Das aldeias ocupadas nos Pirenéus ao coração do Porto onde os ecos da Fontinha largaram semente, o livro Pensar a utopia, transformar a realidade percorre trilhos por onde circulam pessoas e militâncias movidas pelo potente motor da esperança tornada concreta. Um olhar às práticas concretas, à descoberta da acção colectiva, a projectos que desafiam a regra capitalista e projectam futuros possíveis.

Utopia não é uma ilha isolada mas sim um arquipélago mutante de grupos de afinidade que resistem nos cruzamentos das vidas rebeldes. Assim o vai desvendando João Carlos Louçã em Pensar a utopia, transformar a realidade: práticas concretas (Parsifal, 2021), livro que resulta da etnografia que realizou no Porto e nos Pirenéus entre 2015 e 2018, no âmbito do seu projecto de doutoramento em antropologia 1. Como explicou ao Jornal MAPA numa entrevista online em finais de 2021, o objectivo – ou a necessidade – desta investigação era «encontrar razões de esperança num tempo em que ela é tão rara». Em busca de utopias concretas, o antropólogo escutou dezenas de pessoas que vivem-em-colectivo «partes da vida onde o mercado não chega». Pessoas que se juntam com outras pessoas e resgatam aldeias ao abandono, ensaiam orquestras comunitárias, organizam grupos de trocas, inventam moedas sociais, cultivam hortas sem talhões, reúnem em associações de bairro, experimentam com as próprias mãos (não raras vezes combinando várias destas – e outras – ao mesmo tempo), resistindo enfim ao avanço do capital sobre todas as esferas da vida. A partir desses testemunhos vividos – e dos contextos históricos que terão permitido a sua fermentação – Louçã estabelece ligações e diálogos (por exemplo entre Marx e Proudhon) e tece as suas reflexões sobre visões antagónicas de um mundo que parece estar em vias extinção. Ou será que ainda não?

Como te interessaste por práticas e economias alternativas?

O Porto era uma cidade onde eu já tinha estado em vários trabalhos de campo nos anos 90 ligados à antropologia médica, tinha um circuito de pessoas que pensavam alternativas políticas, alternativas económicas, alternativas de vida, e interessava-me perceber isso, [tinha] um interesse pessoal de, em tempos cinzentos, procurar alguma luminosidade da experiência humana fora das lógicas de mercado. Então, pensei que o elemento de ligação era o pensamento utópico – o pensamento utópico capaz de concretizar projectos. No Porto tinha pessoas que me permitiam a entrada nestes circuitos dos quais esperava aproximar-me e entender. Quantos aos Pirenéus, queria um contraponto não urbano ao Porto com o mesmo fio da concretização utópica e da procura de alternativas. E creio que encontrei, em registos completamente diferentes, o registo não urbano, e aquele contexto em especial – montanha, numa região muito desertificada – é muito marcante, mas, de facto, o pensamento utópico conseguiu, espero eu, conjugar essas duas vertentes do trabalho.

Há uma questão que é a espinha dorsal do teu trabalho e que tem a ver com essa noção da «antropologia comprometida». O que entendes por isso e como se diferencia do posicionamento tradicional dos antropólogos?

A antropologia tem, na sua origem, uma história complicada, muito associada a projectos coloniais, beneficiária directa do colonialismo. Todas as ciências o são, mas a antropologia tem o seu nascimento absolutamente marcado pelo colonialismo. Hoje esse momento de origem é questionado de muitas maneiras. Há inclusive pessoas, a partir de países que foram colónias, a fazer óptima antropologia. Provavelmente são os sítios do mundo em que a antropologia é mais rica neste momento e mais interessante para mim, trazendo uma amplitude mais inovadora para o campo científico. Mas em Portugal há uma dificuldade muito grande em associar estes dois conceitos: a antropologia e o comprometimento político. E acho que isto é uma herança terrível do positivismo, segundo a qual os cientistas têm de manter a neutralidade. Isso é impossível, sobretudo cientistas sociais. A procura de neutralidade é ela própria uma posição definida.
Para mim não faz sentido pensar isto de outra maneira. Se escolhi um tema por interesse próprio, porque precisava de encontrar razões de esperança num tempo em que ela é tão rara, o compromisso com essas experiências para as quais estava a olhar era um dado de partida. Não quer dizer que algumas dessas experiências não possam ser objecto de um olhar crítico. E o nosso olhar crítico sobre nós mesmos, a nossa posição no terreno, a forma como falamos com as pessoas, os sítios de onde vimos, a maneira como escrevemos… tudo isso também faz parte do processo de elaboração teórica, da escrita e da pesquisa em campo. É um compromisso basicamente com a verdade e com a justiça, não é um compromisso com amanhãs que cantam, com futuros gloriosos… Não é nada disso. É um compromisso que parte do entendimento da desordem do mundo e que procura a igualdade entre as pessoas, [um compromisso] com a justiça, com a verdade. Eu escolhi fazer desta maneira, mas isto pode ser feito também sobre as elites económicas, por exemplo. Há muitas outras expressões da tal «antropologia comprometida».

Fala-nos um pouco da tua aproximação ao terreno. Houve algum momento em que sentiste que ultrapassaste o papel de observador?

Grande parte da minha aproximação a estes projectos no Porto foi em «bola de neve»: falava com umas pessoas e depois perguntava: «Conheces alguém que aches que também possa ter interesse eu falar e conhecer?» As pessoas conheciam sempre várias outras, a quem me apresentavam. Nos Pirenéus não havia uma porta de entrada fácil. A primeira abordagem é de desconfiança, de distância. As pessoas não gostam de falar com desconhecidos, de dar indicações de outras pessoas a desconhecidos. Eu estava na companhia de um par de pessoas que não resolviam isso inteiramente, mas ajudavam muito. Eram pessoas que já eram conhecidas, que eram da confiança destes grupos e, portanto, eu ir com elas já era um sinal de confiança. Uma delas é provavelmente o pai da ocupação rural naquela região dos Pirenéus. Ele tem agora 58 anos, era objector de consciência ao serviço militar, nasceu na cidade de Saragoça e, basicamente, vai a fugir ao serviço cívico para as aldeias ocupadas dos Pirenéus, e está lá desde os 18 anos. Portanto, viu nascer todas as ocupações actualmente existentes. É mais velho que a maioria e já viveu em todas aquelas comunidades. Portanto, foi a porta de entrada ideal nestes circuitos. Ele tinha sempre funções: às vezes era tratar do lixo, [como sucedeu] num encontro de ocupação rural em que chegaram a estar 70 pessoas. Houve um momento em que eu e ele tínhamos que tirar o lixo de lá. Enchemos o carro dele, que era um carro grande, e fomos pelos montes até chegar a um ponto de recolha de lixo. Ou seja, o envolvimento não é só intelectual; há uma componente obviamente prática: estou ali, estou a comer com as pessoas, sigo as regras delas, e as regras delas são “todos participam nas tarefas que são necessárias”. Obviamente que também fiz isso. Participei na abertura de uma estrada. Isso custou-me, garanto; carregar com pedras não é uma coisa boa de se fazer, mas como não era numa perspectiva intensa… podíamos descansar, falávamos uns com os outros e as pedras tornavam-se mais leves.

Ao longo do livro antecedes sempre as situações com um enquadramento histórico, em que antropologia e história estão sempre de mãos dadas. No Porto evocas a memória do 25 de Abril e de um «sujeito colectivo» que seria esse «povo revolucionário» envolvido nesse episódio histórico. Além disso, estabeleces uma ligação entre a memória do 25 de Abril e esse momento marcante para as pessoas que entrevistas que é a ocupação da Escola da Fontinha, que é uma espécie de momento fundacional de muitas das histórias. Achas que essa «descoberta da acção colectiva», como lhe chamas, materializada nas assembleias e na autogestão da escola, surge necessariamente de uma memória cimentada na experiência da Fontinha, ou é uma descoberta que pode acontecer sem tal memória?

Comecei o trabalho de campo em 2015. A Escola da Fontinha já tinha terminado há três anos. Sabia que tinha sido uma experiência importante para muita gente. Tinha tido esses ecos, mas não pensava que fosse tão determinante naquilo que fui encontrar no Porto em 2015 e nos anos seguintes, até 2018, em que me mantive em trabalho de campo. Portanto, de alguma maneira, fui surpreendido com a relevância da experiência da Fontinha. Não foi nada que tivesse previsto. À medida que ia falando com pessoas, perguntando-lhes o que estavam a fazer, como e por que estavam envolvidas nesses vários projectos, quase sempre evocavam um elemento comum, que era essa memória do tempo da Fontinha. Portanto, a Fontinha como marcador temporal de vida em que há um antes e um depois. Há um antes, em que as pessoas não se conheciam nem estavam despertas para este tipo de possibilidades, e há um depois da Fontinha, em que as pessoas criaram laços ou redes, que se envolveram em projectos, alguns efémeros, outros que perduraram no tempo, mas sempre associados a esse momento. A Fontinha foi um marcador temporal como para outras gerações o 25 de Abril foi um marcador temporal. Isso hoje já não é tão relevante, mas há 20 anos, há 30 anos, o 25 de Abril era o marcador temporal universal: havia um antes e havia um depois; nada tinha ficado igual a seguir àquele dia de Abril de ’74. E a Fontinha representa, à escala do Porto e junto das pessoas com quem estive a falar, uma analogia com o 25 de Abril.

Referes que as pessoas que estão envolvidas nestes projectos não são movidas por uma revolução aguardada. Estás a falar de vidas comuns que se encontram, que têm caminhos, mas que não estão imbuídas daquelas linguagens revolucionárias que poderíamos encontrar mais presentes no 25 de Abril. Fazes alguma distinção entre essas expectativas, certo?

Sim, absolutamente. Tentei resumir essa questão com a ideia de “contaminação ou revolução”, ou contaminação a partir de experiências que se alastrem no tecido social e ganhem expressão, ganhem volume em momentos particulares – os momentos de crise são momentos particulares para esse movimento de ganhar expressão – em contraste com pessoas que se movem numa perspectiva de construir uma alternativa revolucionária, uma alternativa de mudar a vida mudando as estruturas do Estado. Claro que encontrei muito mais pessoas na primeira hipótese do que na segunda, o que é normal, porque, na relação de forças que vivemos hoje, a perspectiva de mudar para um Estado igualitário, que distribua riqueza de forma justa… Há um sociólogo muito interessante, o Frederic Jameson, que diz que é mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo. E na verdade estamos aí. Há muitos motivos para imaginar o fim do mundo e nenhum deles agradável; o fim do capitalismo é mais difícil de imaginar na situação em que estamos. Mas eu dizia que, de facto, a esmagadora maioria destas experiências são de pessoas que não colocam essa questão à partida para fazerem o que quer que seja; ou seja, com os recursos disponíveis, às vezes com recursos que inventam, e a partir da conjugação de várias pessoas, de várias vontades, latitudes diferentes, também, conseguem montar projectos que disputam os espaços de mercado. Mais do que os espaços de mercado, são as relações construídas pelo mercado. Isso significa relações de trocas que têm a confiança como base, projectos de habitação colectiva, de economia comum ou partilhada, a recuperação de terrenos que estão incultos e que podem passar a estar produtivos e a alimentar pessoas e projectos de vida de várias pessoas. Tudo isso foram os meus pontos de partida e de chegada. E como é que isso se articula com uma mudança mais estrutural, digamos assim? Não sei.

Porquê colocar a ênfase na dimensão económica e não tanto nas relações que se criam nas prácticas de resistência?

Espero também ter posto ênfase nas relações e resistências. [risos] Mas achei que a questão económica era fundamental para a organização destes projectos. E creio que não me enganei. Não é a única questão, evidentemente. Ou seja, a bagagem cultural, ideológica das pessoas é determinante, mas todos estes eram projectos no âmbito económico. Não no sentido produtivista, mas no sentido de olhar a relação económica e para as relações humanas com uma potencialidade que não fosse a da compra e venda de produtos e serviços através dos mecanismos monetários genéricos, digamos assim. Podia ter tentado explorar outros campos, mas pareceu-me que esse era um campo demasiado central para ser ignorado, para não olhar com ele com algum cuidado.

Nas pessoas que compunham os projectos que estudaste, encontravas um debate teórico parecido com aquele que te guiava a ti, no teu quadro teórico?

A resposta é sim, encontrava. Claro que aplicados às suas próprias realidades e aos seus próprios projectos, mas todas as pessoas com quem falei reflectiam bastante as questões teóricas que depois foram relevantes para mim. Ou seja, nunca me senti num nível diferente. O nível em que eu estive foi sempre aquele em que as pessoas me colocaram pelas suas próprias questões, pelas suas próprias dúvidas e pelas prácticas que me relatavam e que eu observava. Não há um nível superior da antropologia que enquadre o que as pessoas nos dizem. Não, o que as pessoas nos dizem é o nível da antropologia; é onde nós estamos e é o que é relevante.
Agora, voltando um pouco à questão do 25 de Abril, claro que o que as pessoas nos dizem às vezes reflecte mais a maneira como entendem aquilo que estão a contar do que aquilo que estão a contar. Um relato é sempre mais revelador daquilo que as pessoas pensam no momento em que o fazem do que aquilo que aconteceu e que as pessoas estão a relatar. Sobre o 25 de Abril e sobre qualquer momento histórico é uma das dificuldades e também uma das enormes potencialidades de se poder fazer história a partir dos relatos orais. Não tem a ver com acreditar ou deixar de acreditar naquilo que as pessoas nos contam, mas memória é isso: a memória constrói-se à posteriori. Não é uma memória fotográfica dos acontecimentos; cada vez que as pessoas nos estão a contar coisas estão a interpretar. E acho que isso é bastante interessante.

Parece-me que uma das conclusões do teu livro é que todas estas experiências passam-se sobretudo, como dizes, no campo da “experimentação social” e não no campo da “disputa do poder”. Que sentimentos te causaram essa evidência que retratas, atendendo que, na generalidade, prevalece ainda a crença que só a participação no poder ou no organismo de Estado consegue ser o caminho para alcançar escalas sociais mais amplas de transformação, mesmo que essa escala mais institucional seja sempre acompanhada de uma perda da participação das pessoas nos projectos em si. Parece haver um desprezar dessas experiências por não terem expressão política e se limitarem a círculos fechados. Esta inquietação ou esta dualidade também te foi colocada ao longo do teu trabalho?

Sim, foi colocada de muitas formas. Eu tento ser um estudioso de movimentos sociais e, portanto, tenho um entendimento que os movimentos sociais, e mesmo aqueles que são derrotados – que são a maioria -, deixam sementes para o futuro, determinam muito do que vem a seguir, do ponto de vista da resistência social. E às vezes é uma consciência social que consegue travar medidas. Na última década, sobre a questão da austeridade, nós pudemos assistir, não só em Portugal, mas um pouco por toda a Europa, a movimentos sociais que conseguiram vitórias importantes a respeito de travar medidas austeritárias mais graves. Para não estar a falar só da Europa, que é provavelmente dos sítios menos interessantes para se falar desse ponto de vista, essa ideia de que as formas de produzir, de consumir fora da lógica de mercado são residuais não sobrevive à realidade em muitos pontos do mundo. A verdade é que, em muitos países da América Latina, e sobretudo através das práticas de resistência dos povos originários, essas são formas de economia predominantes em regiões inteiras. Não são residuais, não são pequenas experiências, são formas enormes de prácticas económicas onde as multinacionais ainda não conseguiram entrar e se calhar já não conseguem.
É verdade que as experiências do Porto que estive a investigar eram limitadas, tinham poucas pessoas, limitadas no tempo, algumas, e, para uma cidade com a dimensão do Porto, com pouco impacto. Mas, se pensarmos a coisa de outra maneira, o movimento de ocupação da Escola da Fontinha teve um pequeno ou um grande impacto na história da cidade? Eu acho que teve um grande impacto, e não foi um impacto para uma geração de pessoas politizadas, exclusivamente; foi muito para além disso. O intelectual palestiniano Edward Said tem um texto muito bonito sobre esta ideia da sobrevivência das ideias derrotadas pela história, em que diz que as ideias derrotadas pela história voltam sempre à vida noutra vida, noutras pessoas, noutros contextos e sobrevivem às injustiças, sobrevivem ao peso do mundo, porque provavelmente são ideias que permitem aos seres humanos avançarem e terem essa capacidade de esperança. Resumindo, acho que o tamanho dos projectos não os classifica, nem o impacto que poderão ter.
Nos anos 80 eu e toda a minha geração de estudantes fizemos parte daquele movimento que começou a contestar a primeira lei das propinas, do governo de Cavaco Silva. Fizemos boicotes ao pagamento, fizemos ocupações de faculdades e do Senado, mostrámos o rabo ao Ministro… Foi um movimento social derrotado: as propinas, através de um governo socialista, foram instauradas no ensino superior público uns anos depois. Mas a memória dessa luta permaneceu em gerações seguintes de estudantes universitários: a memória de que houve um momento em que os estudantes de quase todas as faculdades públicas do país disseram que não queriam pagar propinas, que aquela era uma lei injusta, e que fizeram greves, ocupações… chegámos inclusive a ocupar a Assembleia da República.

Fazendo uma ponte para os tempos em que vivemos, com novos moldes de crises, em que a crise já não é só económica e pesa sobre nós essa terrível expressão que é o “distanciamento social”, em que o sentido do comum e da comunidade parece ameaçada por sentimentos de medo e securitários, favorecendo claramente a acção do Estado. Estes actuais momentos pandémicos parecem ser contrários a essa recuperação, de baixo para cima, desse mundo comum. Até porque parece que os espaços de encontro nos foram retirados. E no meio deste frenesim que estamos a viver actualmente, achas que, ainda assim, é um momento para poderem surgir essas experiências transformadoras e estas alternativas, estamos a viver um revés disso ou uma oportunidade?

Gostaria que estivéssemos a viver uma oportunidade. A ideia de crise em Portugal é uma ideia curiosa, porque nós nunca saímos dela: estamos sempre em crise. Claro que agora há uma crise global: a pandemia. Mas antes da pandemia houve a crise financeira, que também era global. Portugal está sempre em crise, mesmo que, em retrospectiva, não estivéssemos em crise. Mas a ideia de crise é uma ideia recorrente, aproveitada por uma concepção de sociedade fechada nos moldes da sociedade de classes, do sistema económico em torno do capitalismo. Ou não. Pode representar momentos de questionamento colectivo, de interrogação sobre o futuro, sobre os modelos dominantes da política, da educação, sobre o modelo do Estado, a Segurança Social, o trabalho… Como momentos em que interroguem essa realidade, são momentos produtivos. O primeiro momento da pandemia, em que, de repente, os serviços públicos de saúde eram os serviços essenciais para a vida das pessoas e para a reacção face à doença, em que as pessoas, um pouco por todo o mundo, vinham para as varandas aplaudir os profissionais do Serviço Nacional de Saúde é um momento muito curioso, que é completamente a contra-ciclo do projecto burguês para a saúde, que é a sua privatização. De repente, há uma pandemia e a âncora para a esperança no mundo são os serviços públicos. Claro, entretanto isso já ficou lá atrás, já foi tudo há muito tempo. Mas isto foi o ano passado. Portanto, acho que as crises, inclusive esta crise pandémica que estamos a viver, também são momentos de questionar o inquestionável.
Se isto pode ter continuidade em processos de transformação social mais profundos? Acho que não estamos à beira disso. Há uma situação de conflito que é cada vez mais evidente. Acho que o enorme aumento da extrema-direita no mundo – e não só da extrema-direita organizada, mas da extrema-direita como ideologia da supremacia racial, da desigualdade, basicamente, das ideias do ódio sobre o outro – transformou o nosso mundo no tempo das nossas vidas: a extrema-direita era desconsiderada como alternativa de poder na maior parte dos sítio do mundo e agora já não é; na maior parte dos sítios do mundo já é alternativa de poder, de poder do Estado, de poder económico, de poder militar… Isto é uma mudança muito grande e acho que muitas vezes as suas ideias se reflectem na direita tradicional, às vezes até na esquerda, que também consegue ser conservadora, racista, xenófoba, etc. Portanto, o problema da extrema-direita não é só umas pessoas que ocupam uns lugares, mas uma ideologia que se repercute em muitos níveis da sociedade e muito para lá da orgânica da extrema-direita. Mas acho que do lado que se opõe a isto também há uma consciência maior. Espero que haja uma capacidade de resposta e alguma visibilidade a alternativas.

*Entrevista realizada por Filipe Nunes; Filipe Olival; M. Lima; Sara Moreira, e publicada no jornalmapa.pt