o percurso do Novas, e que tenhem mudado por completo o panorama da comunicaçom social: a irrupçom totalitária do mundo virtual, a hiperconetividade em rede que produze, ao mesmo tempo que consome, umha avalancha de informaçom sem hierarquias, igualando todo ato comunicativo até banalizar qualquer significado; assistimos também ao desmoronamento da cultura do consenso praticada pola imprensa comercial, consenso tam rigorosamente denunciado pola crítica de esquerda durante décadas para, finalmente, ser assaltada por um fascismo galopante que encontrou nas redes o seu cavalo de Troia; testemunhamos a crise da imprensa escrita e os seus rendimentos decrescentes no mercado capitalista compensados por generosos subsídios públicos de estados e governos que compram lealdades imemoriais, e pola implementaçom de políticas de precarizaçom laboral e desvalorizaçom dos múltiplos ofícios que intervenhem na ediçom dum jornal, a começar polo próprio ofício de jornalista.
O Novas fecha umha etapa no início dum novo mundo que nasce cheio de incertezas, assediado por umha precariedade material e cultural sem precedentes, e por um capitalismo empenhado na aniquilaçom do espaço público e comunitário, sem os quais, o ato de comunicar torna-se um exercício estéril. A indústria dos meios de comunicaçom abala, e os seus cimentos tremem, mas nós nunca encaixamos no seu paradigma, ficamos nas margens, e nas margens reconstruiremos os nossos próprios meios de forma coletiva, sem necessidade de invocar a palavra hegemonia como se esta tivesse um efeito mágico apenas com pronunciá-la. O nosso objetivo é mais humilde, apenas, como figera o Novas e antes a Gralha, mudar vidas.
*Umha versom reduzida deste artigo foi publicada orginalmente na seçom de opiniom do número de julho de 2024 do Novas da Galiza.