Em 2007, a Escola Popular Galega, organismo formativo dos movimentos, convocava durante várias semanas distintas pessoas envolvidas nas causas colectivas do País, dando voz a geraçons, ideários, trajetórias e biografias muito diversas, mas com o fio comum da defesa da naçom e a justiça social. Os colóquios reproduzírom-se depois na obra «Palavras sem maiúsculas. Experiências militantes na Galiza. (1970-2005)». Um dos entrevistados foi Manuel Bello Salvado, galeguista de Mesia que nos deixava no passado Natal. De Galizalivre reproduzimos a segunda parte daquela profunda conversa, como homenagem a um activista incansável, sempre amigo do nosso portal e de todas as causas nobres, e também como ferramenta de conhecimento e formaçom para todos e todas aquelas que seguem na tarefa.

(A primeira parte da conversa podes lê-la aqui).

E a vossa relaçom com o poder, com a câmara municipal, com os caciques como era?

Eu notei algo de assédio. A estrutura do poder, a implantaçom do PP, tem, para mim, umha explicaçom singela. Esse aspecto ideológico ao serviço de Espanha para captar o apoio da gente rural galega, explico-o assim; nom procuram militantes nem apoios, procuram só fichar as pessoas com influências no ámbito local. Os médicos em Mesia sempre estivérom no PP; ou eram filiados, ou eram pressionados para entrarem. E outra parte fundamental eram os veterinários, e nos concelhos das redondezas os cregos. No nosso nom, vês? Mas cuidado, que o crego nom era perigoso porque pouca gente apoiava o Bloco. E o resto da populaçom, com essas pecinhas em maos do PP, submete-se a isso. E depois de falar com gente velha, decatas-te porque acontecem muitas cousas. E que dar-vos conta que eu pertenço a umha geraçom que já tivo muitas cousas: os primeiros liceus da zona, eu puidem ir a eles, a partir do 1982, com certas medidas boas, o crescimento económico, a queda da ditadura, as casas muito melhores… eu ainda acordo as cortes dentro das casas, e as comedeiras no corredor, saías da cozinha e abrias as janelas estas de madeira e davas-lhe a erva às vacas, as cozinhas de terra, nom havia banho nas casas… entom isso em dez ano mudou muitíssimo. A atuaçom do resto da populaçom, entendia-se. Diziam-che: “é que nós passamos fame; é que nós nom tínhamos para vestir; à escola ias umha jeira à semana, só para aprender a botar umha assinatura”. Entom reparas que com tanta repressom cultural, negaçom de todo tipo de direitos, submetimento à cultura e formas de vida espanholas, que nom havia capacidade de reacçom. Nem havia grupos sociais, nem grupos de poder que fixeram frente a essa colonizaçom. Era gente colonizada, mantinham-se as formas de falar e comunicar-se em galego porque era o que se falava. Depois os valores eram, e som ainda em muitos lugares, dumha sociedade… os topónimos todos espanholizados , os cartazes das festas em espanhol, a cultura católica estava mui interrelacionada com a cultura popular…

E a ti parece-che que esse catolicismo influiu na submissom?

Parece-me, sim, esse é outro fator. O papel da igreja, na Galiza e no rural muito mais, polo que tenho analisado, nos anos em que eu fum adolescente, foi fundamental. Era um agente espanholizador, ainda o é hoje, nem 5 % das celebraçons eram no idioma do país. É um dos fatores que tem muita importância. Agora vai perdendo peso, afortunadamente, já há algum casamento polo civil, algum avanço , mas continuam aí.

Em algum momento notaste pressom? No bar, dos amigos, dos picoletos…

Notei, efetivamente. Pressons havia. Psicológicas, políticas, laborais, e pressons com intençom de avergonhamento público. Eu estou mui agradecido a que descobrir este país quando o descobrim, e quando eu soubem que eu tinha que ser umha areia dessa praia, figem-no dumha maneira mui certeira e com muita segurança. Creo que se nom o tivera feito assim, teria retrocedido, teria-o deixado.

Como explicas no recuar? Que muita gente coma ti aguante?

Pois no meu caso, simplesmente ir a um ato polo Bloco, e saber que tinhas relaçom com esse coletivo, provocou-me cousas como esta que vos vou contar. Numha final de liga, num bar, a liga perdera-a o Real Madrid, e ganhara-a o Barcelona, entom, eu sem ser de nengumha das duas equipas, alegramo-nos: “que bem, perdeu o Real Madrid”. Porque já tínhamos a consciência do Madrid ser a equipa do franquismo, e a equipa de Espanha. Entom umhas pessoas, com as que partilháramos muitas cousas na paróquia, mesmo tarefas, como de ir à erva seca… esse dia, sentírom-se tam feridas, de que te estavas a burlar da sua equipa, que era como burlar-se dum filho, pois ponhem-se a assinalar-nos com o dedo e berrar-nos: “bloquero, bloquero!”. Claro, para eles era um insulto, nem mais nem menos que um insulto. E claro, estás a dar quatro passos nessas ideias, e no momento sentes-te avergonhado. Hoje ris, mas daquela nom rias. É que te assinalavam com a cabeça alta e o peito inchado, como dizendo “este es um bloqueiro, parece que ninguém o sabe nós dizemo-lo, e diante de todos.” E isso dói, eh?

Também está o controlo os agentes da ideologia do espanholismo. Naquele momento fazia-o o presidente municipal, que era o veterinário. Eu nisso tivem umha história, porque eu, além de estar no BNG, esse sentido que eu tinha de segurança, de amor ao país, de ter o compromisso mui claro, sempre me levou a ter umha visom bastante aberta com todos os movimentos; nunca fum crítico com nengumha expressom do movimento fora do BNG, sempre mantivem muita relaçom. Sempre entendim as cousas coma umha praia onde cada cousa é um grau de areia. Eu sempre tivem curiosidade, e daquela tinha muita força, força informativa, a apariçom do Exército Guerrilheiro e todo o que implicava aquele movimento. E bem, umha vez, numha manifestaçom em Compostela, caiu nas minhas maos um boletim, o Atreu, que editavam as JUGA. E como tés coraçom, vês que há que gente que nom conheces mas que está dispersada, presa, em diferentes cadeias espanholas, e que tenhem este trato, estas restriçons, esta repressom e tortura psicológica, o correio intervido… entom tivem um contato com este coletivo através dum correio, escrevendo-me com Duarte Abade, que estava preso. E ao começar a cartear-me, descobrim um pouco o sistema penitenciário, lendo também livros de intelectuais, e de presos do franquismo. Isso levou-me umha vez a enviar um poema de quatro linhas, umhas saudaçons da Terra, aos patriotas galegos. E assinei como Manuel Mesia. Com esses dados apareceu no Atreu publicado. Para surpresa minha, num domingo, ia tocar o sino para a missa das doze e chegou o alcalde com o seu Renault 18. Eu nom sei como me dei conta, andei ali à volta do adro e vim dous exemplares do Atreu no carro dele. Pensei eu, é incrível, esta revista que som quatro folhas fotocopiadas distribuídas em dous bares de Santiago… Entom aprofundas um pouco mais no inimigo, em como funcionam estes e concluis, claro, que esses boletins eram requisados pola guarda civil ou quem fosse, e que quando alguém ponhia Vimianço, ou o nome da sua vila, o alcalde de turno era informado.

Daquela mesmo havia militantes de Galiza Nova que nom podiam receber na casa cartas com carimbo, com referências à organizaçom.

Sim, efetivamente. Eu esse apartado vivim-no em primeira pessoa. Primeiro por umha questom. O nacionalismo espanhol age no rural galego apoiado nas forças vivas que exercem o poder nos municípios. O PP sempre tratou mui bem os carteiros e os funcionários de correios. Havia um trato mui bom com os vizinhos, e logo pedia o voto. E de passo, controlava quem recebia o “Fouce” do SLG, quem era de Unions Agrárias, quem pensava assi e assá. E claro, eu em Mesia vivim isso. De feito, algumhas cartas do local nacional do BNG, que eram de Galiza Nova, já sentira algum tipo de comentário de colegas, que dixerom que andas metido em cousas. A resposta foi chamar ao local e dizer que as cartas nom levassem membretes. E outro caso que me passou foi que, com a minha liberdade, que nunca por questons partidárias nem organizaçons me coartou, fixem-me assinante dumha revista política-social basca, que se chamava Ardi Beltza. A questom é que essa revista vinha nom em envelope, senom plastificada, e via-se todo. E aos dous ou três número, num cabodano, na Igreja, alguém me deu o toque mui seriamente. Dixo-me: “mira, tenho que che contar umha cousa. Escuitei na paróquia de Lançá, em tal taberna, que tu estás a receber cousas que te vam trair sérios problemas. Que a guarda civil de Cúrtis está mui interessada em saber isso.” E tivem que chamar a Bilbao para dizer o mesmo, que me mandassem todo em sobres.

É tremendo, porque era um ambiente de excecionalidade democrática total, quase franquista, mas nos anos 90.

Sim, mas isso mudou hoje, e é importante dizê-lo. Mudou porque certas pessoas nom dérom o braço a torcer, e demonstrou-se à outra parte: aqui há espaço para todos, ainda que vós sejades maioria. E com o tempo, houvo um trabalho politico mais sostido, nom se retrocedeu, contactou-se com mais gente. E já nom podem dizer qualquer cousa, a gente vai-te conhecendo. Vamos, houvo certos custes, mas resistiu-se consegui-se algo importante.

E o teu contato com outras organizaçons como começa?

Isso quiçá foi a experiência mais agradável do trabalho político. Com o tempo dás-te de conta que é importante ir a atos nacionais, sobretodo a Compostela. E aí, e quando passas à universidade, descobres que o movimento nacionalista, o movimento de libertaçom, que é muito mais complexo, que existem muitos tipos de expressom. Para mim foi mui interessante. Esses debates que havia, sobre o uso da normativa do galego, da reivindicaçom politica, se nacionalismo, se independentismo, mesmo se atuaçom institucional, ou mesmo porque sucedia o da luta armada, como a finais dos oitenta. Isso levou-me a ter contato com gente de outras organizaçons, apesar de ser eu sempre umha pessoa do Bloco. Vendo como positivo o trabalho de cada quem. Esta é umha experiência que hoje mantenho, sobretodo desde os últimos dez-doze anos. E hoje podo dizer que mantenho relaçom com todos, ou quase todos. Isto também veu propiciado porque na minha etapa de estudante, dérom-se alguns movimentos aqui na Galiza que eram transversais, mais movimentos sociais, como foi o da insubmissom. Aquilo foi umha experiência mui rica, onde conhecias gente dum sítio e de outro, de muitas procedências. Daquela implicara-me muito também.

Respeito a questom agrária, como afectou a implicaçom total na UE? Que mudanças houvo?

As mudanças fôrom tam grandes que, como dizem os meus irmãos mais velhos, a Mesia de há trinta anos nom tem nada a ver com a que há agora. É curioso, eu som crítico com as políticas da UE, porque fixérom que muita gente tivera que marchar do campo. Sem embargo, os que vivem hoje nom pensam assim, utilizando sobretodo a variável económica. Porque Mesia, que é o concelho do país com mais vacas por kilómetro 2, um concelho mui produtor de leite, viu umha grande rutura. Nos anos 80 havia muitas casas com vacas, com cinco, com seis, quem tinha quinze já era um potentado. Mas isso nom se pode desmentir, porque nós tivemos vacas, e isso era umha ajuda à economia, nom se vivia disso, era apenas um apoio. As políticas da UE eliminárom exploraçons, e fixérom que ficaram as grandes propriedades, todo mui mecanizado, em forma de autênticas empresas, entom as pessoas que estám à frente, dizem-che que se pode viver nela, num sentido mais materialista: fatura-se tanto, pode-se ter dous carros. Vamos, umha vida como de classe média, mais semelhante à que se leva nas cidades. Ter umha casa como é devido, os filhos na universidade. E isso antes nom, entom claro, é um fator sobre o que nom tenho visom marcada. Porque por umha parte dizes, antes havia muita gente assentada, mas vivendo em condiçons precárias. E hoje vivem menos, mas com umha qualidade de vida maior. Nom sei que conlussom dizer. Também há outra cousa: existe umha geraçom que se jubila, ou que morre, e os que vinham detrás nom quigérom seguir com o trabalho agrário, porque estudárom, procurárom trabalhos fora, em indústrias que emergêrom a finais dos setenta, como a madeira em Cúrtis, as cerâmicas de Mesia, fôrom a Ordes, a Carral… porque claro, o conceito que havia na minha geraçom é que as vacas eram mui atadas, há que atendê-las sete dias à semana, há que mugi-las duas vezes ao dia, há que lhes dar de comer todos os dias… e se saes de noite, o domingo há que erguer-se para mugir. A gente queria romper com essa atadura, ter o fim de semana para mim. Notei que nos anos 90 penetrou um modelo de vida urbano.

Que lembras da universidade?

Home, a universidade para mim foi pôr na prática todo o que já ia acumulando. Tinha assentada a consciência, mas nom podia participar em política pública, porque eu ainda punha cartazes em Mesia, ou faixas, e ao chegar à minha paróquia, ficava no assento de atrás, todo doblado. A Gino fazia-lhe muita graça: “isto é como na clandestinidade”. Mas sim, a universidade foi esse passo. Nom sentir essa repressom da família, dos vizinhos, ir a umha aula, conhecer gente de outras partes do país. Fum à Crunha, à faculdade de Sociologia, e como era umha faculdade nova, recém criada, tivemos a oportunidade de pôr a andar os CAF, com mui bo trabalho, sempre com umha ideia mui aberta. Tínhamos a maioria da Junta da faculdade, com um CAF mui participativo: havia gente do ecologismo, como havia partidários da legalizaçom das drogas, como gente de IU, como três ou quatro que logo fomos conselheiros do BNG, um insubmisso, que era militante do Partido Socialista dos Trabalhadores. Fora nesse momento a insubmissom, as primeiras mobilizaçons polo idioma em sociologia, reclamandao mais aulas em galego, quando nom havia nengumha, com professorado todo de Madrid. Isso foi umha experiência mui grata, nom tanto nos estudos. A reitoria era de Meilám Gil, que queria faculdades com prestígio, inchando o número de catedráticos, vários deles próximos ao OPUS, de fundaçons do PP… entom, em troca de ser umha daculdade ponteira na analise social galega, pois era todo teoria, que era o que sabiam, esses professores sem vaga em Madrid, que vinham a províncias. Gente que, no pouco tempo que estivérom aqui, nom aprendêrom umha palavra de galego. Isso sim, mui educados nas formas, no estilo dos novos nacionalistas espanhóis.

Umha cousa da que nom se sabe grande cousa, fora dos que participades, é do movimento cristao galego. Ninguém lhe dá nenhum eco. Conta-nos algo…

É certo. A gente está noutras latitudes. Eu entro em contato, primeiro, porque os cregos relacionados com o nacionalismo na minha comarca, participavam do movimento cristao galego. Entom, como eu tinha umhas inquedanças, convidárom-me à romage, que se celebra habitualmente no mês de Setembro. Gostei muito, porque vim pouco de religiom e muito de movimento, no sentido popular e galeguista. Entom é onde descubro que o movimento é muito mais que um nome, que há muita gente implicada: o trabalho de Encrucilhada, de Irímia.

Desculpa que te interrompa: porque umha cousa surpreendente é que, sendo um movimento bastante mais amplo que o independentismo e com umha continuidade de décadas, nom é conhecido nem pola gente politizada…

Pois alegra-me que me digades isto. Sim, é bem mais amplo. É desconhecido por isso, dades dados certeiros, porque eu, ao participar disto ano início, fiquei surpreendido. Encrucilhada tem mais de mil assinantes, colaboram com ela pessoa mui mui respeitadas no académico. Começas a ver cousas impressionantes de gente mui rebelde, digo rebelde respeito a igreja estamental. E depois está a revista Irímia, que sai regularmente cada quinze dias. Tem 1500 suscriçons, e cada quinze dias está nas casas, com 25 euros de quota. Penso que nom funciona com liberados, senom com trabalho voluntário, muito de professores. Claro, é um movimento que nom participa da política organizativa, mas é mui disciplinado. Isso funciona assim, com dez pessoas, que se reúnem duas vezes por semana. É como a Romage, que é dos atos centrais do movimento, promovida por Xosé Chao Rego, que se fai no rural. Sói-se fazer à beira do mar, ou no monte, em enclaves mui bonitos. Eu à primeira que fum foi em Carnota. Pois esse é um ato que cada ano se dedica a umha causa; a língua, a paz, o ecologismo, e junta perto de 6000 pessoas. É como outro acto que se fai, o Berro Seco. Som actos mui de ánimo colectivo.

É um movimento que foi em aumento, sem fazer muito ruído, mas trabalhando seriamente.

Porque nom ligou com o resto do nacionalismo? Polo ateismo?

Sim, fundamentalmente, mas isso nom é certo de todo. Nos anos 80, parte dos dirigentes e parte da gente que sentou as estruturas do movimento de crentes, tinha vencelho político mais estreito com Esquerda Galega, e muito menos com o BNG, ainda que houvesse algum caso. E também havia vencelhos com as Comissons Labregas, e antes disso, os Comités de Ajuda à Luita Labrega, esses sim, fôrom gente crente galega. E aí menciono a Moncho Valcarce, as Encrobas, Baldaio, as marchas a Jove, as Enchousas, Porto de Mouros. Nom tivem experiência directa, mas por contacto com essa gente, que leva muitos anos, percebim esse distanciamento com a outra parte do nacionalismo. Um distanciamento que já se superou, em parte já se superou.