Historiador, antropólogo, demógrafo e politólogo, o francês Emmanuel Todd tem acometido algumhas importantes análises de política internacional, a mais conhecida das quais, enunciada na obra “A queda final”, predixo o fim da URSS já em 1976. Em meses recentes, publicou no Japom a obra “A III Guerra Mundial já começou”. Traduzimos um extracto dumha entrevista de Todd com o jornal Le Figaro, dadas as importantes chaves que dá para compreendermos o nosso mundo convulso.

Por que publicou um livro sobre a guerra na Ucraína no Japom, e nom na França?

Os japoneses som tam anti-russos como os europeus. Mas estám geograficamente longe do conflito, polo que nom há um sentimento real de urgência, eles nom tenhem a nossa relaçom emocional com a Ucraína. E no Japom nom tenho o mesmo estatus que na França. Aqui tenho a absurda reputaçom de ser um “líder rebelde”, enquanto que no Japom som um antropólogo, um historiador e um geopolítico respeitado. (…)

É evidente que o conflito, em passar dumha guerra territorial limitada a um confronto económico global, entre todo Occidente por um lado e Rússia polo outro, apoiada pola China, por outra banda, virou numha Guerra Mundial.

E por que este título?

Porque essa é a realidade, a Terceira Guerra Mundial já começou. É verdade que começou “em pequeno” e com duas surpresas. Partimos nesta guerra com a ideia de que o exército da Rússia era muito poderoso e que a sua economia era muito fraca. Achava-se que a Ucraína ia ser esmagada militarmente e que a Rússia ia ser esmagada economicamente por Occidente. Ora bem, aconteceu todo o contrário. A Ucraína nom foi esmagada militarmente, apesar de que a data de hoje perdeu o 16% do seu território; a Rússia nom foi esmagada economicamente. No intre que falo, o rublo ganhou um 8% face o dólar e um 18% face o euro com relaçom à véspera da entrada na guerra.

Assim é que houvo umha espécie de mal-entendido. Mas é evidente que o conflito, passando dumha guerra territorial limitada a um enfrentamento económico global, entre todo Ocidente por um lado, e a Rússia apoiada pola China de outro, deveu umha guerra mundial. Ainda se a violência militar é baixa comparada com a das duas guerras mundiais anteriores.

Nom exagera? O Ocidente nom está directamente envolvido militarmente…

Fornecemos armas, com isso e contudo. Matamos russos, mesmo se nom nos exponhemos nós mesmos. Mas segue a ser certo que os europeus estamos sobretodo comprometidos economicamente. De resto, sentimos a nossa verdadeira entrada na guerra pola inflaçom e a escasseza.

Putin cometeu um grande erro ao começo, que apresenta um grande interesse sócio-histórico. Quem trabalhavam (pesquisavam) sobre a Ucraína nas vésperas da guerra consideravam esse país, nom como umha democracia nascente, senom como umha sociedade em descomposiçom e um “Estado falido” em devir. Perguntávamo-nos se a Ucraína perdera 10 milhons ou 15 milhons de habitantes desde a sua independência. Nom podíamos decidir, desde que a Ucraína nom realizara um censo desde 2001, clássico sinal dumha sociedade que teme a realidade.

Acho que o cálculo do Kremlin foi que esta sociedade em descomposiçom colapsaria ao primeiro impacto, ou mesmo ia dizer “bem vinda mamá” à santa Rússia. Mas o que descobrimos, pola contra, é que umha sociedade em descomposiçom, quando alimentada por recursos financeiros e militares do exterior, pode achar na guerra um novo tipo de equilíbrio, até mesmo um horizonte, umha esperança. Os russos nom podiam prevê-lo. Ninguém podia.

Mas os russos nom subestimárom, apesar do estado real de descomposiçom da sociedade, a força do sentimento nacional ucraniano, ou a força do sentimento europeu de apoio à Rússia? E você mesmo, nom o subestima?

Nom o sei. Estou a trabalhar nisso, mas como pesquisador, isto é, admitindo que há cousas que nom sabemos. E para mim, curiosamente, um dos campos sobre os que tenho muito pouca informaçom para decidir, é a Ucraína. Poderia-lhe dizer, sobre a base de dados antigos, que o sistema familiar da Pequena Rússia (Ucraína) era nuclear, mais individualista que o sistema Gram Russo, que era mais comunal, colectivista. Isso, podo-o dizer, mas o que deveu a Ucraína, com massivos movimentos de populaçom, umha auto-selecçom de certos tipos sociais pola sua permanência no país, ou pola sua emigraçom antes e durante a guerra, nom podo dizê-lo, nom o sabemos neste momento.

Um dos paradoxos que encontro é que a Rússia nom me coloca um problema de compreensom. (…) Hoje, na emoçom, em sintonia com o meu próprio país, vejo claramente a entrada do exército russo em território ucraniano, os bombardeamentos e os mortos, a desfeita das infraestruturas energéticas, os ucranianos a morrerem de frio no Inverno. Mas para mim, o comportamento de Putin e dos russos é legível de outro modo, e vou-lhe dizer como.

(…) Adiro agora à análise do geopolítico “realista” estadunidense John Mearsheimer. Ele fazia a seguinte constataçom: dizia que a Ucraína, cujo exército fora controlado por militares da OTAN (estadounidenses, británicos e poloneses) desde quanto menos 2014, era portanto um membro de facto da OTAN, e que os russos anunciaram que nom tolerariam nunca umha Ucraína membro da OTAN.

Estes russos fam, logo, como Putin nos dixo o dia antes do ataque, umha guerra do seu ponto de vista defensiva e preventiva. Mearsheimer acrescentava que nom tínhamos razom nenhuma para nos alegrar das dificuldades dos russos, dado que, como para eles se trata dumha questom existencial, mentres mais difícil fosse, mais forte iam golpear. E a análise semelha verificar-se. (…) E eu ainda engadiria um complemento e umha crítica à análise de Mearsheimer. (…)

Quais?

O complemento: quando ele diz que a Ucraína era um membro de facto da OTAN, nom vai suficientemente longe. A Alemanha e a França viraram sócios menores na OTAN e nom eram cientes do que se argalhava na Ucraína no ámbito militar. Criticou-se a ingenuidade francesa e alemá, porque os nossos governos nom acreditavam na possibilidade dumha invasom russa. Certo, mas porque nom sabiam que estadounidenses, británicos e poloneses podiam permitir a Ucraína livrar umha guerra ampliada. O eixo central da OTAN agora é Washington-Londres-Varsóvia-Kiev.

Agora vem a crítica: Mearsheimer, como bom estadounidense, sobre-estima o seu país. Considera que, se para os russos a guerra na Ucraína é existencial, para os estadounidenses nom é no fundo senom um “jogo” de poder como os outros. Após Vietname, Iraque, Afeganistám, um debacle mais ou menos… que importa?

O axioma básico da geopolítica estadunidense é: “podemos fazer o que quigermos, porque estamos ao abeiro, na distáncia, entre dous oceános, e nunca nos irá acontecer nada.”

Nada ia ser existencial para os USA. Insuficiência de análise que conduz hoje a Biden a umha fuga para a frente. Os USA som fracos. A resistência da economia russa empurra o sistema imperial estadounidense para o abismo. (…)

Se a economia russa resistisse indefinidamente as sançons e lograsse esgotar a economia europeia, enquanto ela mesma subsistisse, apoiada pola China, o controlo monetário e financeiro estadunidense do mundo ia colapsar, e com ele a possibilidade para os USA, de financiar o seu enorme défice comercial em troca de nada.

Esta guerra, portanto, virou existencial para os USA. Nom mais do que a Rússia podem retirar-se do conflito, nom podem soltar nada. É por isso que estamos agora numha guerra sem fim, num confronto cujo resultado deve ser o colapso dum ou de outro. Chineses, índios e saudies, entre outros celebram.

Mas o exército russo semelha estar, porém, numha muito má postura. Alguns vam mesmo predizer o colapso do regime. Você nom acredita nisso?

A verdadeira prioridade do regime russo nom é a vitória militar no terreno, é nom perder a estabilidade social adquirida nos últimos 20 anos. Assim que está a fazer esta guerra “à económica”, nomeadamente economizando os seus homens. Porque a Rússia segue a ter o seu problema demográfico, com umha fecundidade de 1,5 filhos por mulher. Em cinco anos terám aulas de idade baleiras.

Ao meu ver, devem ganhar a guerra em 5 anos, ou perdê-la. Umha duraçom normal para umha guerra mundial. Fam logo esta guerra à económica, reconstruindo umha economia de guerra parcial, mas buscando preservar os homens. Eis o sentido da retirada de Jerson, após as retiradas das regions de Járkov, e de Kiev.

Nós contamos os kilómetros quadrados retomados polos ucranianos, mas os russos esperam a queda das economias europeias. Somos a sua frente principal.

Obviamente podo enganar-me, mas vivo com a ideia de que o comportamento dos russos é legível, porque é racional e duro. As incógnitas estám noutro lugar.

Muitos observadores assinalam que a Rússia tem o PIB de Espanha. Nom sobre-estima você o seu poder económico e a sua capacidade de resistência?

A guerra vira num test da economia política, ela é a grande reveladora. O PIB da Rússia e da Bielorrússia representa o 3,3% do PIB ocidental. (USA, anglo-esfera, Europa, Japom, Corea do Sul), praticamente nada. Um pode perguntar-se como este PIB insignificante pode fazer frente e continuar produzindo mísseis.

A razom disto é que o PIB é umha medida fitícia da produçom. Se retirarmos do PIB dos USA a metade dos seus sobre-facturados gastos de atençom médica, logo a “riqueza produzida” pola actividade dos seus advogados, polas prisons mais cheias do mundo, e logo por toda umha economia de serviços mal definidos, incluída a “produçom” dos seus 15 a 20 mil economistas com um salário promédio de 120.000 dólares, damo-nos de conta que umha parte significativa deste PIB é fumo de palha.

A guerra devolve-nos à economia real, permite-nos compreender qual é a verdadeira riqueza das naçons, a capacidade de produçom, e portanto a capacidade de guerra. Se voltarmos às variáveis materiais, vemos a economia russa. Em 2014 implementamos as primeiras sançons importantes contra a Rússia, mas a Rússia aumenta a sua produçom de trigo, que passa de 40 a 90 milhons de toneladas em 2020. Enquanto que, graças ao neoliberalismo, a produçom de trigo estadunidense, entre 1980 e 2020, passou de 80 a 40 milhons de toneladas.

A Rússia também se converteu no primeiro exportador de centrais nucleares. Em 2007, os estadunidenses explicavam que o seu adversário estratégico estava em tal estado de deliquescência nuclear que aginha os USA teriam umha capacidade de primeiro ataque sobre umha Rússia que nom poderia respostar. Hoje em dia, os russos estám em superioridade nuclear com os seus mísseis híper-sónicos. (…) A Rússia tem umha verdadeira capacidade de adaptaçom.

Segundo você, esta guerra nom é apenas militar e económica, senom também ideológica e cultural…

Exprimo-me aqui, sobretodo, como antropólogo. Houvo estruturas familiares na Rússia mais densas, comunitárias, alguns de cujos valores sobrevivêrom. Há um sentimento patriótico russo que é algo do que aqui nom temos nem ideia, nutrido polo subconsciente dumha naçom família.

A Rússia tinha umha organizaçom familiar patrilinear, isto é, na que os homens som centrais, e nom pode aderir a todas as inovaçons ocidentais neo-feministas, LGTB, transgéneros… Quando vemos a Duma russa votar umha legislaçom ainda mais repressiva sobre a “propaganda LGTB”, sentimo-nos superiores. Podo sentir-me assim como um ocidental ordinário. Mas dum ponto de vista geopolítico, se pensamos em termos de poder brando (soft power), é um erro.

No 75% do planeta, a organizaçom parental era patrilinear, e lá podem sentir umha forte compreensom das atitudes russas. Para o colectivo nom ocidental, a Rússia afirma um conservadorismo moral reconfortante. (…)

Quando fazemos geopolítica, interessamo-nos em variados ámbitos: as relaçons de poder energéticas, militares, produçom de armas (que nos remite às relaçons de força industrial). Mas também está a relaçom de forças ideológica e cultural, o que os estadunidenses chamam “soft power.” (…) Hoje em dia, a Rússia, tal como se reposicionou como arquétipo de grande potência, nom apenas anticolonialista, senom também patrilinear e conservadora de costumes tradicionais, pode seduzir muito mais longe.

*Publicado em Le Figaro. Traduçom do Galizalivre a partir da versom de Pressenza.com