Como peche dos cafezinhos dedicados ao número 6 “Há um elefante na sala” quisemos recuperar o tema dos cuidados, selecionado polas nossas leitoras no inquérito que realizamos em setembro, e trazer novamente, um ano depois, aquele ambiente dos debates abertos revirados, em que parecia podíamos falar de todo, ou polo menos intentá-lo.Este cafezinho teve lugar o sábado, 9 de janeiro de 2021, partindo como base das seguintes questões:Os cuidados é um termo com o que muitas feministas gostamos de definir a nossa prática individual e coletiva. Cuidar de nós mesmas e das companheiras coloca-nos a uma fermosa distância das estruturas patriarcais que tanto desprezamos.No entanto, estam a ser estes cuidados um desejo mais do que uma realidade? O que queremos dizer exatamente quando falamos de cuidados? Estamos verdadeiramente a transformar o conceito e torná-lo feminista, ou simplesmente estamos a reproduzir o que já conheciamos?Nos últimos tempos o enfrentamento entre feministas em temas como a prostituiçom, o transfeminismo, a perspectiva queer, o anti-racismo, as manifestações unitárias do 8M, ou o feminismo de classe, tem-nos feito duvidar da efetividade desses cuidados feministas quando surgem as diferenças. Podemos debater e cuidarnos? questom que algumas colocavades nos debates abertos revirados prévios ao número 6.E no trabalho interno das organizações feministas? Conseguimos romper as dinâmicas habituais entre cuidadoras e cuidadas, transcender as hierarquias de poder patriarcal? Somos capazes de cuidar das pessoas sem esquecer o projeto coletivo? Como o fazemos?Do cafezinho, no que participaram 10 pessoas, puderam recolher-se as seguintes notas e pensamentos, sem estes ter qualquer intençom de conclusom definitiva, mas para ser de utilidade, se for o caso, em um processo contínuo de aprendizagem em que muitas coletividades feministas nos encontramos com respeito aos cuidados, tanto dentro da nossa própria organizaçom, como a relaçom com outros coletivos e individualidades feministas:

1 – A romantizaçom do feminismo e dos cuidados, acreditando que nós, por sermos mulheres e feministas temos umha condiçom inata para nos cuidar umhas às outras. E quando isto nom acontece, ficamos decepcionadas de nós mesmas, mas sobretudo das companheiras.

2 – As altas expectativas que colocamos nas nossas coletividades feministas, exigindo que cubram todas as nossas demandas, do mesmo modo em que, em casos, acreditamos que o deveria fazer um/umha parceiro/a, ou rede afetiva/familiar no contexto patriarcal.

3 – Mas para cuidar, embora seja numha perspectiva feminista, e afastando-se dos cuidados patriarcais, é preciso igualmente ter condições, recursos, tempo, conhecimento e energia. No entanto, o contexto emocional, afetivo, ou economico-social em que vivemos nem sempre no-lo permite, ou só o possibilita parcialmente.  

4 – Sem reflexom, crítica e consciência, sem redefinir os cuidados desde o feminismo, chegamos a reproduzir os papéis de gênero do mundo patriarcal: cuidadoras e cuidadas, trabalho reprodutivo (organizaçom) e produtivo (açom)… assim como mantemos as dinâmicas de competitividade entre nós, luitas de poder, e agressões.

5 – A cultura do nom-debate. A exposiçom de posicionamentos sem entrar em diálogo com as que pensam de forma diferente. Nom dedicar tempo de qualidade à troca de opiniões, a escuitar os argumentos das outras. Participar em tomadas de decisões, com agendas definidas previamente e difíceis de modificar. Negar-se a debater com a outra, porque nom haverá entendimento, porque nom interessa. E também, ir ao debate para escuitar só a própria voz. 

6 – A gestom dos conflitos tem de ser a base dos cuidados. Temos medo dos conflitos porque som processos dolorosos, e rompem o nosso ideal de mulheres feministas. As experiências que temos nom som, geralmente, positivas. Nom sabemos como fazê-lo, nom priorizamos aprender.

7 – Talvez nom seja tanto uma questom de poder debater ideologias e pensamentos diferentes, mas da forma em que o fazemos. É importante, procurar ferramentas ajeitadas e seguras, seja a mediaçom, protocolos consensuados, ajuda externa, a escuita ativa ou outras. 

8 – Ser capaz de falar do que acontece diretamente, sem medo, sem falar por detrás, antes de que se forme uma “bola” que logo seja mais difícil de gerir. Mas para isso é importante reconhecer que existem hierarquias internas que fazem com que umas vozes sejam mais escuitadas do que outras: por questom de antiguidade no feminismo, de personalidade, de implicaçom… As vozes pode que até sejam escuitadas, mas o que acontecerá depois? Terá o mesmo peso e capacidade de materializaçom a voz e proposta das novas do que a das mais veteranas, por exemplo? 

9 – A crítica à falsa neutralidade, expom-se que realmente há temas que nom som debatíveis por uma questom moral, como a inclusom das mulheres trans no feminismo, ou historicamente, as mulheres lésbicas, as prostitutas… Podemos conversar, mas nom debater e legitimar certos posicionamentos. !? 

10 – Ser conscientes da voz do poder, quem fala e determina qual é o posicionamento feminista sobre este ou aquele tema? Fomos todas as feministas tidas em conta sobre a questom da prostituiçom? Do movimento queer e trans no feminismo? Quem fala por nós? Umha senhora da academia de Madrid? Mais umha vez, umhas vozes feministas som mais escuitadas e visibilizadas do que outras.

11 – O mito da diversidade. O que todas queremos, mas sem assumir a complexidade, e o trabalho que requer, acolher vozes e jeitos de fazer diferentes. Respeitar também, as companheiras que priorizam espaços próprios sobre objetivos comuns “brancos”, institucionais, de classe, de língua, de identidade de género, sexual… sentindo e gerindo a incomodidade de serem excluídas, criticadas.

12 – Reconhecer e assumir que estamos num processo de aprendizagem, e que este vai levar tempo. Praticar a compaixóm com nós próprias e com as demais.

13 – Valorizar a capacidade de autocrítica do feminismo, como de se subdividir para dar resposta a necessidades específicas, adaptando-se aos diferentes tempos e contextos. Assumir a impossibilidade de que os diferentes feminismos possam ser controlados, por muito tempo.

14 – Nom queremos ser iguais ao homem opressor branco ocidental, queremos justiça social, criar um mundo diferente. Umha tarefa difícil, incómoda, laboriosa, lenta…mas nom impossível.

15 – Começar com nós próprias a dar os primeiros passos para levar à prática os cuidados feministas, com empatia, assertividade e a humildade de quem está a aprender. Entender que cuidados é olhar para umha mesma, da mesma forma que é olhar para a coletividade feminista. Um acto de reciprocidade, onde dar e receber, escuitar e ser escuitada, cuidar e ser cuidada, e onde todas, de umha ou outra forma, erramos e acertamos. 

16 – Fica a esperança de que vai ser, com certeza, o feminismo o movimento capaz de articular essa forma, de criar esses jeitos de fazer transformadores e libertadores. 

* Texto publicado originalmente em Revirada Revista Feminista.