No passado 13 de dezembro Alexandre Carrodéguas e Óscar Pazos encontramo-nos com o escritor Suso de Toro entre uma e outra apresentação do seu último livro ‘Descobrindo a Ana Pontón’ para falarmos da craque da burguesia nacional galega e da situação actual do país, para perguntar-lhe sobre o futuro dessa Galiza colapsada e pelas possibilidades de sobrevivência de um país eivado. Apenas feitas as saudações, de Toro conta-nos que ele perguntara isso mesmo a Ana Pontón antes de escribir o livro: ‘Tem futuro este país? Ela esperou um pouco e contestou: Tem. ‘De não ser assim eu não tería iniciado este projecto; eu já não estou para perder o tempo’. Assim, junto com o otimismo vital, de Toro comunica-nos uma certa sensação de urgência pelo pressente, uma necessidade sentida entre o nacionalismo de governar já para resgatar o país. A entrevista discorreu sem apenas perguntas, passando duns temas a outros com naturalidade.
Começamos com “Um Senhor Elegante”. Como foi a desmemória, como foi que a família renunciou à memória galeguista do avô, Ramón Baltar? Que aconteceu com essas memórias galeguistas nas famílias burguesas da Galiza?
O problema, muito interessante embora não contado na novela, remete-nos ao franquismo, que não foi uma simples ditadura mas um regime totalitário que criou individuos e famílias novas, criou uma mutação. Para compreender este fenómeno haveria que reconhecer o radicalismo com que o franquismo, de um modo consciênte e sistemático, impediu a transmissão de memórias através do terror, do castigo, do medo. O franquismo atinguiu impedir a transmissão cultural, e agora temos uma rutura absoluta com o passado republicano.
Antifranquismo ‘ex novo’.
Isto condicionou a mesma resistência antifascista, que nasceu sem conhecimento e transmisão do seu passado galeguista. No livro conta-se como Antonio Baltar explica aos outros o que aconteceu: ‘Este é já um outro país. A nós não nos conhecem, não saben quem somos’. Esa experiência é fundamental para compreender. Quando iníciam a UPG, fazem do zero; não têm referências do republicanismo. Eles têm algum contacto esporádico com alguém que volta do exílio, da Argentina, mas têm que reinventar o galeguismo, e fazem-o, logicamente, em contacto cos movimentos da época de libertação nacional, do anti-imperialismo, a descolonização, etc. É a mesma experiência têm os republicanos espanhois e a direção do PCE no exílio, em França. Quando volta Jorge Semprúm também acha uma sociedade que já mudara. Mas acima de tudo o que há é uma geração que já não fora formada no que antes chamava-se liberalismo democrático, ou cultura democrática, não.
Eu, como militante antifascista que fui, vivo com desgosto as críticas de que o antifranquismo não era democrático. Claro que não era, não eramos democratas nenhum porque não nos foi permitido conhecer o pensamento republicano, democrático. Nem os franquistas nem os antifranquistas podiamos ser democratas, porque houve uma rutura absoluta na transmissão do que era viver com naturalidade e sem medo. Aqui eramos todos formados por curas e militares.
Isto é fundamental para compreender que o novo galeguismo nasce de um desconhecimento absoluto. É dizer, os galeguistas, os universitários galeguistas das décadas 1950 e 1960 não sabiam quen era Castelao. É assim. Não sabiam.
O pinheirismo.
Logo haveria que falar do que foi a mitificação, o que significou o desvio, a cisão do pensamento histórico do galeguismo, a heresia se quiseres, -decerto não gosto da palavra-, mas o desvio que é o pinheirismo, a renúncia tanto ao projecto republicano como a uma Galiza política, o que implica uma perda. É uma volta a uma idea de galeguismo metafísico, que perde o seu carácter político, cívico e político. Mais seria outro tema…
Eu, como militante antifascista que fui, vivo com desgosto as críticas de que o antifranquismo não era democrático. Claro que não era, não eramos democratas nenhum porque não nos foi permitido conhecer o pensamento republicano, democrático.
Consciência histórica e memória prática.
Para min o fundamental é o trabalho do franquismo, porque pode ocorrer o que ao filho mais velho de Ramón Baltar, Luís, que era médico como ele, e muito próximo do pai, até muito parecido físicamente e na forma de falar, e estudou também no exterior, na França, e quando via cá trazia L’Humanitê, o jornal do PC, e aínda Baltar fazia-lhe encomendas para lá para ajudar algum exiliado, mandava-lhe dinheiro, etc. Quer dizer, esse ainda é consciente da história, tem uma consciência histórica, embora tenha morrido novo. Os filhos menores já não tiveram essa prática.
Ramón Baltar ainda seguiu a prestar ajuda humanitária às famílias, daria assistência a algum guerrilheiro fugitivo, embora o projecto de resistência já estava acabado, as redes liquidadas, e portanto a memória histórica ficou destruida. Então já ele ajudava a projectos como a Casa de Rosalia, a editorial Bibliófilos Gallegos, é dizer, botava uma mão a projectos culturais. E logo resta simplesmente a educação prática dos filhos para se inscreverem num projecto de vida profissional e num ambiente de classe, que era o que havia; um meio dominantemente franquista, ignorante de tudo.
E como a família receveu a revelação das atividades mais comprometidas de Ramón?
Pois de acordo ao distinto perfil que, naturalmente, havia, uma parte ficou enormemente feliz, foi para eles uma descoberta alegre, aliás, outros tiveram mais dificuldade para dar por bom um relato novo do pai; mas no geral muito bem e hoje o livro é aceite, especialmente, por filhas e filhos. Nas novas gerações, logicamente, já houve mais diversidade, com desapego e mesmo atitudes de total indiferença ao legado do avô ou bisavô, indignas em algum caso da sua memória.
De burguesia foránea à galega: da Revolução Galega ao Partido Galeguista
Olha, segue a ser o tema de buscar referências. Quem define a Galiza moderna por vez primeira não são elementos que perteçam a uma classe dominante, são inteletuais, não digo desclassados, mas sem ligação aos elementos burgueses.
Eu sou moi reivindicador da geração de 1846. A da Revolução Galega. Cá para min, o pronuciamento político da ‘Junta do Reino de Galicia‘ é fundamental, pois já é soberanismo, absolutamente. E é um pensamento radical-democrático que había na Europa na altura, que incluía um carácter social profundo, de reforma social, e por trás dele está uma geração democrática, revolucionária, com a grande figura de Antolín Faraldo. A geração fica liquidada coa revolução, a uns matam-os e outros fogem, e depois vem Murguia. E claro, cum nesgo novo, que sempre é necessário, pois toda construção nacional pede referências e legitimação histórica, mas perde-se a alegria e a liberdade democrática que tinha a geracão anterior. Sempre achei essa uma grande perda, e também que o galeguismo não percebera que fora essa geração de Faraldo que enuncia o soberanismo, que é a geração que nutre Rosalia, de facto muito mais democrática e radical ca Murguía.
Então, o galeguismo formula-se por elementos básicamente intelectuais, como ocorre em todos os sitios, mas no XIX também fracassa porque o pensamento nacional destes elementos não chega conectar com a burguesia. Há exceções, claro, como o caso de Domingo Fontán, intelectual e burgués, certamente maçom. E bem, haveria que vê-lo com mais cuidado, historiá-lo com jeito, mas uma causa da desconexão seria o carácter foráneo desta burguesia, que seguia a casar entre si, igual que fixeran os camerães en Santiago ou os catalães en Vigo, e mais outros lugares. Ainda no 1992, ou por aí, contara-me Camilio Nogueira, que fora engenheiro da Citroen e logo trabalhara na Sodiga, que em conversa cum empresário de Vigo este referia-se aos seus trabalhadores coma los gallegos. É uma imagem lamentável de não-inserção.
Quem define a Galiza moderna por vez primeira não são elementos que perteçam a uma classe dominante, são inteletuais, não digo desclassados, mas sem ligação aos elementos burgueses.
E o empresário, era galego?
Era de Vigo. El não se identificava coma galego. Antropológicamente, culturalmente, não tinha noção dessa identidade, não morava no mesmo país. Pois, foi o facto dessa endogámia, mais de clã do que de classe, que eu acho não permitiu o enlace com os intelectuais. Agora bem, nos anos da República, aliás, no Partido Galeguista Republicano há por primeira vez um projecto maduro do galeguismo, com empresários que sim estavam a participar e já experimentaram formas moi criativas socialmente, e esse é o momento que teria iniciado uma dinâmica nova, mais isso rompeu-no o franquismo.
Pepe Miñones
É um caso evidente, como muitos outros, um pequeno empresariado que foi paralisado e liquidado. A figura de Bóveda, também, que trabalhava para a Caja de Ahorros e estava já a pensar nos problemas da Fazenda Galega. E logo os Fernández em Vigo, claro. É un momento fulcral. Nesses anos da república há efectivamente uma intelectualidade conectando coa burguesia, um processo que o franquismo amputou; essa é a palavra: amputar, cortar e jogar fora, de jeito que não exista mais ese pedaço, que não se conheça. A sociedade ficou destruída, também económicamente. E resulta-nos difícil conceber como é que era aquela sociedade galega antes da guerra. Só temos a ideia de os galegos irem para a América, emigrarem. Mas isso tudo é merda. Porque antes disso o que havia era um país pleno e vivo, é dizer, todos os alcaldes de todas as vilas galegas eram republicanos, todos, e as vilas e as aldeas estaban cheas de sociedades, agrícolas, outras criadas pelos americanos, muitos deles maçons, etc., unha sociedade cum dinamismo enorme, local, económico, e tudo foi afectado enormemente, porque com a anulação da sociedad civil houve também uma centralização que esfarelou as oportunidades e o dinamismo.
Contara-me Camilio Nogueira, que fora engenheiro da Citroen, que em conversa cum empresário de Vigo este referia-se aos seus trabalhadores coma los gallegos. É uma imagem lamentável de não-inserção.
E não é esse o risco da globalização? Ficar Galiza coma uma de aquelas vilas, coma uma sociedade esfarelada?
Tu olha o que estamos a viver. O que havia que pensar sobre a globalização há dois anos e agora, com o que está a acontecer na Ucrânia e com a China, que já vem de antes: a globalização está a ser corregida, o mundo volve-se dividir
Mas a globalização não vai parar.
Não, mas a dinâmica econômica da globalização, as sinergias, não está claro como irão ocorrer. Nós agora ficamos, de entrada, coa UE escaralhada. Ficamos sometidos aos anglos, muito bem, somos bucha de canhão a ser estripada, porém a dinâmica do que está acontecendo não é clara. A dia de hoje Borrell já está encartando a gaita com o tema da Ucrânia e também com o tema de Israel. Eu não ouso aventurar. Aquilo que pensava há três anos, não pensaria hoje.
E hoje, o papel da burguesia como líder social…
Não vai haver. Não vai haver hoje. Se o levarmos para o presente, qualquer projeto político de construção nacional, de reconstrucão da Galiza como país, não vai ser liderado pela burguesia. Vai ser um projeto político. É já um projeto político autónomo. Eu sou otimista, relativamente, se conseguirmos fazer com que o PP perca o controlo da Xunta. É uma coisa que está assim-assim. O PSOE vão-se entregar, disseram-me já meses atrás que vão ir a sério, que querem a Xunta. Acima de tudo querem que o PP perca a Galiza. É muito importante para eles porque perderam todo o controlo territorial, e seria um mal menor que um partido galego, o Bloque, estivesse à frente da Xunta. Não seria a sua vitória embora seria uma vitória. Derrotariam o PP e teríam un território que lhes daria suporte, também, esta legislatura.
Logo a sobrevivência de Galiza depende completamente do Estado. Não ha possibilidade de reprodução do país socialmente. Digo-o porque históricamente supõe-se que era a burguesia a que criava o estado-nação.
Não, depende unicamente de que o Bloque alcançar o governo da Xunta. Hoje em dia não há capacidade que dizes. O único que há é governar a Xunta de Galicia, em coligação naturalmente. E seria um grande sucesso para o nacionalismo galego, e isso sim permitiria criar cá dinâmicas e apoiar todo tipo de projectos económicos e sociais. Isso seria o que desencadearia un processo de apoio a todos os tipos de inciativas civis.
Os inquéritos dizem que há uma assunção da identiade galega muito mais profunda e extensa do que é o eleitorado do BNG, muito além. A base para o nacionalismo galego ultrapassa 30%, e isso da para governar, isso faz de ti a segunda força, atrás do PP, sem dúvida.
Qualquer projeto político de construção nacional, de reconstrucão da Galiza como país, não vai ser liderado pela burguesia. Vai ser um projeto político. É já um projeto político autónomo
Mas o BNG é identificado de esquerda, e con isso tiras votos desse setor, embora não do PP.
É aí que entra Ana Pontón. Pontón entra pessoalmente nas bases do PP e do PSOE, penetra nas casas. O Beiras tinha muitas coisas, era muito chamativo, mas a sociedade galega nunca o viu como presidente. No caso de Ana, ela entrou já por simpatia, ficando à frente de Rueda em simpatia social, embora Rueda tivesse todo o sistema midiático ao seu favor. Claro, talvez isso mude na campanha ao forçar Rueda o controle da mídia.
Uma última coisa. Tem a ver hoje o ’empresariado’ com a burguesia dos séculos XIX ou XX? Seguem a ser o mesmo?
Não o sei. Hoje os projetos possíveis são políticos, cívicos, de construção social, e não vejo projectos de classe. Também não vejo um projecto de classe proletária. Não há protagonismo de classe, e eu não sei se isso é bom ou mau. A ideia de classe que a esquerda desenpenhava está desaparecida, tanto sociologicamente como em todos os termos. O Bloque não é mais um projecto de classe, em absoluto. É um projeto de país, que se lhe oferece à sociedade, e os seus suportes não são de classe. E de facto seu sucesso político terá de ser cada vez mais transversal. Tem que ter um programa e o programa define, e limita, claro, mas na medida que ese programa ganhe apoios. É a política que irá direcionar os processos. Vai ser uma ou outra estratégia política. Serão projetos políticos e o que a cidadania escolher.