Num dos seus ensaios, o norteamericano Robert Greene recria as penúrias que atravessárom a vida de Antón Chéjov, aquele escritor russo que alcançara as cimeiras da arte pelejando com a tuberculose, o alcolismo familiar, a pobreza e toda as as desventuras às que assistia diariamente na sua profisom de médico. Desafortunado e de vida breve (finou tuberculoso aos 44 anos), Chéjov puido cair, como acontece compreensivelmente quase sempre, na acritude de carácter e na culpabilizaçom das pessoas, autoridades ou estruturas que figérom da sua existência um pantano, mas seguindo o caminho contrário, escolheu outra divisa: ‘trabalho e amor’ som as palavras que encabeçárom o seu guieiro de afirmaçom pessoal. Chéjov nom foi – nem de longe- um revolucionário, mas atreveu-se a narrar as penúrias dos penais russos do zarismo (onde trabalhou como doutor), praticou a solidariedade com pessoas desfavorecidas, e tentou frear no possível as dinámicas autodestrutivas familiares, marcadas pola drogodependência e o maltrato.
Trabalho e amor? Estas palavras parecem casar mui mal. A primeira traz à nossa mente o dever penoso da subsistência por um salário; a segunda parece remitir-nos ao monotema um pouco peganhento da música comercial, ou às consignas do movimento hippi dos 60, que dum modo mui parcial e ingénuo, tentou obviar -em geral sem êxito- todo o que de conflito dramático e choque existe nos movimentos colectivos.
Mesmo se deslindamos o termo ‘trabalho’ da sua derivaçom salarial, e o entendemos como ‘dever’, ‘tarefa’ ou ‘empresa’, a associaçom com o sentimento amoroso também parece forçada. Eric Fromm, que escreveu precisamente um clássico chamado ‘A arte de amar’, chamou a atençom ante esta divergência tam extendida popularmente. Em geral, se pensamos em ‘amor’, vem à nossa mente algo que se nos dá, e se nos queixamos em matéria amorosa é sempre por sermos vítimas da carência. Na rua, laiamo-nos por nom topar um confessor à nossa medida, que nos entenda e ature suficientemente, e na rede queixamo-nos polos poucos ‘likes’ que merecem as nossas ocorrências. Em qualquer caso, é algo que gratuitamente vem – ou deveria vir – a nós, nom algo que tivéssemos que conquistar com suor ou desvelo. Mas na realidade, e segundo descobriu o psiquiatra alemao há já setenta anos, neste equívoco originam-se alguns dos fracassos mais terríveis das nossas sociedades opulentas.
Fromm salientara que o amor nom é um afecto passivo, senom mais bem umha actividade que, ao contrário que outras formas de entrega (de dinheiro ou de tempo) nom se esgota quanto mais se dá. Como tal atitude, precisa de cuidado, responsabilidade, respeito e conhecimento. Nenhuma declaraçom de amor, recorda-nos o alemao, nos pareceria sincera se víssemos que um pai ou umha mae se esquecem de alimentar umha criança, de lavá-la, de vesti-la, de garantir-lhe umha vida digna; e por isso podemos dizer, como autêntica pedra de toque do compromisso com um país, ou umha causa colectiva, o nível de cuidado e atençom que umha pessoa pom, no seu ámbito específico de actuaçom, polo bem comum que nos é prezado, chame-se movimento, organizaçom ou instituiçom; e se existe um cuidado como soma incontável de pequenos gestos de atençom é porque existe um sentido da responsabilidade; ser responsável significa estar pronto, estar disposto a ‘responder’ quando as emergências da vida nos obriguem a um gesto fora do ordinário, mesmo a risco da nossa comodidade; mas como aquilo polo que velamos nom é um fruto do nosso capricho, senom algo que tem existência de seu e um curso de vida autónomo, para ser amor precisa alicerçar no respeito. Com certa frequência, soubemos de revolucionários aparentemente impolutos que cuidárom com esmero as suas organizaçons e respondêrom com responsabilidade – mesmo arriscando a vida – polo seu futuro; mas com a conviçom profunda de que os colectivos, e o povo ao que serviam, nom eram mais que figurinhas de barro a ser moldeadas segundo um plano prévio de engenharia social. Respeito vem de ‘respicere’, mirar, e implica a capacidade de ver umha pessoa, um colectivo, um povo, como o que é: umha realidade única que, nom poucas vezes, nos decepciona, ou nom segue o curso que esperávamos; mas amar também exige, seguindo a Fromm, conhecer: para amar a Terra, dizia umha legenda do montanhismo independentista há uns lustros, cumpre primeiro conhecê-la. E conhecê-la é assumi-la tal qual é, com as suas luzes e sombras, e obviamente com umha vastidade que escapa a qualquer vontade de domínio dum grupo de indivíduos.
Em galego, utilizamos a palavra ‘desleixada’ para falar dumha pessoa de pouco esmero e cuidado que, na sua versom extrema, desatende o aspecto físico e a higiene; além de inúmeros problemas pessoais, no desleixado intuimos um problema mais fundo, radical: a falta de amor por si próprio. Num plano colectivo, o desleixo extendeu-se na Galiza contemporánea a aspectos tam visíveis como o cuidado polos bosques ou o património, a orde arquitectónica e mesmo, como é cousa bem sabida, ao uso da língua, que por vezes se utiliza como um crioulo inmerecente de qualquer mimo. Todas as mostras visíveis de desleixo falam-nos, mui rotundamente, da falta de amor polo próprio, sem a qual é impossível entender a longa decadência do país. Claro que nom é um problema galego, senom antropológico e de alcanço internacional, e de facto o filósofo Santiago Alba sintetizou o relativo desprezo pola vida em occidente com a expressom ‘capitalismo do descuido’. Sem este descuido, que deriva numha mestura de atençom dispersa, preguiça, confusom mental, medo e ignoráncia, nom se poderia entender como a civilizaçom que conhecemos se situa na beira da catástrofe ambiental, por agora sem acordar grandes gestos de responsabilidade e alarma.
Trabalho e amor? Com modéstia, e com permisso de Robert Greene, até poderíamos cambiar a conjunçom polo verbo, e afirmar sem dúvida que trabalho é amor. Os movimentos populares podem virar decisivamente atentos, eficazes e laboriosos, quando o verdadeiro combustível que os mova nasça nessa faculdade de amar que nos fai humanos, e que medra sem esgotar-se quando vê o despregue da sua força.