Há duas décadas, umha campanha da mocidade independentista levava como legenda ‘A tua passividade é a sua força’. Uns cartazes fotocopiados e pobremente maquetados, dacordo com a precariedade tecnológica e económica da militáncia de ensino secundário da altura, decoravam as paredes; mas com poucas excepçons, as pessoas olhavam para outro lado. Já nos anos 80, ao alento da Reforma política e da institicionalizaçom da esquerda, popularizara-se no Reino de Espanha a palavra ‘pasotismo’, e precisamente isso, um comportamento social que mesturava inibiçom política com diversom e desenfado, era o cavalo de batalha da esquerda revolucionária que subsistia nas margens. Poucos questionavam que a injustiça existisse, mas realmente valia a pena organizar-se? Na Europa opulenta, e na Galiza autonómica, as avantagens e os gozos de estar politicamente parado eram bem mais grandes que os de estar envolvido numha causa, justificada mas ao cabo raquítica em apoios.

Tantos anos de fraqueza do movimento popular nom se deixárom sentir sem consequências. Como pronosticava boa parte da literatura política radical da altura, umha sociedade fofa e desestruturada ia caminho do curte de direitos e do recuo das condiçons de vida; na Galiza, os direitos formais concedidos pola autonomia, de nom serem tensionados com um independentismo aberto, iriam pôr-se em causa, a começar polo próprio idioma. E como questom global que paira sobre todas as outras, umha enorme crise ecológica faria perigar a própria viabilidade da vida humana, de nom se mudar de raiz o modelo de produçom e as formas de vida. Mas as fantasias capitalistas, com o seu corolário de profissionalizaçom da política e de adiçom ao consumo, eram ainda demasiado fortes. O sonho está agora virando pesadelo.

Podem-se-lhe apor muitos adjectivos à nossa sociedade em 2022, mas o de ‘indiferente’ já nom a define. Bem é certo que, num mundo mui marcado polas relaçons laborais e pessoais fragmentárias e inconsistentes a organizaçom estável nom é umha fórmula escolhida polas mais. Mas a atençom à política, as paixons partidárias, as preocupaçons eleitorais, o seguimento do fenómeno tertuliano, a ánsia por opinar e posicionar-se, o gosto pola balbúrdia política virtual som fenómenos massivos. Nos colectivos rupturistas, tam sedentos de calor de multitudes, isto poderia levar ao risco da miragem. Antes de aplaudir ‘as respostas’, devêssemos deter-nos no pulo que as move.

O medo é um elemento dominante em quase todas elas, e com o medo, que por vezes degenera em pánico, adoitam vir respostas irracionais, grandes doses de violência (normalmente dirigida contra um bode expiatório) e a procura consoladora dum sistema de crenças fechado que nos dê certezas; na extrema direita, isto toma sempre a forma dum líder salvífico e que parece ter todo muito claro, e na esquerda rupturista, adoita derivar no empobrecimento intelectual e o gosto pola ignoráncia, mostrado sempre em debates agressivos sobre quem interpreta com maior perícia os documentos dos pais fundadores. Quando a compreensom profunda dos tempos de perigo se fai definitiva, quando se passa o limiar do ‘nom há volta atrás’, já nom estamos no medo, mas no terreno do dó. E como é sabido, a primeira fase do dó é a negaçom. É mui provável milhares e milhares de pessoas, de sensibilidade maiormente esquerdista, conhecerem que boa parte das promessas que a publicidade e a política institucional nos tem oferecido vam esboroar irremediavelmente: esvai-se a esperança de vida do consumo ilimitado e caprichoso, esvai-se a possibilidade de grandes corporaçons burocráticas -parditárias ou sindicais- poderem transformar radicalmente a nossa sociedade através de vitórias eleitorais. Ora, dado que assumir o limite destes paradigmas tem consequências de grande impacto na vida individual e implicam a assunçom de gigantescas responsabilidades, continuar na mesma é por enquanto a opçom dominante.

Nos mesmos tempos da campanha juvenil a que fazíamos referência, os livros do sociólogo basco Justo de la Cueva ocupavam um lugar de destaque nas nossas leituras; o capítulo dum deles, Comunismo ou caos, intitulava-se ‘Chegará o Saara às fronteiras de Euskal Herria?’. Escreveu-se em 1994, 28 anos antes de pautas climáticas precisamente saarianas -segundo palavras de especialistas- estarem condicionando os veraos peninsulares no limite dos 45º. Aquela enumeraçom arrepiante de calamidades que trazeria o capitalismo desbocado nom tivo o efeito mobilizador, quiçá, que o autor esperava; mas si que, em troca, serviu para umha geraçom activista adquirir umha panorámica nítida, crua e implacável, do mundo que se estava a preparar. Por palavras dum companheiro, aquelas leituras ‘fôrom a vacina’ que agora nos permite enfrentar a convulsom com o espírito bem armado de defesas. Obviamente afectados, mas nom neutralizados. Com a certeza de que cumpre respostar, mas respostar sem pánico, sem negaçom, sem pressas, e desatando o nó dos sistemas de crenças torpes e limitantes, que cifram o sucesso em respostas simplórias. A medida que construímos formas associativas de cooperaçom para sermos solidárias na escasseza e fazer-nos valer com cada vez menos direitos, teremos que estar abertos à escuita, ao debate franco e duro, entre todas aquelas pessoas que estám também dispostas a escuitar e defendem, baixo a balbúrdia do devalar civilizatório, umha vida que merece ser vivida.