Nós falamos bem

e falamos bonito, nós dizemos

amor e violência

porque nós somos isso.

Somos amor e violência.

Mohamed Fadel Mbarek Abdeslame

(Para o meu amor, por erguer-me o mundo nos domingos.)

Na passada semana a chuva dirigiu, organizou e abalou os planos quotidianos da gente do nosso país. Fez e desfez à vontade com as nossas vidas. Em Compostela, duas grandes inundações nesta semana húmida.

Uma delas, no sábado, foi a manifestação na defesa do povo palestiniano, num momento crítico da ocupação israelita. Quando mais está a matar Israel, quando mais o mundo vira as costas ao genocídio e o apartheid, mais o povo inundou as ruas da capital da Galiza, vindo gente de todo o país para berrar que Palestina vencerá, para reivindicar o natural direito de um povo a governar o seu território, a liberdade de um país para existir.

A outra inundação, a que cá nos ocupa, foi o II Festival Luz Poética, organizado pelo movimento poético de base da cidade através da Hoku Cultural. A rede de recitais poéticos que começou em Compostela em 2014 e que trouxe ao nosso país o Slam Poetry calhou organizar-se naquela associação e decidiu, há um ano, homenagear uma das suas referentes e mais ativa participantes, Luz Fandiño.

A autora, natural do bairro de Sar, emigrou na década de 50 para a Argentina e na de 60 para a França, retornando ao país no final dos 70. A sua presença constante e o seu empenho na defesa da poesia de base levaram-a a escolas, liceus e centros sociais de todo o país, portando sempre como tesouro a sua vivência na emigração e a sua história de amor com a poesia galega. A diretora Sonia Méndez converteu essa vida de dedicação num documentário homenagem sobre A poeta analfabeta.

Assim, a Hoku Cultural, em parceria com o Concello de Santiago, inundou ruas, escolas, livrarias, locais sociais, museus e cafés da cidade, escorrendo por cada fenda e não deixando pedra sem salpicar com a sua poesia. Recitais, roteiros, oficinas, regueifa, rap, lançamentos de livros, música, colóquio, dança, dignidade, raiva, amor, comunidade, celebração, homenagem. Uma extensa programação durante toda a semana cuja reprodução aqui seria tediosa se completa e injusta se parcial.

De Rosalia de Castro a Luz Fandiño

Ontem, domingo dia 29 de outubro, teve lugar o recital de encerramento do festival num Teatro Principal sem um só assento vazio. O ato, dirigido pela também poeta Yamini, começou com as palavras de agradecimento do diretor do festival, Diego Horschovski, que, no nome de toda a organização e de todas as poetas, lamentou a dura situação vivida em Gaza nesta altura e condenou o extermínio a que o povo palestino está a ser submetido pelo Estado de Israel. Reivindicou aliás a importância do movimento poético de base, criando em clave coletiva e partindo do povo, não apenas da genialidade essencial e solitária do romantismo.

Em seguida, cada uma das sete poetas convidadas recuperaram textos de outras poetas nacionais já falecidas. A reivindicação, a dignidade e o amor nutriram os discursos e as escolhas textuais de todas elas, confundindo-se e fazendo um todo discursivo que esteve presente do começo até ao final. Cada uma leu um poema de uma autora falecida e um outro de autoria própria.

Começou, como é natural, com Rosalia de Castro, e encerrou com Luz Fandiño.

No primeiro segundo do recital, foi a voz de Tamara Andrés a fazer entrar pela porta grande a raiva, com a leitura do “A justiça pela mão”. Já o seu texto estabeleceu um diálogo com Astrid da Suécia, princesa daquele país e rainha da Bélgica, que faleceu num acidente de trânsito, grávida, com 29 anos.

Quanto à homenageada, a sua representação calhou a Andrea Nunes. Esta manteve o silêncio, ouvindo-se a sua voz a recitar no megafone; entretanto, saiu ao cenário, tirou o casaco e virou as costas ao púbico, mostrando um t-shirt com o nome da Palestina. Lembrou as palavras da homenageada: “A vida em si é uma loita, / prefiro morrer viva / que viver morta”, e pediu, também pelas suas palavras, “sentir que diante da dor alheia não aninha em mim a indiferença”.

Entre elas duas, mais dez poetas, mais reivindicação, mais dignidade, mais amor.

Lua Mosquetera deu voz a outra poeta também de nome Luz, Luz Pozo Garza, falando da chuva de Compostela através das páginas do poemário Códice Calixtino. A seguir, falou em dança e sonhos para lembrar sua própria mãe, também de nome Luz, como também a sua avó: “sonho que tu bailas, que não morreste”, “quero contar-te que abriram um Eroski ao lado de casa”, “ensinar-te a usar o WhatssApp”.

Já Diana Kúrich recitou um poema de Xohana Torres e, a seguir, reivindicou os torreiros, os campos da festa, como lugares de ócio em liberdade, “onde nunca olharam mal que dançassem juntas duas mulheres”, e ainda “o corpo como campo de batalha”. Ao lado da raiva, lembrou que “todas as guerras necessitam amor”.

“Listas, sim, mas problemáticas”, como disse Maria Lado após a leitura de Xela Arias. Embora ela “goste dos poemas que fodem a vida à gente”, preferiu optar explicitamente pela “raiva”, ao referir o papel que o patriarcado pretende para as mulheres: “não vamos para Bingo nem que o tenhamos diante”.

Também pretendeu problematizar Nuria Vil, lendo um poema do livro Papagaio de Luísa Villalta, dedicado “às putas”. No seu poema, interpelou a autora, “Luísa!”, e tratando-a de tu, “pelo que sei de ti, não creio que te importasse”. Lembrando a poeta assassinada na Palestina, Hiba Kamal Abu Nada, interrogou-se pelo papel da poesia no conflito, pela pertinência das suas próprias poesias: “antes ou depois de que genocídio detemos a criatividade?”, “eu ofereço este corpo feble e amável à dureza de todos os poemas”.

Na mesma linha, Arancha Nogueira, após a leitura de Pura Vázquez, recitou um poema escrito ad hoc, como alguns dos outros. Perguntava diretamente à mestra corremundos –como ela a chamou no seu livro–: “para que serve a poesia?” Muita raiva, muita dignidade nas palavras da ourensana, a tratar perante o público a sua própria doença, o conflito, as náuseas entre as que escreveu aquele poema. Não só raiva e dignidade: “o meu amor a erguer-me o mundo nos domingos”.

No final, rotunda, afirmava, a poesia serve, com certeza. Aí alinhava com o espírito do evento, com a lógica dos movimentos poéticos. Dirigia-se a Pura Vázquez e dizia-lhe, erguendo a voz para todo o auditório: “para dizer / ainda nos matam, / estou enferma, / viva Palestina livre”.