Ser mulher não é uma definição que me pertença.
Foi-me colocada como quem coloca um vestido branco, umas meias de malha acanelada, e sapatinhos nos pés a uma criancinha.
Ninguém me perguntou se eu estava à vontade nem com essa definição, nem com aquele vestido.
Anos depois, rebelar-me-ia saltando dentro de poças cheias de bulheiro, com aquele vestido-jardineira – “pichi” – lindo de lã, chegando a casa com mais cinco quilos do que o meu próprio peso. Cinco quilos de água e terra a correr cheia de orgulho e rebeldia. E daí nunca mais parou.
Não, a definição de mulher não era para mim. Por isso tornei-me feminista.
Não procuro uma versão melhor do ser humano por sermos de um sexo ou outro (pénis ou matriz), de facto fazer uma distinção tão determinante focada numa parte do nosso corpo, e na sua função, que se bem é importante, não o é mais do que a cabeça, o coração ou os pulmões, sempre me pareceu no mínimo desproporcionada e, honestamente, algo doentia.
Uma definição de mulher que tanto nas suas versões mais patriarcais e arcaicas, como nas mais progressistas e atualizadas, – estas normalmente construídas em oposição ou reação às anteriores –, não deixa de entrar em conflito com a diversidade humana.
Se a condição básica de ser definida como mulher ou homem tem a ver com um órgão determinado –sem esquecer a sua própria pluralidade– como é que se constrói toda a estrutura de relacionamentos que nos vai classificar e colocar no nosso lugar social? Decerto vai-se precisar de identificar com facilidade o que é uma mulher, traduzir visualmente esse órgão interno classificador para fora, e então entra aqui a questão da performatividade, em que já não só tens de ter uma ou outra corporalidade interna, mas tens de mostrá-la de alguma maneira para seres percebida instantaneamente como tal. A mim colocaram-me um vestidinho branco.
No entanto, também não posso fugir da definição de mulher, porque o meu corpo, queira eu ou não, é objeto de controlo da sociedade em que vivo. O meu corpo não me pertence a mim.
A minha vagina, o meu sangue menstrual, a minha sexualidade, a minha saúde ligada com o corpo que habito é tão esquecida como submetida a decisões alheias. Cada centímetro de gordura desafiante posta em quarentena, cada pelo fora do lugar certinho é chamado à atenção. Corpos classificados em aptos ou não-aptos, nem tão femininos, nem tão jovens, nem tão desejáveis. Não, o meu corpo não me pertence a mim.
Sou mulher, porque a minha mente também não me pertence a mim. Os meus pensamentos e ações são dirigidas uma e outra vez para o rego patriarcal. As minhas emoções são criminalizadas, julgadas, condenadas, subestimadas… As opções de vida que escolho, sejam elas afetivas, sexuais, reprodutivas, laborais ou de convívio e lazer são objeto de escrutínio social, económico ou até legal. Lá onde eu moro, ou onde outras moram.
Então, sou ou não sou uma mulher? Sou. Sou mulher política.
Porque embora a definição mulher de diferentes perspetivas – da biológica, performativa, emocional, corporal, psicológica, intelectual, espiritual, científica, sentimental, política ou cultural, sejam estas individuais ou coletivas –, mesmo que todas elas sejam construções sociais imaginadas por nós e outres, nem por isso deixam de ser reais. Nem por isso deixam de ser violentadas. Nem por isso deixam de me incluir e afetar também a mim e ao meu corpo.
Sou mulher. Sou mulher política como sou feminista, até que já não seja preciso ser nem uma coisa, nem a outra.
Nota: Esta é apenas a minha experiência neste corpo e nesta sociedade, sem por isso invalidar nem apagar a experiência de outras e outres, mas contribuindo para a diversidade, às vezes contraditória, em que coexistimos.
* Texto publicado originalmente em Revirada Revista Feminista.