Publicamos a segunda parte da longa conversa que este portal mantivo com um representante do CPIG, que desta volta se centra mais no presente que no passado da luita penitenciária: o novo enquadramento político das presas e presos independentistas num contexto sem violência resistente no nosso País, ou a relaçom entre presos políticos e sociais som alguns dos assuntos abordados a fundo na entrevista.
No último comunicado do CPIG anuncia-se a desativação da frente carcerária. Quais são agora as ferramentas para a organização e atividade política com as que contades na cadeia?
Ao longo de quase 20 anos vinhemos tomando decisões políticas e implementando todo tipo de medidas sem outras considerações que fazer avançar as forças próprias e madurar o cenário de enfrentamento com o estado que nos oprime. Foram decisões de todo tipo e todos os níveis, incluídas as diretrizes para os cárceres nas distintas etapas. A adequação tática no campo de acção carcerário que os combatentes da resistência galega aprovaram em Outubro de 2022 insere-se neste ámbito de toma de decisões.
Para o independentismo galego a luita contra o sistema penitenciário -dentro e fora dos cárceres- nunca foi um objetivo em si mesmo, nem se contemplou isolado das estrategias globais, soberanistas e de transformação social.
A nossa Declaraçom parte de um facto objectivo: que o processo de luita armada protagonizado pela resistência galega, muito ao nosso pesar, não teve a continuidade que desejávamos. Como a luita nos cárceres e as dinámicas de reclusão formam parte inseparável da estrategia de enfrentamento contra o Estado, quando esta sofre alguma modificação, procede readequar também as tácticas carcerárias. Este é o marco politico da nossa Declaraçom.
A Declaraçom que assinamos defende a nossa condição de prisioneiros políticas e mantém certas linhas vermelhas que protegem a nossa dignidade e diferenciam a nossa maneira de estar no cárcere da dos presos comuns. De facto, Espanha mantém sobre nós, alem do proprio secuestro por impugnar o seu monopolio da violência, certas medidas excepcionais (legitimadas no próprio ordenamento penitenciário) como som a classificação FIES (…), a intervenção sistemática de todas as nossas comunicações, a liberdade vigiada ao sair do cárcere, assim como medidas agravadas para aceder a certos direitos e benefícios penitenciários, só aplicados aos prisioneiros políticos, com imposição de condições próprias de inspiração ideológica. Desde âmbitos próprios da administração penitenciária reconhece-se abertamente uma específica e restritiva interpretação da legislação penitenciaria em relação aos presos políticos, existindo de facto uma política penitenciária especial em materia de “terrorismo”.
A Declaraçom do CPIG quando fala de “desativar a frente carcerária” matiza a continuação, com muita clareza, que se refere exclusivamente a aqueles aspetos que implicam “nas atuais circunstancias, um prolongamento innecesário da prisão”. O único câmbio emanado da nossa Declaraçom é que -no novo contexto de luita- abrimos a porta do desfrute de certos direitos que a legislação espanhola reconhece a todo preso e presa, e à que nos tinhamos renunciado voluntariamente. Progressar de grau ou desfrutar de permisos é tão direito como participar em talheres, atividades formativas, deportivas ou recreativas, estudar na UNED aceitar pontos por estudar para desfrutar de vises extraordinários. Tampouco temos renunciado a estar num cárcere galego que parecendo um benefício, não é senão um direito legal ou reagrupados no mesmo módulo.
E uma situação semelhante a que já se tiveram que enfrentar os presos independentistas de LAR e do EGPGC tras o cesse de fogo destas organizações. Os três últimos presos da LAR foram indultados pelo estado em 1983 e os últimos presos do EGPGC acabaram saindo de permiso e classificados e traspassados a um regime aberto (terceiro grau) a partir do ano 2000. A diferença com estes procesos é que os presos da resistência galega conseguiram manter um coletivo relativamente bem coesionado, com vontade de presença e intenção de explicitar politicamente as decisões adotadas.
Da mesma maneira, cremos politicamente correto aliviar no possível -sempre dentro de um marco de principios e coerência política- as consequências do ultimo ciclo de enfrentamento armado, que sofreram as próximas décadas os irmãos que ficaram na cadeia com longas condenas tendo em conta que o movimento social que sustentou durante todos estes anos o enfrentamento com o estado não deu mostras de revalidar as vias do conflito e a tensão social desde parámetros pelos que nós tínhamos apostado.
A luita da resistencia galega teve sempre a sua continuação coerente nos cárceres espanhóis. As presas da resistencia fizeram da cadeia uma prolongação do enfrentamento co estado, adotando coletivamente acordos básicos sobre aspetos regimentais, carcerários que ajudavam a reforçar e alimentar a estrategia geral de conflito social do arredismo. No contexto dos últimos anos, em que estas dinámicas de luita frontal, ilegal e clandestina estão ausentes, tendo-se desativado em boa medida nas ruas aquele espírito e aquelas práticas combativas que defendemos e praticamos durante tantos anos, neste contexto, diremos é politicamente correcto que nos cárceres se proceda e desative também coletivamente e na mesma medida aquelas decisões -e só estas- que implicam maior grau de enfrentamento.
A principal trincheira num centro de repressão do inimigo, a maneira digna para um patriota para resistir o encarceramento é sempre alimentar a férrea vontade coletiva, a força do coletivo posta ao serviço da estrategia de libertação nacional e social. Por esta razão nunca adotamos decisões -nem que fossem “legitimadas” coletivamente- para “salvar” pessoas se elas podiam perjudicar à resistência e à estrategia de enfrentamento co estado, da mesma maneira que sempre combatemos no seo do nosso CPIG qualquer saída individual e comportamento individualista, prevalecendo os acordos e dinámicas coletivas.
Os presos que se dissociaram do CPIG ou foram expulsados do mesmo, tomaram as suas decisões de maneira individual, fora de toda disciplina militante, atendendo unicamente ao seu benefício pessoal. Ademais, desligaram-se ou criticaram abertamente a estratégia da resistência galega, contribuindo para deslegitimá-la e recebendo por isso uma recompensa do Estado. Antepuxeram a salvação pessoal para perjudicar o combate da resistência.
Os nossos acordos, em cambio, respondem a uma decisão coletiva que parte da asunção e do orgulho pela fase de enfrentamento armado, e que mesmo na maior das adversidades defendemos e reivindicamos.
Na medida em que somos reféns do estado, moeda de cambio para amedrentar o nosso povo, para domesticá-lo, os cárceres nos que estamos recluídos som um cenário latente de conflito político, reflexo inequívoco do enfrentamento histórico entre a Galiza e a Espanha. Neste sentido o cárcere deve seguir sendo uma frente aberta para a reivindicação arredista galega, que não se desativará até que finalmente o ultimo combatente galego ponha o pé na rua.
Temo-lo dito bem claro no comunicado do CPIG prévio ao juizo de janeiro de 2002: “nunca reconhecemos e nunca reconheceremos nenhum tribunal do estado espanhol. Ante o entramado excepcional e repressivo anti-terrorista de Espanha defendemo-nos como podemos, sabendo que as limitações som as que som, às vezes insuperáveis, mas nunca legitimaremos (tampouco dentro dos cárceres) a sua legalidade e o seu estado de excepção democrática.
Continuaremos defendo os nossos princípios ainda que implique enfrentar-nos a prisão e receber sanções. Continuaremos sempre defendendo os principios do CPIG ainda que isto implique enfrontar-se ao regime carcerários e os seus dispositivos de sanções, castigos e represálias.
Quando afirmamos na Declaraçom do CPIG que se fecha uma etapa de luta, apenas estamos reconhecendo uma realidade social e política que se nos impõe a todos, e em função da qual adotamos algumas medidas pontuais. Deste facto cadaquém pode fazer as leituras que quiser. Nós fazemos a nossa. Temo-lo dito por passiva e por ativa: a legalidade ruinosa, sem qualquer outro horizonte ou via de impugnação, aboca-nos à extinção. O conglomerado de ocupação nem descansa, nem dá trégua nem sabe de ciclos políticos.
A defesa da nossa Terra ante as políticas de destruição total que se avizinham necessitaram doutras etapas ou doutros ciclos semelhante aos protagonizados pelas combatentes galegas desde há quase 50 anos. Na nossa Declaraçom temos afirmado que a autodefesa do nosso povo, o cuidado e a proteção do nosso território som inegociáveis, disso depende a sobrevivência da nossa nação.
Não há que acobardar-se nem laiar-se porque o nosso processo de emancipação nacional em chave de defesa da terra e contra-poder popular esteja dalgum jeito tão marcado por sucesivas experiencias que não acabam de ter a continuidade desejada. É a “marca” própria do nosso original proceso de libertação, consequência da nossa própria história, das nossas condições materiais e de classe e da evolução do nosso nacionalismo, nada do que avergonhar-se.
Temos que centrar todos os nossos esforços em organizar mais e melhor o arredismo galego e prepará-lo para as batalhas que se vam librar no futuro. Sem organização, militância e ativismo não é possível avançar.
Como definirias ti que é a convivência com os presos comuns? E com o resto de presas políticas doutros lugares, há convivência e/ou comunicação?
A maior parte da população reclusa está constituída por homens e mulheres pertencentes aos estratos mais baixos da sociedade, embrutecidos pelo vício, o consumismo e a amoralidade. Ora, a questão de classe não deve fazer perder-nos de vista o facto de que numa sociedade corrupta e individualista como a atual, o tipo de comportamento degenerado é transversal a todas as capas sociais. Quando o bem comum não existe, nem a ética do esforço coletivo, nem a solidariedade ou a austeridade, então temos um delinquente latente detrás de cada cidadão exemplar. Pois, quanto mais alto é o escalafão social menor probabilidade de que alguém acabe na cadeia.
A atitude que temos em geral face esta classe de pessoas aqui dentro não difere muito da que teríamos fora ou do que seguramente tendes a maioria de vós na rua: de distância. A diferença é que aqui estamos obrigados a conviver com eles. A proximidade diária obriga-nos a fazermos um esforço relacional que seguramente não faríamos fora. Desde logo encontraríamos exemplos de uma grande valia humana, que muitas vezes compensa o desconforto de uma convivência quase sempre precária e incerta.
Tampouco há que esquecer que o perfil dos presos comuns mudou bastante desde os anos 80 a hoje, na mesma medida que também na sociedade se foram dando agudas transformaçons sociais, económicas e culturais.
Muita delinquência dos anos 80 tinha ainda uma ligação perceptível com o meio obreiro e/ou rural, com valores primários de classe, de solidariedade e de luita contra o sistema. Hoje tudo isso desapareceu em consonância com uma deriva social face a autodestruição, a banalidade e a perversão. A delinquência está mais perdida que nunca e mais sujeita que nunca ao vazio mais brutal.
Tampouco podemos esquecer que quase o 30% de presos no estado espanhol som estrangeiros. É uma percentagem altíssima que não deixou de crescer nas últimas décadas, o que introduz nos cárceres novas dinámicas de convivência e relações a todos os níveis.
Em geral, a nossa atitude é de máximo respeito face todas as pessoas com as que temos que conviver a diário, encontrando espaços e momentos para alguma relação positiva. E na medida em que podemos, sempre procuramos ajudar, apoiar e aprender com eles.
Entre presos políticos, sempre houve uma relação muito estreita, especialmente com aqueles mais afins política e ideologicamente, como no caso dos presos bascos.
Achas que a presença de presas políticas na cadeia pode ser um revulsivo para o sistema penitenciário? Falo aqui da agitação, da demanda de melhoras nas condições de vida, da movimentação e conscienciação política doutras presas…
Nas décadas de 80 e 90 principalmente acho que em certa medida sim que se deu algo disto. Nestes anos no Estado espanhol chegou a haver arredor de 900 presos políticos.
A dispersão dos prisioneiros políticos, que foi em essência uma medida do estado espanhol para debilitar os movimentos politico-militares que operavam no estado, trouxe consigo o facto de que todas as cadeias acabaram recebendo militantes políticos, que passavam a conviver diariamente com os presos comuns.
Foram décadas de grande atividade armada (chegaram a atuar simultaneamente no estado até cinco organizações) e neste clima de ofensiva e ativismo social as cadeias eram frentes muito ativas de luita e agitação políticas, utilizadas conscientemente pelos militantes encarcerados como novos cenários de propaganda política e enfrentamento aberto co estado.
Os presos políticos levaram muitas luitas as prisões pelas que eram dispersados, luitas que muitas vezes tinham que ver com os propios regimes repressivos, reivindicações de direitos e exigência de uma mínima dignidade no cárcere. E houve não poucas vitórias que também acabaram afetando indistintamente a todos os presos.
Por outra banda, naquele contexto social e político, a novidade da convivência diaria e permanente no tempo entre presos políticos e comuns não podia resultar inócua. Assim, nesses anos houve uma politização nada desprezável de uma pequenina parte da delinquência comum, geralmente a que estava recluida nos módulos mais conflituosos de primeiro grao, em contato direto e diário com militantes políticos. Seguramente no nascimento da APRE (Associação de presos em regime especial) e dos seus lideres mais carismáticos podemos detetar uma certa influência daquela a atmosfera de conflito e luita que os militantes políticos levaram aos distintos cárceres.
O panorama atual já pouco tem que ver co que acabo de descrever. Deixando à margem o território da Catalunya, que viveu recentemente sucesos de uma enorme agitação política e social, com milhares de represaliados e exiliados, no resto do Estado o panorama está mais calmo. Nos cárceres espanhóis deixou de haver presos políticos bascos, trasladados a prisões da CAV tras ceder-lhe o estado as competências em materia penitenciária a esta comunidade autónoma. Também os galegos fomos trasladados a Galiza.
Atualmente não ha nenhuma organização armada operativa no estado nem um clima de agitação politico-social de enfrentamento e desafio popular parecido ao de há umas décadas. O número de presos políticos em cárceres do estado possivelmente nunca fora tão baixo, apenas 300 pessoas (incluindo os islamistas).
Este contingente de presos políticos (deixando à margem os islamistas), com matizes e diferenças, o certo é que em boa medida deixaram de conceber o cárcere como um cenário de enfrentamento aberto co estado. Em função do coletivo do que falemos temos dinámicas coletivas e comportamentos individuais, em chaves distintas as dos ciclos álgidos de guerra e luita aberta. Som modulações inevitáveis que se dam em todos os processos históricos.
Também a nível de presos comuns o panorama mudou sensivelmente nas últimas décadas. Os últimos motins carcerários dignos deste nome tiveram lugar nos anos 90 do século passado (alguns deles instigados por ativistas da APRE), desde então apenas houve pequenas escaramuzas sem relevância. Se calhar o maior exponente dos profundos cambios que também houve a nível da população reclusa foi o estado de inação total, de surpreendente paralisia ante as medidas repressivas e de privação total de direitos durante o tempo interminável da pandemia. Seria inimaginável um cenário de paz carcerária como a vivida agora algumas décadas atrás. (?)
Mas o facto de estarmos ante um novo perfil de preso comum junto ao arsenal de medidas técnico-represivas de apaziguamento social incorporadas durante anos às cadeias (medicalização generalizada, sofistificação dos mecanismos de obediência, televisão nas celas, etcétera) levou a um panorama preocupante de encefalograma plano: passividade, resignação e submetimento. Como honrosas e destacáveis exceções entre as que cabe sinalar a atual associação de presos comuns ASPRELA (Asociación de presos en luita activa), valente herdeira de APRE, que à sua vez o fora da COPEL (siglas), com alguns membros aderidos à mesma classificados em FIES-5, por estar enquadrados em “grupos anti-sistema”. Nos últimos anos realizaram diferentes greves de Fame rotativas nos cárceres reivindicando uma tábua de direitos para todos os presos.
Podes ler a primeira parte desta entrevista aqui.
*Entrevista concedida por AGM – Preso da resistencia galega.