Ser mulher e, em particular, ser mulher trans (e não-binária) nos espaços feministas.

Sento-me ao computador e procuro a melhor maneira de iniciar este artigo. Não porque a escrita me saia difícil, mas porque as fronteiras e os limites da existência são produtos incontornáveis da minha própria vivência. Já escrevi outros textos onde materializei a fronteira do meu corpo e da minha identidade. Do corpo enquanto algo materializável e da identidade enquanto voz do corpo. Esta dificuldade surge, no fundo, pela intensidade que me toca e pelo modo como remexe com as minhas próprias barreiras.

A construção do meu eu, em particular, passou por muitos caminhos, muitas vezes divergentes, outras vezes, convergentes. Mas, na generalidade, sempre próximo da fronteira da identidade. E o que é para mim a fronteira da identidade? Em parte, o abandono das cis-normatividades que nos condicionam diariamente. O abandono da minha posição de aparente estabilidade, para uma posição de constante instabilidade. Cresci, sendo posicionada numa masculinidade que não era parte de mim. A recusa dessa masculinidade dá-se na oportunidade de saber que a poderia romper, poderia passar a barreira (a barreira limitada que eu conhecia à época, o salto binário mulher/homem). É nesse momento que abandono o meu status quo enquanto homem e passo a navegar nesse muro criado pela separação deste binómio. Queria eu trespassar este obstáculo, ou quereria eu questionar a existência desse mesmo obstáculo? A primeira teria sido um desejo, a segunda tornou-se a realidade. Uma realidade de lugar algum. Abandono o meu lugar aparente da cisgeneridade, ocupo um lugar novo, totalmente novo. O lugar da transgeneridade. Algo que na minha inocência passava por corresponder só e apenas à categoria mulher. Até ao momento em que procuro encontrar-me na não-binariedade, mantendo-me na categoria mulher, sinto que o sistema, ou melhor, o cistema, não me acolhe. Não me acolhe porque as barreiras da existência das identidades trans é intransponível dentro de um mundo cis. Não há completude, não há ser alguém de plenos direitos.

Percebi que me encontro presa numa fronteira, numa fronteira de rejeitamento e numa fronteira por existir. Uma repulsa evidente à minha construção na masculinidade, mas ao mesmo tempo o marco da minha própria existência. Um mecanismo automático de ser ninguém enquanto se é… de facto, alguém. Um mecanismo tecnológico de género que afasta a dissidência, coloca-a num ponto marginal, num ponto sem valor e fora do contexto da realidade.

Percebi cedo que esta seria uma batalha difícil. Passado vários anos ainda continua a ser. Onde me coloco? Pergunto-me todos os dias. Onde pertenço? Continuo sem respostas claras, apenas imagens abstractas do que seriam esses locais.

O feminismo tornou-se parte de um desses locais. Tornou-se um lugar central no entendimento de quem sou e de como conduzo a minha realidade – aquela que está na zona fronteiriça. Tornou-se um local de conhecimento próprio e das realidades que se vivenciam à minha volta. Será que deveria colocar o feminismo no centro deste processo (des)construtivo? Talvez muitas pessoas diriam que não, que não tenho esse direito, que não tenho uma construção social que me permita estar nesse lugar de fala.

Particularizando, houve muitos momentos difíceis na minha chegada ao feminismo. As diversas exclusões, a necessidade consecutiva de validar a minha existência, o questionamento da minha posição enquanto mulher (trans e não-binária) nestes mesmos espaços. Contínuas e frequentes violências que se demonstram de forma direta ou indireta.

A consciência de não ser bem vinda num espaço, a consciência de ser lida enquanto possível agressora. A consciência de me sentir sempre num lugar de não fala, de mulher de segunda categoria (e até mesmo, não mulher).

Muitas vezes o argumento bio essencialista de que os meus genitais definem a minha identidade e o que sou e serei no mundo de uma forma cristalizada e imutável. A chamada “socialização feminina” é um dos mecanismos de exclusão de pessoas trans, em particular, mulheres trans, destes espaços e que nos impede a participação em determinados lugares de construção política. Porém, há muitas formas de ser “socializada no feminino”, tal como, há muitas formas de ser socializada enquanto trans num mundo cis. Numa ordem social que não nos pertence, que nos conduz ao isolamento e, muitas vezes, ao homícidio social derivado de todas as dificuldades inerentes à condição de ter uma identidade dissidente.

Porém, a experiência também me tem mostrado o contrário. Que tenho um lugar de fala. O transfeminismo trouxe para a minha vida a oportunidade de questionar aquilo que para mim era inabalável independentemente do meu sofrimento. O acesso a espaços inclusivos trouxe-me realidades novas, trouxe-me aprendizagens únicas sobre a forma que cada pessoa tem de viver o seu género. Espaços onde a nossa existência conta e é tida como válida, onde as nossas experiências são legitimadas e protegidas. É nesse caminho que continuo e quero trilhar. Um caminho de legitimação de quem sou nos espaços em que me envolvo. É o percurso da criação de lugares mais inclusivos, a criação de novas alternativas com verdadeira sororidade – mesmo sabendo que se trata de uma meta difícil de alcançar num curto espaço de tempo. Porém, acredito que é possível entender-me nestes espaços como alguém que pertence e existe. É por isso que reclamo a minha posição no feminismo.

Este local, o feminismo, é também uma ferramenta de entender os mecanismos que operam nestas fronteiras. Não podemos pensar nas partes sem entender o que as liga ou o que as afasta e, muito menos, ignorando quem as trespassa, quem vivência na fronteira a sua forma de existir. Os diálogos trans são mais do que retóricas académicas de construção de uma identidade, são movimentos de pessoas reais, que se procuram numa estrutura que por si só é violenta para com elas. A transfobia é estrutural, não nasce do indivíduo isolado per si, mas de um conjunto de mecanismos estruturais de apagamento, de isolamento e de destruição dos seus alvos. Vejamos, por exemplo, que a cis-normatividade impera ao se impor também nas transgeneridades, obrigando as pessoas a sentirem a identidade cis como a fundamentalmente necessária para a sua existência. Porém este modus operandi é estrutural e simbolicamente violento para quem opera em lugar de ninguém. Um lugar que parte da sociedade não reconhece como existente. E que outra tanta nega-o.

Apagar a violência sistémica em que os alvos são identidades fronteiriças, é negar todo o questionamento que se tem feito à existência das cis-normatividades enquanto categorias estanques na construção da pessoa singular.

Ser mulher e, em particular, ser mulher trans (e não-binária), é um desafio que envolve imensa energia e a violência a que somos expostas é um problema real e que não pode ser ignorado. A fronteira das identidades não pode ser um lugar no vazio, mas sim um lugar para a diversidade, para o abrir caminhos por entre uma norma social que nos condiciona, que nos prende os movimentos (físicos e psicológicos).

Ser mulher e, em particular, ser mulher trans (e não-binária) é estar em contacto permanente com a não existência e com o apagamento. É estar num lugar de subalternidade social, onde a nossa vida não tem valor. Estar nesta fronteira, é estar permanentemente a negociar o nosso lugar na sociedade. É existir para resistir.

* Artigo publicado originalmente na Revirada Revista Feminista.