Nos catecismos da escolástica soviética sobre Marx ensinava-se-nos que a história era espiral, mas ascendente, como na conceiçom eurocéntrica, patriarcal, racista e burguesa de Kant ou Hegel. O chanço presente mais avançado eram as sociedades capitalistas industriais europeias, o resto classificava-se em primitivas ou modernas segundo o grau de proximidade a este modelo. Porém, o fim do progresso humano havia culminar coa toma do poder pola nova classe que o capitalismo criara e que estava destinada a instaurar umha fase definitiva na nossa evoluçom, o proletariado. Primeiro chegaria o socialismo, em que desde as formas do Estado-naçom instauradas polo capitalismo avançaríamos à segunda e derradeira, o comunismo, o paraíso na terra.

Nom deixa de resultar paradoxal e até simpático que esta visom da história, defendida decote polos ateus mais teimudos, seja profundamente judeu-cristá. Carl Gustav Jung gostava de demonstrar a sua teoria dos arquétipos exemplificando em como os cultos à personalidade soviéticos concordavam cos atributos do cristianismo ortodoxo. Marx era Deus pai e o velho testamento, Lenin era Jesus e o autor da nova lei e Stalin, o Sam Pedro cabeça da igreja. Anulara-se a religiom superficialmente, mas os seus moldes ficaram intatos e cubriram-se coas novas fasquias. Igualinho que figera o mesmo cristianismo coa religiom politeísta galaica ou azteca. Agora Návia era Santa Marinha e a deusa Tonantzin, a virgem de Guadalupe. Pola mesma, só desde o fanatismo mais cego podemos negar que o esquema Edém-trabalho com suor-Messias-reino de Deus na terra é idéntico a comunismo primitivo-propriedade privada-classe operária-comunismo. Se o marxismo nascesse entre o daoísmo chinês ou entre o shintoísmo nipom, jamais poderíamos partilhar este paralelismo.

Mas que tam todo isto a ver co Jesus histórico? Longe da ideia neoplatónica dum reino de Deus celestial ao que acedemos morrendo, a crítica histórica atual é unánime em sentenciar que Jesus acreditou num reino de Deus terreno. Era umha velha ideia do messianismo judeu que se concebeu no exílio babilónico e atingiu o seu máximo esplendor nos séculos I antes da nossa Era e I e II de depois. Tanto é assim que nos evangelhos ao galileu nom lhe cumpre descrevê-lo polo miúdo, porque o seu auditório já sabe ao que se está a referir. Endebém, para o cristianismo primitivo e para Jesus mesmo, este reino constava de duas etapas: umha primeira em que o messias instaurava umha nova ordem na realidade material, de abundância e justiça, prévia a umha segunda em que se fusionariam céu e Terra através do próprio Deus a harmonizar as duas dimensons. O Livro da Revelaçom ou Apocalipse atreveu-se a fixar-lhe duraçom à fase inicial em mil anos. De aí umha das razons da crise do milenarismo dos séculos X e XI na Europa que, superada, deu pé à revoluçom románica e feudal do XII.

Contodo, existem diferenças notáveis entre o reino de Deus que predicou o carpinteiro de Galileia e o convencional da sua época. Para ele nom se tratava apenas de arrapanhar-lhe a soberania do povo judeu ao império romano e situá-la só baixo a única autoridade de Deus para convertê-lo em modelo e hegemon entre todas as naçons. No discurso de Jesus, o reino de Deus, o reino judeu liberado que ceiva depois todos os povos, é das classes populares e das despossuídas. Essa mensagem abrupta inicial resiste todas as manipulaçons posteriores e chega a nós desde os mesmos evangelhos. A imagem que o representa é a dum banquete comunal de abundância absoluta do que som excluídos os ricos.

A comunicade cristá primitiva que está detrás do evangelho de Mateu censurou todo o conteúdo de classe do Jesus histórico, já que estava ateigada de crentes ricos, como hoje sabe a crítica histórica. Porém, os evangelhos de Marcos e Lucas conservárom a mensagem original. No sermom da montanha de Lucas 6:20-21 recolhe-se: “Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus. Bem-aventurados vós, que agora tendes fame, porque seredes fartos. Bem-aventurados vós, que agora chorades, porque havedes de rir.” Em contraposiçom às classes populares, como um apologista da ditadura do proletariado, o Jesus de Lucas sentencia a seguir em Lc 6:24-25: “Mas ai de vós, ricos! Porque já tendes a vossa consolaçom. Ai de vós, os que estades fartos, porque teredes fame! Ai de vós, os que agora rides, porque vos lamentaredes e choraredes!”. Quando o contrastamos co texto de Mateu, a manipulaçom fai-se evidente, os pobres já nom som pobres, som “pobres de espírito” (Mt 5:3). Aliás, aparecem novas beatitudes a clamar pola paz social : “bem-aventurados os mansos, porque eles herdarám a terra; bem-aventurados os pacificadores, porque eles serám chamados filhos de Deus”(Mt 5:5-6). O evangelho de Lucas ainda redunda mais na questom: “Pois, do mesmo jeito, qualquer de vós que nom renuncie a todas as suas propriedades, nom pode ser discípulo meu.” (Lc 14:33). O evangelho de Marcos, o primeiro, também se exprime contundente neste tema. Quando um beato rico lhe assegura que cumpre os mandamentos e lhe pergunta que mais precisa para entrar no reino de Deus, Jesus responde-lhe : “Umha única cousa che falta; vai, vende todo o que tés e dá-lho aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me”(Mc 10:21). A continuaçom, o galileu reflete sobre os ricos e o reino de Deus na terra: “Que difícil é que entrem no Reino de Deus os ricos!”(Mc 10:23); “Filhinhos, que difícil é entrarem no Reino de Deus os que ponhem a sua confiança nas riquezas! É mais doado passar o camelo polo burato dumha agulha do que entrar um rico no Reino de Deus” (Mc 10:24-25); “Muitos dos que som primeiros serám últimos e muitos dos que som últimos serám primeiros.” (Mc 10:31). Quanto ao empoderamenteo dos e das despossuídas merece um capítulo à parte o das mulheres no Jesus histórico, ao que dedicaremos o próximo artigo.

As parábolas de Jesus que a maioria da crítica histórica nom confessional da atualidade considera auténticas (como o sementador ou os vendimadores) estám baseadas no mundo do trabalho labrego e marinheiro de Galileia. Isto fala às claras da procedência de classe dos receptores da mensagem jesuánica. Muitos dos milagres contidos nos evangelhos agacham o mesmo fundamento e elaborárom-se sobre ditos ou feitos reais magnificados pola lenda e a transmisom oral. A multiplicaçom dos pans e dos peixes, por exemplo, nom se produz da nada, senom a partir da posta em comum da comida de todas e todos, que acaba por saciar umha multitude: “E ele dixo-lhes: Quantos pans tendes? Ide ver. E eles respondérom: Cinco pans e dous peixes. E ordenou-lhes que os figessem sentar a todas e a todos, em roda, sobre a erva verde. E sentárom-se repartidos de cem em cem, e de cinqüenta em cinqüenta. E, tomando ele os cinco pans e os dous peixes, levantou os olhos ao céu, abençoou e partiu os pans, e deu-lhos aos seus discípulos para que os pugessem diante delas e deles. E repartiu os dous peixes para todas e todos. E todas e todos comérom, e ficárom fartos” (Mc 6:38-43).

Mas como se ia exercer o poder nesse reino de Deus terreno? Os evangelhos canónicos conservam a ideia original desde o mais próximo no tempo ao rabbi de Galileia, o de Marcos. Quando os doze apóstolos discutem sobre quem há ser o dirigente principal ao triunfar o movimento, ele retruca-lhes em Marcos 9:35: “Se alguém quiger ser o primeiro, será o derradeiro de todos e o servo de todos.” Velaí a primeira manifestaçom do mandar obedecendo que o zapatismo recuperou na contemporaneidade. Resulta impossível nom lembrar neste ponto a ética da liberaçom de Enrique Dussel e que o rosto humano trás a máscara do Sub-comandante Marcos foi professor do seu departamento na UNAM antes de gabear as montanhas de Chiapas. Os evangelhos de Mateu e Lucas aclaram ainda mais a cena. Mateu pom na boca de Jesus: “Sabedes que os governantes das naçons as dominam, e as pessoas importantes exercem poder sobre elas. Nom pode ser assim entre vós. Pola contra, quem quiger tornar-se importante entre vós deverá ser o vosso servo e quem quiger ser o primeiro deverá ser o vosso escravo”(Mt 20:25-27). “E houvo também entre eles contenda, sobre qual seria o maior. E Jesus dixo-lhes: Os reis dos povos dominam neles, e os que tenhem autoridade som chamados benfeitores. Mas nom seredes vós assim; melhor que o maior entre vós seja como o menor; e quem governa como quem serve. Pois quem é maior, quem está à mesa, ou quem serve? Logo nom é quem está à mesa? Eu, porém, entre vós som como o que serve” (Lc 22:24-27).

Um dos debates mais interessantes entre os estudiosos nom confessionais dos textos do Novo Testamento é o da presença ou futuridade do reino de Deus. A crítica divide-se ente os que acreditam em que para Jesus a primeira fase do reino havia chegar de forma abrupta e divina, o fim do mundo conhecido precedido de catástrofes escatológicas, e os que cuidam que era umha construçom lenta inspirada por Deus. Os primeiros contam ao seu favor cos feitos que levárom o galileu à pena de morte: a aguarda da intervençom divina no assalto ao templo de Jerusalém e a espera desta no Monte das Oliveiras, o espaço indicado polas profecias para a apariçom do messias e o reino. Porém, os segundos achegam citaçons mui claras dos evangelhos canónicos: “Os fariseus perguntárom-lhe um dia a Jesus quando viria o Reino de Deus. Respondeu-lhes: O Reino de Deus chega sem se sentir. Nom se dirá: Ei-lo aqui; ou: Ei-lo ali. Pois o Reino de Deus já está no meio de vós”(Lc 17:20-21). Mas, sobretodo, o evangelho de Tomé, umha coleçom de ditos de Jesus, com cópias encontradas em Oxirrinco em 1897 e Nag Hammadi em 1945, que divide a papirologia e a crítica textual entre quem o situa no ano 60 e quem o fai no 140 da nossa Era. Para os partidários da maior antigüidade que a dos evangelhos canónicos (Marcos é de pouco depois do ano 70), este texto, completamente isento de apocalíptica, demonstraria que esta penetrou de vez no cristianismo depois da destruçom do templo de Jerusalém no ano 70. Aquela catástrofe militar e religiosa para o povo judeu seria interpretada polas comunidades cristás primitivas como um sinal do fim dos tempos e o retorno de Jesus. Contodo, umha parábola unanimemente aceitada como proveniente do Jesus histórico, a do grao de mostarda, presente nos très evangelhos sinópticos e mesmo no de Tomé, também parece sinalar este crescimento vagoroso do reino: “A que assemelharemos o reino de Deus, ou com que parábola o representaremos? É como um grao de mostarda, que, quando é sementado na terra, ainda que seja menor que todas as outras sementes que ali se botam, depois de sementado, medra e torna-se a maior de todas as hortaliças, e deita grandes ramos, de tal modo que as aves do céu podem pousar à sua sombra.”(Mc 4:30-32). Por traçarmos umha analogia doada, pudesse ser que a morte do líder na cruz e o atrasso do salto histórico supugesse um golpe semelhante à demora na internacionalizaçom brusca da revoluçom para o leninistas da primeira metade do XX. A conceiçom da apariçom vagorosa do reino de Deus em inicial coexistência confrontativa co poder imperial, que também recolhem as cartas de Paulo de Tarso, seria assim umha visom semelhante à da luita delongada pola hegemonia de Gramsci.

Se, como dixemos no primeiro artigo, aplicamos a máxima de Marx de que a teologia era ideologia antes da apariçom da modernidade capitalista, havemos valorar melhor as revoluçons religiosas do passado. Nom só a cristá primitiva, senom também a irrupçom do Islám, o budismo chan, o movimento cátaro ou o franciscano. De feito, como quero demonstrar ao cabo destas reflexons, as trajetórias de sucesso e derrota de todas elas tenhem muito que ensinar à esquerda atual.

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