Pablo Pesado (Ferrol, 1992) é um dos numerosos exemplos de galegos que adquirírom consciência nacional na experiência emigratória. No seu caso, conheceu a existência do arredismo a partir das inquedanças intelectuais e da pesquisa académica, campo no que hoje segue profundizando. Investigador, escritor, professor de ensino médio e membro do Espaço Clara Corbelhe, tem entre as suas linhas de pesquisa as relaçons entre poder intelectual e poder político. Com ele falamos do papel dos notáveis da cultura, dos tabus do oficialismo e das possibilidades emancipatórias que pode dar o pensamento.
Como começam as tuas inquedanças políticas?
Relativamente tarde. Nascim em Ferrol, numha família de classe média funcionarial que nom estava especialmente politizada. A questom nacional era um tema presente, como em qualquer casa galega, mas sem maior protagonismo. Por exemplo, eu lim o “Sempre en Galiza” porque estava na biblioteca da minha casa, mas era apenas o primeiro tomo. Lembro a adolescência como um período de incipiente politizaçom, em que entre as amizades começávamos a discutir mui empenhadamente sobre marxismo; mas isso nom nos chegou a levar a nenguma militância formal. Já na universidade, decantei-me por Língua e Literatura Espanholas que de entre todas as filologias é a que, logicamente, menos perfis militantes subministra aos âmbitos soberanistas. Assi que para encontrar a minha primeira experiência propriamente política nesse sentido tenho que retrotraer-me à minha marcha à Catalunha, em 2014. A minha toma de consciência nacional véu ligada a dous processos paralelos: à vivência do emergir independentista alô e ao início da minha tese de doutoramento, mui centrada nas conexons entre literatura e questom nacional. A coincidência desses dous feitos fijo-me perguntar-me mais ativamente sobre o independentismo galego, que eu conhecia mui imperfetamente: existia aqui algumha cousa semelhante ao que estava a viver?
Como foi, mais concretamente, esse processo?
Pois a verdade, vivim-no dumha maneira quase exclusivamente intelectual, através da leitura individual de textos que eram acadêmicos, e nom políticos no sentido clássico. Tenho gravada a mesa exata da biblioteca da Universitat Pompeu Fabra onde comecei a ler os clássicos dos estudos do nacionalismo (como Anderson ou Hobsbawm) e a encontrar muitas respostas ao que estava a acontecer na Galiza. De resto, falava dessas questons apenas com umas poucas pessoas (o meu melhor amigo, a minha parelha…). Foi um processo acho que bastante anómalo, porque as tomas de consciência costumam ser grupais, e esta foi enormemente privada. Ainda que na verdade o que um vive como privado em certo sentido é sempre público.
E nom tinhas notícia nenhuma do independentismo galego?
Eu nunca tivera conexons com as redes do independentismo, polo que as notícias que tinha eram escassas e mui mediatizadas. Podo lembrar por exemplo a propaganda de rua de quando criança; como os murais de NÓS-UP; com certeza lia isso com preconceitos demonizadores, mas sobretudo predominava certa confusom. Porque eu passava umha e outra vez por diante destes murais e nom tinha aceso às chaves para os interpretar: resultava-me enigmáticos. Foi mais tarde o quando descobrim que existia uma longa trajetória independentista local, e para além de detectar o que todos conhecemos, que era minoritário e instável organicamente, pareceu-me muito interessante o seu carater restaurador: restaurador de velhas ideias soberanistas que abrolharam no século XIX, e que, reaparecendo aqui e alá, configurárom uma tradiçom própria e bem definida.
A minha politizaçom um processo acho que bastante anómalo, porque as tomas de consciência costumam ser grupais, e esta foi enormemente privada. Ainda que na verdade o que um vive como privado em certo sentido é sempre público.
Imos entom com a pesquisa. Como relacionache esta nascente inquedança nacional com a tua orientaçom investigadora?
Para abordar esta questom acho interessante pensar qual era a minha posiçom persoal com respeito ao campo académico naqueles anos na Catalunha. Eu cursava um mestrado centrado na comparaçom entre a literatura e a filosofia, mui encaminhado à investigaçom doutoral. Mas já desde a própria carreira eu sentia um certo distanciamento da academia, no sentido que percebia umha certa carência de sentido prático. Eu som dumha geraçom que se beneficiou do acesso massivo aos estudos superiores; mas, ao mesmo tempo, enfrentamos um efeito funil mui ligado à crise de 2008. Intuímos desde mui cedo as poucas possibilidades de futuro que nos oferecia a universidade, e isso fijo-nos virar anti-académicos. Uma pergunta mui comum na altura era: para que serve todo isto?
Mas esta crítica à academia dá-se entom por verdes falta de oportunidades pessoais?
Eu acho que quando um fai sociologia tem sempre de começar por um mesmo. O que aponto é antes de mais um dado geracional, que explica certa reaçom anti-acadêmica de persoas de altos estudos. Mas a razom que apontas é certa; havia um certo rancor, mas que seja um sentimento pouco nobre nom implica que as conclusons a que leva sejam sempre falsas. Por exemplo, esse rancor tem levado historicamente a criar poderosos espaços alternativos de pensamento. A falta de oportunidades, quer dizer, pode servir também como um revulsivo. Contudo, também havia algo de perfil pessoal neste distanciamento. Há pessoas que por origens de classe mui determinadas, e por afincarem em fortes disciplinamentos e rotinas, som quem de pensar desde mui cedo no longo prazo e cultivar um perfil académico. O meu carácter e a minha condiçom nom ia por aí, eu tinha uma personalidade diletante mais própria dos âmbitos artísticos, de modo que ao ver que essas portas de aceso nom se iam abrir facilmente, foi fácil privilegiar as minhas inquietudes políticas e intelectuais e investigar o que realmente desejava. O qual, aliás, nom teria sido possível sem o mecenado constante da minha família.
Entom começas umha orientaçom investigadora mais aberta à prática, aos movimentos?
Si; para mim tinha sentido aceitar as vias académicas se ofereciam algumha traslaçom com as comunidades políticas que me interessavam na altura, marxistas e independentistas. Comecei a minha tese na USC baixo a direçom do Arturo Casas. A minha ideia inicial era estudar as relaçons entre as classes intelectuais e os seus textos, por um lado, e a capacidade de mobilizaçom política, por outro. Queria saber se a literatura era um instrumento político realmente produtivo. A minha hipótese, que ainda mantenho, era que os textos literários som, com efeito, performativos, sim actuam na realidade; mas som muito mais eficazes para manter consensos reaccionários e desmobilizadores do que no sentido contrário.
Havia um certo rancor anti-acadêmico, mas que seja um sentimento pouco nobre nom implica que as conclusons a que leva sejam sempre falsas. Por exemplo, esse rancor tem levado historicamente a criar poderosos espaços alternativos de pensamento.
Em que objecto de estudo te centrache para provar a tua tese?
Eu comecei a estudar os distintos textos literários e discursos que foram utilizados para fundamentar culturalmente o projecto da Galiza autonómica, e acabei centrando-me num em concreto: o ‘realismo mágico’. A partir dos anos 70 iniciou-se uma competiçom entre distintos grupos de poder cultural por patrimonializarem esse modelo literário e difundirem assim as suas agendas políticas. Utilizando palavras de Roberto Samartim, havia um polo ‘oficialista’, aquele que procedia do aparelho da ditadura, que ainda acreditava num regionalismo de procedência falangista; havia também um sector “resiliente”, próximo a Galaxia e ao círculo de Piñeiro, que formulava a prioridade dumha literatura ‘normal’, quer dizer, nom política. Eles pensavam que a comunidade precisava símbolos nacionais, mas que nom complicassem o consenso político que se tecia daquela. E finalmente estavam com os sectores “resistentes”, os autodeterministas, que apostavam nas margens e numa literatura de compromisso. O ‘realismo mágico’ era uma tendência de muito sucesso internacional que para além quadrava mui bem com os estereótipos regionalistas e as ideias de cultura galega difundidas desde Galaxia. Umha Galiza mágica, sonhadora, irreal, que nom diferencia mui bem o real do imaginário, que nom é demasiado apta para a política… Assim que nessa altura começou uma disputa por importar o realismo mágico e por usá-lo para mover os públicos leitores para distintas posiçons políticas. As posiçons mais rupturistas, concluim, acabárom por contribuir sem querer aos novos consensos identitários, porque, como antes comentava, a literatura trabalha melhor mantendo o estado de cousas que o subvertendo.
E apesar disso, parece inquestionável o papel dos literatos na nossa construçom nacional…
Os intelectuais e os literatos precisam da naçom, da história e da língua, porque som o seu sustento. Daí que se empenhem uma e outra vez nessas causas e que até costumem liderá-las. O caraterístico do nosso contexto é que desde bastante cedo há dous projectos em concorrência e dous polos de atraçom intelectual. Historicamente, o espanhol resultou mais atrativo por ser o ganhador (e quando o conseguiu ser, tendeu a empregar ferramentas repressivas). Todo isto produziu desde mui cedo um amplo repertório de abandonos do próprio país. Mas o Estado espanhol nom pudo, nem pode hoje, dar ocupaçom a todas as pessoas que conformam as classes intelectuais galegas. E, por outro lado, nom poucas das anteriores fôrom cientes de que iniciar um projecto nacional próprio seria mui pouco proveitoso no curto prazo, sim… mas no longo ofereceria grandes oportunidades. A partir daí, a solidez das trajectórias político-intelectuais já é díspar. Há um momento mui interessante, de muita potência, o dos intelectuais provincialistas-regionalistas, mas isso nom perdura no tempo. Topamos um segundo ciclo, o da intelectualidade já definida como nacionalista, enormemente interessante em termos históricos, mas que em muitos sentidos nom amplia a anterior, recorta-a. Nom perdamos de vista que a geraçom dos Risco, dos Castelao, dos Vilar Ponte, fôrom mui claros em negar o independentismo, palavra que sempre aparece negativamente conotada nos seus textos. Por isso eu, quando por exemplo se analisa a figura de Piñeiro como despolitizadora do que véu antes, concordo só em parte; porque houvo desnacionalizaçom, si, mas muito do que lhe é criticado pode aplicar também ao grande “cânone oficial” de próceres nacionais. Umha outra cousa é quando emerge o marxismo de libertaçom nacional nos anos 60, essa é outra história.
Pensas que há umha certa tradiçom de renúncia nacional do intelectual galego?
Historicamente, os intelectuais na Galiza caracterizam-se pola renúncia de funçons. As figuras que se decidem a alimentar um projecto próprio som poucas, porque existe umha tradiçom milenar, mui funcional, de serviço em Espanha. É certo que a corte nom dá muitos postos para a Galiza, mas os que oferece som bons. Pensemos numa Pardo Bazán, por exemplo. Mas também deveríamos levar em conta que essa posiçom será sempre subordinada e instável. Torrente Ballester e Cunqueiro recebêrom todos os prestígios que Espanha podia conceder a um escritor; mas hoje, passado o tempo, vam desaparecendo dos manuais literários espanhóis. Resultárom úteis no final do franquismo como reconhecimento simbólico para a Galiza, promessa de que a via unionista lhes iria bem aos intelectuais; hoje, porém, já nom o som, e ninguém fala deles fora do país.
Nom perdamos de vista que a geraçom dos Risco, dos Castelao, dos Vilar Ponte, fôrom mui claros em negar o independentismo, palavra que sempre aparece negativamente conotada nos seus textos. Por isso eu, quando por exemplo se analisa a figura de Piñeiro como despolitizadora do que véu antes, concordo só em parte
Fas isto extensível à intelectualidade galeguista?
Existe umha intelectualidade local que podemos caracterizar como autonomista, que nom visualiza que a melhora da sua posiçom passe por umha conceiçom do nacional galega mais ambiciosa. Componhem a maioria das elites que dirigem as nossas instituiçons culturais (RAG, CCG, ILG…). Tenhem um sentimento galeguista honesto e forte, isso sem dúvida; mas acham que a integraçom em Espanha ainda pode deitar melhores resultados dos que já conhecemos por estes últimos quarenta anos. Nos âmbitos independentistas essa intelectualidade é mui criticada; disse dela que só procura poder institucional, as famosas ‘cadeiras’. Eu acho que é um diagnóstico errado. Nom é a mesquindade a que funda essas posiçons, ao contrário; é mais bem o temor de que, sendo o nosso projecto nacional tam fraco, é impossível aspirar a muito mais. A questom é que som elites e instituiçons mui unificadas e com uma enorme capacidade de reproduçom, isto é, de selecionar as pessoas que conformarám as seguintes geraçons de poder intelectual. Como é lógico, isso dificulta uma renovaçom discursiva que inclua novos repertórios político-nacionais. Algo que reforça a nossa cultura política geral, mui temerosa, e até perseguidora, do debate público. Como os postos culturais de valor som escassos, é habitual os intelectuais, ou os aspirantes a, praticarem a auto-censura, auto-limitar-se até acabarem pensando dentro duns limites mui estreitos.
Quais som os limites ao debate que apontas?
Há muitos e mui diversos, como em quase todas as culturas políticas. Mas o tabu distintivo da nossa, polas suas peculiaridades nacionais, é a evidente: a proposta independentista. Linhas secundárias, embora nom sejam explicitamente políticas, mas que podam derivar aí dalgum modo, também nom som bem vistas. Pensemos na questom da norma ortográfica, por exemplo. Especificamente no campo literário, tenho estudado ultimamente a rejeiçom ativa da literatura experimental, que vai em contra dos ideais do que uma cultura e uma literatura ‘normais’ devem ser. Em geral, se na Galiza procuramos debates públicos de fundo nom os encontraemos, porque se entende que a discussom nom deve ser aberta. A comparaçom entre a discussom pública e a privada na Galiza é verdadeiramente alarmante: nom tenhem nada a ver a uma com a outra, sendo a primeira quase um simulacro. As pessoas que querem fazer parte da intelectualidade galeguista nas instituiçons sabem que palavras utilizar, tais como ‘normalizaçom’, ‘galeguismo’, etc, e quais ficam fora.
Segue a ser o reintegracionismo um tabu, ou é já um valor transversal na Galiza?
Devo ser mui prudente nisto, porque cheguei mui tarde a esta posiçom. Fixem-me neofalante aos 25 anos, e reintegracionista há cousa de um ano (com 31), embora fosse uma transiçom que sentia pendente desde havia muito. Portanto só podo falar da minha limitada visom. Dum olhar superficial ao debate hoje, há umha imagem de abertura global a esta posiçom e de maior diálogo com a institucionalidade. Nom vou dizer que isso nom seja benéfico, especialmente em termos de imagem para o reintegracioinismo. Mas, até onde eu sei, esses diálogos nom se acabam de concretizar em nada. O que existe é, com efeito, umha baixada da tensom, mas isso nom conduz a que o tabu da norma deixe de operar.
Em geral, se na Galiza procuramos debates públicos de fundo nom os encontraremos, porque se entende que a discussom nom deve ser aberta. A comparaçom entre a discussom pública e a privada na Galiza é verdadeiramente alarmante
Indo a questons mais amplas, como membro do Espaço Clara Corbelhe, e num tempo onde a figura do intelectual pareceu perder o peso que tivera nos ‘60 ou nos ‘70, que papel resta ao pensador ou pensadora em relaçom com os movimentos sociais?
Eu penso que todas as sociedades tivérom e tenhem notáveis, pessoas cuja voz tem umha autoridade especial, e som por isso particularmente escuitadas. Isso nom é mau de por si. Certamente, hoje essa voz nom se restringe à pessoa que escreve livros, pode ser um tuiteiro, umha professora de liceu, qualquer posto laboral onde a voz de umha pessoa é respeitada. Em poucos lugares há tanta construçom de discurso hoje como em TikTok. A intelectual tradicional, a ligada aos livros, tem que assumir que hoje a sua voz é menor, que é apenas um elo mais de uma longa cadeia de discursos e ideias. Mas isto nom lhe resta importáncia.
O papel da intelectualidade tradicional, produtora de ideias escritas, é escolher mui bem que informaçom e formaçom vai transmitir aos elos da cadeia que tem próximos. Na Clara Corbelhe tentamos levar a cabo justamente esse labor
É uma importáncia qualitativa que nom se deve medir na influência demográfica bruta, esse é um erro mui comum. Se bem a sua voz nom chega a todas as classes sociais e a toda a populaçom, si chega a pessoas e grupos com capacidade dirigente. Se calhar umha escritora de novela nom tem um enorme seguimento popular, mas a questom é em que classes sociais e posiçons de poder si é efetiva. A literatura condiciona o funcionariado que a lê, as docentes que a recomendam, a revista cultural que condiciona os discursos possíveis, as políticas que tomam dela o seu sentido comum, etc. Há portanto um labor de peneirado e difusom de ideias que tem grande poder, e decidir abandonar essa funçom seria, ao meu ver, um grande erro. O papel da intelectualidade tradicional, produtora de ideias escritas, é escolher mui bem que informaçom e formaçom vai transmitir aos elos da cadeia que tem próximos. Na Clara Corbelhe tentamos levar a cabo justamente esse labor: conectar as comunidades investigadoras, intelectuais e militantes para criar redes de pensamento e de praxe política mais fortes e preparadas para enfrontar os problemas do presente.