Toda viagem começa antes de partir. Já é realidade nos preparativos, nas expectativas e nas emoçons prévias a tomar rumo. Escrever é para mim umha viagem, umha viagem interna. Portanto a confeçom deste texto começou muito antes de me sentar em frente ao computador. Foi umha travessia trespassada por remeximentos e resistências.

Tudo isso porque o tema proposto para este número me confronta. Sinto o compromisso de escrever mas também o efeito dumha força que me arrasta no sentido contrário. Recuso-me a redigir. Autojustifico-me. Digo para mim que o tema nom me motiva, que as tecnologias nom som o meu. Que o meu corpo pede cada dia dialogar mais com a natureza. Que a cultura digital é algo perigoso e indesejável. Que está a atrofiar os nossos sentidos, a enturvar a relaçom com o mundo, a erodir os vínculos. Que converte o nosso comportamento num algoritmo previsível e rentável. Como se dizia na convocatória deste número, a tecnologia é o demo do século XXI. Será?

Ao mesmo tempo em que todos esses sentipensares me venhem à cabeza, também acho a necessidade de partilhar reflexons sobre a utilidade e pertinência do contexto virtual para os espaços de cuidados da saúde, entendida dumha perspetiva integral, nestes tempos de confinamentos e distância social.

Para quem acionamos desde e com disciplinas somáticas, a realidade pandémica colocou-nos perante umha encruzilhada: deixar em hibernaçom os nossos projetos e compromissos para catalisar processos de (auto)cuidados e promoçom da saúde ou buscar fórmulas para os continuar oferecendo sem renunciar àquilo que é essencial para o seu desenvolvimento. No meu caso, o ambiente virtual foi um elemento a explorar nessa fórmula que continua em permanente construçom.

Durante os meses de confinamento domiciliário, dado o isolamento em que se encontravam muitas pessoas e os altos níveis de mal-estar psíquico, o caminho a explorar passou por gerar um espaço biocéntrico em linha do cuidado comunitário da saúde. Encontros virtuais umha vez por mês de acesso gratuito nos quais poder partilhar sentires, reflexons e práticas saudáveis. E principalmente mover o corpo, aliviar tensons. Recuperar fôlegos. Fomentar o sentimento de pertença a umha comunidade que cuida da saúde pessoal e coletiva.

Nom foi umha decisom ligeira (…). Para além de levarmos ao contexto virtual atividades presenciais programadas com anterioridade à pandemia, vimos o aumento exponencial do mercado virtual em âmbitos como o educativo, o entretimento, a preparaçom física e também na saúde e no bem-estar.

Ao nom desejar ser umha corrente mais nessas águas do marketing neoliberal, tivem muitas dúvidas sobre o “se” e o “como”. As atuaçons de acompanhamento e cuidado que teço teriam cabimento na virtualidade? Que oportunidades e que riscos implicaria? Que elementos deveriam ter para conservar a sua capacidade de afetar (entendida aqui como a possibilidade de pôr em movimento os afetos) as pessoas participantes, de as tocar na sua sensibilidade para as motivar ao autoconhecimento e ao autocuidado? Tem sentido levar propostas corporais grupais a essas plataformas? Como exercitar o olhar acolhedor quando o contacto visual está delimitada por um ecrã? Como fugir ao fascínio da nossa própria imagem e manter-se em vivência?

Depois de muito refletir sobre estas e muitas mais perguntas, de partilhar com outres e escutar-me cheguei à conclusom (momentânea) de que no contexto atual era importante ocupar esse espaço e oferecer possibilidades de vinculaçom e trabalho corporal. Tecendo saúde foi o nome dado a esse projeto piloto de investigaçom-açom com o fim de oferecer um espaço de cuidado comunitário da saúde durante o confinamento e experimentar com umha ferramenta corporal como é a Biodanza no contexto virtual.

À margem das questons metodológicas e éticas relacionadas com o Sistema Biodanza, a experiência destes meses nutriram-me dalgumhas reflexons sobre políticas feministas de cuidados e a sua relaçom com a tecnologia que acho importante partilhar para seguirmos avançando enquanto movimento plural e inclusivo.

Dei-me conta da necessidade de sermos flexíveis e de usar a criatividade para achegar propostas e ferramentas úteis a diferentes situaçons vitais. Desde quem tem umha situaçom de saúde fragilizada ou pessoas vulneráveis dependentes, pessoas confinadas preventivamente, gentes que vivem em contextos rurais de maior isolamento ou que por motivos laborais e polas condiçons de precariedade nom logram aceder a esse tipo de espaços. Foi gratificante disponibilizar um formato que pudesse chegar a perfis tam diferentes e à heterogeneidade, e conseguinte riqueza, dos grupos. A diversidade de vivências e de práticas de cuidado que emergiam em cada encontro.

Reafirmei também o importante, que é continuar a cultivar espaços nos quais trabalhar conteúdos tam fundamentais como a sustentabilidade da vida desde linguagens e racionalidades nom hegemónicas. Através da co-escuita, da palavra sentida, da vivência, do movimento, dos elementos simbólicos e da música abrimos portas a aprendizagens em comum tendo a afetividade como guia. Ao longo destes meses refletimos sobre cuidados e auto-cuidados, interdependência, vulnerabilidade, memória, território, espiritualidade, comunidade. Nom a partir do teórico, mas do experiencial, do mítico, do poético, sem prejuízo de nom estar a partilhar presencialmente.

Dei-me conta de quanto precisamos da beleza e do encantamento no quotidiano, mais ainda quando estamos a atravessar processos vitais complicados. Nom se trata de escapar da realidade mas sim de nos oxigenar e de adubar a resiliência com elementos que despertam sensaçons de agrado, ledícia e esperança. É cultivar a sensibilidade para viver doutro jeito.

Contudo, também considero importante socializar as dificuldades, desafios e complexidades desta experiência. O primeiro tem que ver com algo nada trivial para o debate sobre feminismos, inclusom e tecnologias, como som as dificuldades de acesso à Internet e o fosso digital que deixam fora das atividades virtuais muitas pessoas. Fôrom incontáveis as vezes em que alguém nom se podia conectar ou manter no encontro devido a que o sinal da Internet é fraco na sua aldeia ou porque nom se podia dar ao luxo de gastar tantos dados do telemóvel.

Somado a isto está a falta de formaçom e de empoderamento tecnológico de quem propom e está ao cuidado do espaço. Para mim foi umha aprendizagem acelerada e muitas vezes estressante e frustrante lidar com umhas ferramentas que nom me eram familiares.

As contradiçons que emergem ao escolher que ferramenta empregar som um temaço. Advertim que aquelas desenvolvidas em código aberto nom cumpriam os requisitos técnicos e as que sim os cumprem levam aparelhadas dificuldades de corte ideológico, ético e de segurança. Reconheço aqui muito caminho por andar. Investigar, partilhar e empregar ferramentas acessíveis, colaborativas, democráticas e seguras tem de ser umha pauta nos espaços e iniciativas feministas.

Outra questom a problematizar é o compromisso nas atividades de acesso livre e como a virtualidade véu a reforçar ainda mais as lógicas líquidas de nos vincular. A pesar de me sentir engajada em manter espaços e relaçons desmonetizadas, de avançar noutras formas de economia e de garantir o acesso a pessoas em situaçom vulnerável, admito que o formato nom me agrada totalmente. Levo já bem anos pensando e trocando impressons sobre a cultura da gratuidade, as variáveis que a atravessam (quem pode criar e sustentar projetos de graça?), as tensons entre a dimensom produtiva e reprodutiva e os impactos que tem na nossas vidas pessoais e coletivas. Por isso este ano apostei em fazer umha mudança e adotar a fórmula de contribuiçom livre e consciente com vista a melhorar o equilíbrio entre a acessibilidade e a sustentabilidade do projeto e da vida de quem está ao seu cuidado.

É assim, trilhando novos caminhos e fazendo equilíbrios entre contradiçons, dúvidas, receios, compromissos e desejos, que vamos cultivando este espaço em linha de cuidado da saúde integral da comunidade em complementaridade com outras propostas presenciais.

Estou certa de que escapando dos binómios maniqueísta e desenvolvendo coletivamente umha olhada crítica feminista e intersecional à tecnologia é como poderemos transitar por estes tempos de colapso sistémico sem perder o rumo. Ou reorientando a rota sempre que for necessário.

Extrato do artigo publicado originalmente na revista Revirada Feminista.