Sou feminista, e agora quê? Lideranças, poder e feminismo

Quando penso em Terra, Pele e Água vejo-nos embulheiradas, com os pés e mãos na terra, caindo, sorrindo, transformando-nos.

Este artigo-pesquisa vai para as primeiras que se lançam ao bulheiro, e atrás delas imos as demais.

A liderança é um termo que associamos quase de imediato como a centralização do poder numa só pessoa, e com habilidades e atitudes alheias, em princípio, à educação destinada às mulheres. Para ser um bom líder, em masculino, precisa-se de capacidade de se impor ao resto, mostrar evidente autoestima e determinação, e saber priorizar a ação para atingir o objetivo sobre o processo e as emoções. Não é difícil, portanto, que se ligue com a opressão patriarcal e capitalista, da qual nós, mulheres feministas, queremos desesperadamente fugir.

Mas realmente a liderança é isso? Ou só isso? 

Cada vez mais estamos a ver representadas nos media mulheres como bons exemplos de líderes políticos, capazes de dirigir um país em situações tão complexas como a recente pandemia mundial causada pela COVID-19. 

A condição de género feminino da Jacinda Ardern, primeira-ministra da Nova Zelândia, por exemplo, é colocada como uma virtude que parece capacitá-la especialmente para poder reagir dum jeito firme, efetivo e lógico, sem perder a empatia, cuidados e ternura. Ela, além de ser mulher, mãe, e primeira-ministra, que lhe dá uma certa autoridade social e política, é uma confessa feminista e defensora dos direitos LGTBIQ+, o que, em princípio, pode causar sobretudo comichão. 

Além das diferenças que podemos ter em termos de representatividade e/ou ideologia política com a Jacinda, e outras mulheres da política institucional, é interessante ver como aos poucos se começam a reconhecer modelos menos masculinos ou masculinizados de liderança como válidos e efetivos. 

No âmbito do ativismo social em espaços mistos, as mulheres continuamos na maioria dos casos tendo que insistir para que a nossa voz se escute, se nos legitime e/ou se mudem jeitos de fazer patriarcais por abordagens mais feministas. Incluindo as evidentes deficiências na gestão do assédio sexual e agressões machistas com que temos de lidar. Não costuma haver surpresas.

Imagem: Ruth Matilda Anderson

Como resultado procuramos nas organizações só de mulheres um espaço de liberdade, e sobretudo segurança, em que possamos focarmo-nos na análise e criação de alternativas. No entanto, quando chegamos à coletividade feminista encontramo-nos de frente com uma importante questão, porque se bem não queremos reproduzir os jeitos patriarcais de nos organizar, também não aprendemos outros.

Em vista disso faz sentido abordar nesta seção conceitos lidos da perspetiva patriarcal e que afetam os nossos processos grupais – como já fizemos com os cuidados anteriormente – e agora fazemos com a liderança, seja para os transformar ou destruir.

Como sozinha não conseguia amarrar todos os fios, pedi ajuda nas redes sociais através duma série de perguntas que deram o seguinte resultado. 

Espero que sobretudo sejam de utilidade para todas para continuar a questionarmo-nos, conhecermo-nos e transformarmo-nos.

A centralização do poder

Se em algo estamos de acordo é que o risco maior em que se encontram muitas organizações, também feministas, é quando o poder, quer dizer, a capacidade de apresentar propostas, tomar decisões e conseguir que o grupo as leve para adiante, se concentra em uma ou poucas pessoas. 

Isto pode acontecer por causa da particular predisposição de algumas em tomar a iniciativa, ter visão e projeção de futuro, e capacidade de transmitir ânimo e energia ao resto de companheiras. O que definimos como habilidades de liderança.

Obviamente também sucede porque outras mulheres do grupo as legitimam, bem seja porque as consideram eficientes, porque não consideram que elas o sejam, ou porque simplesmente não têm interesse no assunto.

O que em princípio poderia funcionar, se todas as partes estivessem de acordo, e o estivessem sempre – e se o feminismo fosse menos feminista, e nom se importasse com isso da igualdade, desierarquização e transformação social –, termina sendo uma das principais causas de conflito nos grupos feministas. 

Com o tempo estabelecem-se núcleos de poder que, por efetividade, familiaridade ou comodidade, terminam contando mais com elas próprias e com as que pensam como elas, e menos com as que ficam mais afastadas ou pensam doutro jeito.  

A preguiça das seguidoras

Por outro lado, uma queixa que se coloca nas mulheres que preferem seguir e assumir as iniciativas de outras, é a excessiva comodidade deste posicionamento, que permite um maior desapego e menor compromisso com o projeto e os possíveis conflitos que se geram. 

A distribuição de poderes, e portanto responsabilidades, pode ocasionar o que na pesquisa se define como “preguiça das seguidoras”. Não se refere tanto a culpabilizar as individuas, mas a salientar que este sistema não é eficaz em promover a participação ativa das mulheres, senão que mantêm os padrões habituais de delegar o poder e responsabilidade noutras, nas “especialistas”. 

O grupo pode, em consequência, sofrer de apatia e desmobilização. Tomam-se decisões, mas não se executam. As relações são menos colaborativas e mais de dar um serviço e recebê-lo. 

A centralização do poder implica nesta situação também a centralização do trabalho, e as poucas mulheres que assumem responsabilidades, terminam ficando exaustas. 

O sistema assemblear

Um jeito de evitar o problema da centralização do poder, e da preguiça das seguidoras, é que não haja poder. Ou pelo menos que esse poder, redefinido, em capacidade de fazer cousas e tomar decisões, esteja repartido e assumido por todas as integrantes do grupo. 

O sistema assemblear, utilizado pelos grupos anarquistas, e de esquerdas em geral, e, claro, por uma importante parte do movimento feminista na Galiza, coloca a responsabilidade e compromisso nas mãos de todas e não só de umas poucas. É o grupo quem decide que objetivos se precisam atingir, como se vai desenhar o processo, e distribui as tarefas para a sua execução. 

A tomada de decisões mais comum neste sistema é o consenso em que, ao contrário da votação em que a maioria decide, uma proposta é aceita unicamente se todas as mulheres estão de acordo. A oposição duma só seria suficiente para que nom fosse para adiante, pelo menos temporariamente até que mais informação seja apresentada, haja mais debate e/ou se apresentem propostas alternativas que atendam as objeções da pessoa/s opositoras/bloqueadoras.

Este modelo tem promovido uma maior igualdade de oportunidades e sentimento de pertença e poder entre as participantes, e quando tudo vai bem, conseguem-se acordos com que o grupo se sente mais implicado.

No entanto, precisa duma maior consciência, capacidade de escuta e diálogo, e investimento de tempo. São processos complexos que podem tornar-se pouco operativos, demorando e até paralisando tomadas de decisões urgentes, gerando tensões, cansaço e a desmotivação no grupo.

Uma outra crítica que se lhe faz é não ser capaz de eliminar nem as hierarquias nem as lideranças totalmente. Estas continuam a encontrar no espaço da Assembleia, de carácter eminentemente oral e performativo, um bom lugar onde as personalidades mais carismáticas podem influir no grupo, e onde trazer também os núcleos de poder, criados off-assembleia.

Redefinir a liderança

Apesar da crítica à liderança, a maioria das respostas na pesquisa consideram que é necessária no movimento feminista, mas especificam que não tal como é entendida no mundo patriarcal. Precisa ser renomeada, e sobretudo redefinida. Não se está interessada em manter as líderes no sentido tradicional masculino, mas sim se apreciam as funções e valor que tem a coordenação, guia e gestão que representam.

Experiências em grupos sem claridade de objetivos, sem um apoio e orientação que ajude a passar do sonho à realidade, das ideias às ações e resultados, e sem capacidade para projetar a sua voz no espaço público, geram também frustração, desânimo, e podem chegar mesmo à desvalorização e desagregação da coletividade feminista. 

O medo a converter-se em lideresa feminista-macho/masculinizada – ou a ser percebida como tal –, o medo à responsabilidade, tendo que assumir uma carga de trabalho maior do desejado, e o risco de cair na extrema autoexigência que nos caracteriza como mulheres educadas como mulheres, resulta em que, com demasiada frequência, nos afastemos desse papel.

Imagem: “Operários” de Tarsila de Amaral

Torna-se portanto essencial a procura de alternativas que sejam igualitárias, efetivas e que cuidem das mulheres e do projeto. Um modelo em que as funções de coordenação, organização, logística e visibilização pública sejam intercambiáveis, facilmente assumidas por diferentes mulheres em diferentes momentos. Em definitivo, uma liderança, de acordo com os contributos recolhidos na pesquisa prévia a este artigo, redefinida como:

“repartida entre as companheiras”, “marcada pelo bom trato e o reconhecimento da outra”, “como um motor de ação”, “deve ser pactuada, consciente e regulada”, “implica mais responsabilidade, não ter mais razão”, “precisa de ser rotativa”, “fluida e englobando todas as participantes”, “baseada na corresponsabilização”, “que favoreça as lideranças das companheiras”, “inspiradora e germolo de novas inquietudes, novas correntes…”, “generosa, cuidadosa, afastada do poder”, “despatriarcalizada”, “não-violenta”, “comunitária”, “empática e dialogante”, “exige uma grande honestidade, humildade e proatividade individual”, “compartida, flexível e horizontal”, e “o suficientemente plástica para ser assumida e deixada por qualquer participante do grupo quando precise e deseje”.

Conclusões

O conhecimento e consciência das mulheres feministas galegas a respeito da liderança em toda a sua dimensão, fica evidente com as achegas apresentadas neste artigo. Teria sido impossível para uma só pessoa, para mim, encontrar os diferentes matizes e experiências que o compõem. Daria para muito mais e fico com a pena de não poder incluir todas e cada uma das vozes, mas também com a vontade e compromisso de continuar a indagar e aprender nesta direção.

A cultura ocidental tem silenciado a nossa voz sistematicamente, especialmente a nossa voz pública, a capacidade de nos expressar e contribuir para a construção da sociedade. Tem-nos relegado ao espaço privado, desvalorizando-o, do mesmo jeito em que nos desvaloriza a nós, ocultando que o seu bom funcionamento era e é o motor do sucesso do espaço público. 

“Não é fácil encaixar as mulheres numa estrutura que vem codificada como masculina. Portanto, é preciso modificar a estrutura. Isto implica conceber de uma outra maneira o poder. Implica desconectá-lo do prestígio público. Implica concebê-lo de modo colaborativo, como o poder das seguidoras, e não só das líderes. Implica, sobretudo, conceber o poder como um atributo ou mesmo como um verbo (“apoderar”), não como uma possessão.”

Mary Beard – Mulheres e poder. Um manifesto